Era noite na vila da Ferradura. Na Taverna da Lagosta Escaldada, Lobs limpava a pouca louça que foi suja naquele dia. A clientela não zerou, para a sorte dele, mas o movimento na taverna caiu consideravelmente. Certamente, o taverneiro estava frustrado. A vontade que ele tinha era de matar o velho bêbado que frequentava sua taverna, pois foi por causa de sua delação que seu estabelecimento foi alvo de escrutínio dos soldados. Felizmente, ele conseguiu levá-los na base da conversa, mas o temor pela Mão de Pravus espantou boa parte dos clientes. Enquanto limpava a louça, ele sentiu algo reagir no bolso de sua calça. O taverneiro tirou desse bolso um pequeno espelho, com uma borda negra entalhada; esse espelho estava brilhando. Ao ver isso, ele imediatamente foi ao banheiro. Lá, ele ergueu o espelho e, logo depois, a Imagem Dupla se manifestou a partir dele. Era Fileo.

Enquanto isso, Mileena, já recuperada de toda a confusão de três dias atrás, estava sentada no chão do seu quarto, junto com Carly. Sua luva lhe apertava novamente, mas de leve. Como tinha Purkeed em mente, imaginava que estivesse passando por um momento estressante. Ela queria muito ir atrás do irmão, mas, já sabendo que ele estava em Gricai, não se arriscava a ir por vários motivos, sendo o mais proeminente deles os Combatentes. Eles seriam adversários muito mais difíceis do que os aspirantes. Para poder resgatá-lo, ela teria que bolar um plano de invasão muito bem elaborado; do contrário, seria suicídio. Infelizmente, ela não conseguia bolar um.

Porém, a presença de Carly ali impedia que o clima naquele lugar ficasse pesado para a moça de manopla. A pequena jovem, por ter vivido uma parte da vida tristemente isolada na sua biblioteca, não tinha uma conversa decente com alguém há muito tempo, salvo por Purkeed, mas, como ele era muito novo, ela evitava conversar sobre certas coisas com ele e, como ele também estava preocupado com Mileena naquela ocasião, ele passava uma parte do tempo calado. Com a moça de manopla, a coisa se tornou um pouco diferente. Carly se viu livre para se abrir com Mileena e falava irrestritamente de várias coisas, sejam de hábitos, de acontecimentos de sua vida, de seus pensamentos, de seus sentimentos, de coisas íntimas, entre outras. Mileena também acabou revelando bastante de sua vida para ela nessas conversas. Ainda que ambas estivessem preocupadas com Purkeed, aqueles últimos dias foram bem interessantes para ambas.

Entretanto, depois que saiu do banheiro, Lobs foi até o quarto de Mileena e bateu na porta. Mileena foi recebê-lo e, percebendo sua seriedade, permitiu-o entrar.

Lobs: Fileo mandou notícias. E não são boas.

Mileena: Que aconteceu?

Lobs: Pra começar, Purkeed está em Gricai.

Mileena: Ah... Já imaginava...

Carly: Porcaria... Conseguiram pegá-lo, é?

Lobs: Ele não foi pego. Ele se entregou aos soldados.

Mileena: Como é que é?! Mas o que deu na cabeça desse menino?!

Lobs: Mileena... Ele foi até Gricai pra implorar por sua liberdade.

Mileena: Quê? Isso é sério?

Lobs: Sim. Ele se dispôs até a morrer por você. O próprio Fileo é testemunha disso.

Surpresa com a atitude de Purkeed, Mileena ficou sem palavras por um momento. Assim, Carly continuou a conversa.

Carly: E o rei, como reagiu?

Lobs: Hmph... Aquele desgraçado colocou o garoto numa cela chamada de Al-Katrax.

Carly: Prenderam ele?! Por quê?!

Lobs: Fileo não sabe ao certo. Mas, segundo ele, o rei mencionou ter achado uma chave depois de olhar pro garoto e mandar prendê-lo.

Mileena: Onde fica essa Al-Katrax?

Lobs: Ah, não; você nem pense em ir pra lá!

Mileena: Eu não vou pra lá! Só quero saber onde fica!

