Para a maioria das pessoas de Realia, era meio que inconcebível a ideia de que uma criatura com um rosto tão lindo quanto de uma mulher fosse capaz de arrancar carne e ossos com os dentes de maneira tão implacável e comê-los sem a menor parcimônia. Porém, quem consegue testemunhar uma haripi em ação dificilmente se esquece do que vê. Haripis nem de longe sabiam o que era um cardápio. Qualquer coisa viva que se mexesse já servia de comida para elas. Seus papos poderosos digeriam rapidamente qualquer coisa, até mesmo substâncias que normalmente eram nocivos ou letais a seres humanos, mas, para elas, não causavam dano algum. Elas não dependiam muito de estratégias para caçar, especialmente quando seus alvos estão dentro do seu território, geralmente se aproveitando da vantagem numérica do seu bando para dominar o alvo. Mas, para presas mais difíceis, elas faziam emboscadas simples, guiadas por sua líder. Por já ter visto os esquemas de caça delas, Mileena sabia como elas funcionavam e recorreu a uma delas para recepcionar os intrometidos aspirantes.

Porém, o problema aqui era exatamente este: Ela estava lidando com os aspirantes, guerreiros que estavam a um passo de ser tornarem Combatentes Reais. Não eram como os civis ingênuos, que, àquela altura, já teriam sido estraçalhados pelos dentes pontiagudos das haripis. Mesmo com tantas haripis em cima deles, os aspirantes conseguiram repeli-las, mesmo com pouquíssimo tempo para reagir, com ataques poderosos e rápidos. Agouro era forte o suficiente para mandar as haripis para longe com seus socos e, contando ainda com seu elemento trevas, criava sombras temporárias a partir de si mesmo para esquivar e contra-atacar com perfeição. Rex não era forte como Agouro, mas ainda assim tinha uma força digna de nota, que ainda era aliada a uma arte marcial poderosa que fazia uso extenso de todos os membros do corpo e também à sua manipulação de vento, o qual era usado para criar focos de proteção ou para dar mais potência aos seus ataques. Blodia, embora fosse a mais fisicamente fraca dos três, não era menos perigosa; ela usava pequenas mas afiadíssimas facas de arremesso para lutar e, para compensar sua fraqueza física, usava tiras de papel criadas com alquimia, que eram usadas separadamente ou amarradas por linha às suas facas e se transformavam em quase qualquer coisa que ela desejasse, desde veneno gasoso até miríade de agulhas. Graças a todas essas habilidades, somadas as suas armaduras, os aspirantes resistiam ao ataque das haripis, embora tivessem sofrido alguns ferimentos.

Mileena ficou impressionada. Eles de fato eram bons, eram demais para as haripis, embora elas não intentassem em desistir. Mas Mileena não pretendia ficar apenas olhando suas amiguinhas plumadas apanharem. Ela levou os dedos à boca e deu um forte assovio, chamando a atenção de todos ali, inclusive a dos aspirantes. As haripis pararam de atacar e, como se tivessem entendido a mensagem, abriram caminho e revelaram a moça de manopla logo adiante dos guerreiros. Estes, surpresos, apenas ficaram observando-a se aproximar. Blodia, porém, reparou que o alforje que ela pegara caiu no chão por causa do ataque, mas quando ela se abaixou para recolhê-lo, uma haripi pisou em cima e manteve sua pata nele. Era ninguém menos que Pata, que, num movimento parecido com um chute semicircular, arremessou o alforje para Mileena, que o pegou com a mão esquerda e colocou a alça sobre o ombro direito.

Mileena: Obrigada, Pata.

Pata: Hm!

Rex: Nossa, vejam só... De todos os lugares, não imaginava que ia encontrar tamanha boazuda logo aqui.

Blodia: Eu não acredito que você vai ficar dando cantada numa situação dessas, Rex!

Agouro: Eu concordo que ela seja bonita, mas as Darphai também eram e fizeram o que fizeram... Portanto, pode ser a mulher mais gostosa de Realia ou o que for, mas se ficar no nosso caminho, eu lhe parto todos os ossos!

Mileena: Heh... Vocês realmente gostam de falar pelos cotovelos. Já que é assim, por que os tagarelas não fazem um favor para a anfitriã aqui e digam quem são vocês?

Rex: Tagarelas, né? Tá legal, linda; é bom mesmo que se ligue. Somos os futuros Combatentes Reais de Sortiny! Eu sou Rex, o Falcão!

Agouro: Eu sou Agouro, o Touro!

Blodia: E eu sou Blodia, a Flor da Neve!

Mileena: Hm... Legal... Chega a ser engraçado; dois representam animais nobres e o restante tem um apelido fraco. Assim como os Combatentes de verdade...

Blodia: Não existe uma regra para os títulos que adotamos. Eu gosto do meu; ponto final. E prefiro ser chamada por ele ao invés de ser referida como uma vagabunda!

Rex: Eita, flor espinhosa... Hihihihi!

Agouro: Eu falei que ela é das nossas!

Apesar da ofensa, Mileena não se intimidou nem um pouco, nem perdeu a compostura. Apenas deu um sorriso desafiador.

Mileena: Hmph... É, tanto é um deles que a boca é tão imunda quanto. Faz sentido que faça parte de um grupo de patetas.

Rex: Ah, é? Cuidado, heim? Você pode sair daqui conhecida como... Quê, bebê chorão? Heh...

Mileena: Que tal Mão de Pravus?

Ainda com seu sorriso desafiador, Mileena ergueu o punho direito e puxou a manga, revelando sua luva escarlate. A expressão descontraída dos três se desfez imediatamente, se transformando em uma expressão de espanto. Assim como muitos, eles também não imaginavam que Mão de Pravus era, na verdade, uma mulher.

Rex: Tá de brincadeira...

Blodia: Caramba... Nem eu, que sou mulher, cheguei a desconfiar...

Agouro, por sua vez, nada comentou, mas também não permaneceu espantado por muito tempo. Ele logo deu um largo sorriso, demonstrando um insano êxtase. O inimigo que ele estava procurando finalmente estava lá, na sua frente. Com o sangue fervendo de emoção, Agouro partiu rapidamente em direção à moça de manopla.

Agouro: MÃO DE PRAAAAVUUUUS!

Blodia: Agouro, não!

O Touro tentou acertar um soco em cima da cabeça de Mileena, que não se alarmou e esquivou para trás com facilidade. Agouro não titubeou com isso e continuou atacando insanamente, com movimentos cada vez mais rápidos, mas Mileena continuava retrocedendo, escapando dele sem problemas. Em um momento, porém, Mileena tomou distância e foi aí que Agouro recorreu a seu truque obscuro, criando múltiplas sombras à medida que avançava. Essas sombras criavam uma visão borrada para quem observava, por isso, ficava difícil definir a verdadeira posição do atacante. Mileena, contudo, apenas tentava observar atentamente. Chegou a um ponto em que a visão de Mileena ficou coberta e turva por causa dessas sombras, mas ela não mostrava hesitação.

Mileena: Quarta Bênção.

Mileena deu um rápido soco para frente. Ela acertou algo em cheio e, com a dissipação das sombras, esse algo se revelou como sendo o punho direito de Agouro, o qual ele usara para atacá-la. Desde o começo, Mileena sabia que as sombras eram apenas uma distração e ela tinha que focar na imagem original dele desde o início do truque para saber exatamente por onde ele se movia. Não era um truque fácil de escapar, mas Mileena não era uma Darphai à toa. A força do ataque da moça foi tamanha que a mão do guerreiro Touro foi esmagada e o impacto se alastrou pelo braço todo, causando múltiplas fraturas e hemorragias ao longo do membro.

Agouro: AAAAAAAAAAAAAAAAAARGH!!!

A dor era tremenda, e Agouro deu um breve recuo, levando a outra mão ao seu braço destruído. Mileena não deixou de aproveitar essa brecha e avançou contra o guerreiro. Ainda usando a Quarta Bênção, ela deu um salto ligeiro e, logo em seguida, aplicou um chute de bico no peitoral dele e o mandou voando para os ares, fazendo-o se chocar e atravessar a parede do edifício central. Após cair, alguns destroços caíram em cima dele. Não dava para ver se ele morreu ou sobreviveu.

Blodia: A-Agouro...

Rex: Credo... Essa garota não é pura...

As haripis comemoravam o sucesso da sua líder contra Agouro. Mileena se aproximava novamente de Rex e Blodia, mostrando-se calma, mas sem parecer descuidada. Os dois aspirantes fizeram pose de combate. Eles finalmente começaram a levar a moça de manopla bastante a sério. Rex queria partir logo para o ataque, mas Blodia o impediu.

Blodia: Calma, Rex. Precisamos ataca-la em conjunto. Atacar um de cada vez pode não ser uma boa ideia.

Rex: Bom, dois contra um é injusto, mas considerando as circunstâncias, talvez seja melhor assim...

Mileena: E aí? Quem é o próximo?

Blodia e Rex se mostravam cautelosos e se preparavam para o movimento seguinte da moça de manopla. Porém, Blodia se lembrou de um detalhe que queria perguntar a Mão de Pravus quando a encontrasse.

Blodia: Antes, quero perguntar uma coisa.

Mileena: Sim?

Blodia: Você destruiu a casa dos Shabon com todos dentro, certo? Diga, você encontrou uma mulher morena e ruiva ali?

Mileena: Fala da Jasmine? Foi graças a ela que cheguei até Aspo.

Blodia: Você a encontrou antes de atacar a casa Shabon?!

Mileena: Na verdade, foi ela quem me encontrou. Ela tentou me matar a todo custo, porque achava que teria uma nova chance de se tornar uma Combatente. Eu dei várias chances de ela ir embora, mas ela foi teimosa até o fim...

Blodia: Então... Você a matou...

Rex: Ah, isso não vai ficar assim, viu, garota?

Mileena: Como eu disse, eu dei chance pra ela ir embora. Ela não quis, pior pra ela. Se alguém tem culpa nessa história toda, é apenas dela e de ninguém mais. Se serve de consolo, ela deu tudo de si naquela batalha. E eu mesma dei um enterro digno a ela.

Blodia ficou entristecida com a notícia, mas ela conhecia Jasmine e sabia que ela era cabeça-dura. Por isso, o relato de Mileena lhe pareceu consistente.

Blodia: Nós éramos amigos dela. Eu a conhecia bem. Ela sempre foi teimosa mesmo; nunca aceitou um ‘não’ como resposta. Ser uma Combatente era o maior sonho dela e reconheço que a queda dela foi culpa dela mesma. Eu acredito na sua história, mas... Em nome do sonho dela, da nossa amizade com ela, assim como pelo reino de Sortiny, nós vamos deter você!

Rex: Falou bonito, gata. Vamos lá.

Mileena não retrucou; ela entendia os sentimentos de Blodia. Mas ela também não pretendia em se dar por vencida só por causa de um discurso bonito. Ela também fez pose de combate, mas diferente do usual, com as mãos abertas. Todos estavam prontos para o combate.

Mileena: Venham.

Enquanto isso, focos de tumulto aconteciam em várias partes do reino de Sortiny. Na Vila da Ferradura, soldados esbravejavam as ordens do rei aos moradores, que, assustados, não tinham escolha a não ser obedecer. Carly estava voltando do mercado quando os soldados iniciaram a ação na vila. Ela andou apressadamente até a biblioteca, trancou a porta e foi até seu quarto, onde Purkeed estava. Ele também percebeu que algo de errado estava acontecendo.

Purkeed: Que tá acontecendo? Estou ouvindo pessoas gritando.

Carly: Os soldados começaram a busca pela sua irmã aqui na vila. Estão entrando em todas as casas à força. Logo vão vir aqui também.

Purkeed: Mas a Irmã Mileena está longe... Não vai haver perigo, vai?

Carly: Não, não vai. Fica calmo, tá? Vamos fazer como a gente combinou, entre no alçapão lá no depósito e fique lá no fundo. Quando eles forem embora, eu te chamo, tá bom?

Purkeed: Tá bem...

De volta à Casa de Prata, Mileena estava tendo um confronto difícil com Rex e Blodia. O guerreiro Jaguar era o que mais diretamente a enfrentava e a Flor da Neve dava assistência a ele e dificultava as reações da moça de manopla. Os focos de ar que Rex criavam aumentavam a força de seus ataques o suficiente pra causar rombos nas árvores; sabendo disso, Mileena decidiu usar um estilo de luta que focasse na deflexão dos ataques do oponente e no contra-ataque. Rex também se mostrava bem experiente; atacava a adversária com veemência, ainda que custasse a acerta-la, e ainda conseguia evitar os contra-ataques. A batalha entre os dois era renhida e praticamente equilibrada, com uma troca rápida e violenta de golpes. Porém, Blodia, com toda a sua agilidade, se movimentava pelo campo de batalha, arremessando facas contra a moça de manopla de vários pontos diferentes. Ou seja, além de tomar cuidado com Rex, ela tinha que tomar cuidado com as facas, e isso exigia dela, atenção redobrada. Ainda assim, ela conseguia se virar, mas a luta estava cada vez mais difícil. Em um determinado momento, Mileena acabou se afastando novamente, e Blodia lançou uma faca com uma tira especial amarrada no cabo. A moça de manopla se esquivou da faca, mas, durante a esquiva, a tira de papel virou uma nuvem espessa de fumaça, que a encobriu totalmente. A fumaça fez Mileena tossir e lhe incomodava os olhos. Era a brecha que os aspirantes estavam esperando.

Blodia: Agora, Rex!

Sem perder tempo, Rex rapidamente avançou para dentro da fumaça, usando seu elemento vento para abrir caminho e também pra preparar um poderoso ataque de impacto. Mileena teve muito pouco tempo para reagir. Mileena bem que tentou defletir o ataque, mas a carga de vento que Rex acumulou no punho era tão maciça que se expandiu violentamente e acertou a moça de manopla em cheio, arremessando-a para longe. Ela se chocou contra a parede do quartinho e caiu, e Blodia, aproveitando a deixa, arremessou diversas facas de uma só vez. Com pouco fôlego para clamar por outra bênção, Mileena se viu forçada a tentar esquivar, porém, uma faca a atingiu no ombro direito. Aproveitando a vulnerabilidade da moça explosiva, Rex novamente partiu para cima dela para realizar o mesmo ataque de antes, mas dessa vez, Mileena, mesmo sentada, conseguiu reagir.

Mileena: Quinta bênção!

A barreira luminosa que se formou ao redor de Mileena bloqueou o ataque de Rex, que teve que expulsar a carga de vento para os lados para que o impacto do ataque não se voltasse contra si. A bruxa aproveitou que Rex ainda estava próximo da barreira e rapidamente se levantou e tocou nela pelo lado de dentro com a sua mão revestida, fazendo-a brilhar em um tom rubro. O Falcão pressentiu o perigo e, antes da barreira explodir, usou sua manipulação para jogar a si mesmo para trás. A barreira se explodiu, e Rex foi atingido onda de choque, mas como já estava longe do ponto da explosão, sofreu pouco dano.

Blodia apareceu ao lado do seu companheiro e o ajudou a se levantar. Quando a fumaça se desfez, eles viram Mileena de pé. Havia um filete de sangue escorrendo pela sua boca e uma faca cravada em seu ombro. Foi o suficiente para deixar os aspirantes contentes.

Blodia: Não quero me gabar, mas acho que estamos indo bem.

Rex: É, ela é durona, mas, se continuarmos pressionando assim, a gente pega ela.

Mileena cuspiu fora um pouco de saliva misturada com sangue, incomodada com o gosto. Depois, arrancou a faca de seu ombro e ficou observando-a. Fazia um tempo que ela não se metia em uma luta tão dura. Mas, ao invés de demonstrar preocupação, ela deu um sorriso. Estava animada com aquele combate e também estava doida para fazer o sorriso daqueles dois sumirem em um instante. Com oponentes tão bons, ela viu uma ótima oportunidade de colocar uma nova magia em prática, algo que viraria a batalha completamente a seu favor. Ela pegou outra faca que estava no chão e, dando um sussurro, se preparou para continuar a batalha.

Mileena: Eu convoco a Primeira Maldição.