Lobs: Hmph... Fileo disse que fica no ponto mais profundo de Gricai, a trezentos metros de profundidade. É a última das quatro celas subterrâneas.

Carly: Trezentos metros?! Que absurdo! Colocar o menino num lugar desses... Deve ser muito isolado e escuro! Ele vai ter um treco lá!

Mileena: Aquele desgraçado...

Carly: Mileena, eu sei que você vai querer ir pra lá, mas acho que nessa o Lobs está certo.

Mileena: Eu sei disso, droga! Eu não consegui bolar um plano até agora; com mais essa, ficou ainda mais difícil!

Lobs e Carly se convenceram de que Mileena realmente não ia atrás de Purkeed naquele momento. O taverneiro ficou mais tranquilo em relação a moça de manopla, mas ainda assim, as coisas pareciam sombrias para ele.

Lobs: Tem mais uma coisa.

Mileena: O que é?

Lobs: Fileo disse que Rashu repassou a ele uma ordem do rei. A ordem é para que me matasse por traição.

Mileena: Significa que a taverna não é mais segura para ficarmos, não é?

Lobs: Sim, mas ainda temos tempo. Temos que arrumar nossas coisas e procurar um esconderijo o quanto antes.

Carly: Muito bom, como vamos procurar um esconderijo se não podemos sair daqui?

Mileena: Simples. A biblioteca.

Carly: Até parece! A biblioteca foi confiscada pelos soldados!

Mileena: Ela foi trancada pelo lado de fora. Significa que, enquanto permanecer assim, será um dos lugares mais improváveis de nos encontrar.

Carly: Ah... Tem razão, mas como vamos entrar lá?

Mileena: Lembra que eu fui à biblioteca pegar suas roupas e seus pertences pessoais? Fiz uma passagem nos fundos; está bem escondida. Dá pra você e Lobs passarem facilmente.

Lobs: Não acredito que você pensou nisso de antemão...

Carly: Você é mesmo uma gênia! Sim; pois é, pois é, pois é!

Mileena: Que nada; só fiz aquela passagem por via das dúvidas... Enfim, a questão do esconderijo está resolvida. O negócio agora é... Ver como vou tirar Purkeed daquela cela...

Formou-se um silêncio momentâneo naquele momento. Nesse momento, uma outra questão surgiu na mente de Lobs; uma questão que seria mais relevante do que todas as outras lançadas até então.

Lobs: Mileena... Desculpa perguntar, mas... E depois?

Mileena: Como assim depois?

Lobs: Não entendeu? Eu não quero permanecer escondido ou fugir o tempo inteiro. Duvido que a baixinha aqui também queira. Esse sítio não vai terminar tão cedo. Vamos ter dificuldades pra muitas coisas, especialmente com água e comida. Uma hora, teremos que procurar outro lugar pra viver... Talvez fora desse reino.

Carly: Ô cabeção de repolho estragado, você pode até estar certo, mas uma coisa de cada vez, tá? Vamos nos preocupar primeiro com os assuntos de agora; depois a gente vê o que mais a gente faz. Se pensarmos em tudo de uma só vez, vamos ficar lelé-da-cuca.

Lobs: Hmph... Tá legal, tamborete; você ganhou. Eu vou arrumar minhas coisas logo. Sugiro que façam o mesmo. Fileo vai chegar aqui amanhã de noite. Ele vai comandar a operação, mas ele espera que a gente não esteja mais aqui.

Mileena: Certo.

Carly: (Tamborete... Hmph...)

Lobs se dirigiu à porta do quarto, mas, antes de sair, deixou seu último recado.

Lobs: Ah, sim, tamborete... O Fileo perguntou por você.

Carly: Sério?! E o que você disse?

Lobs: Disse que você quase virou petisco de minhoca, mas que agora estava bem. Ele ficou bem feliz.

Carly: Ah... Tá. Obrigada.

Assim, Lobs finalmente saiu do quarto. Mileena ficou olhando a ruborizada Carly com um sorriso de canto, quase como se estivesse provocando; mas a pequena moça estava tão imersa em pensamentos felizes que nem se tocou na moça de manopla. Esta foi para a sua cama e sentou-se, olhando para cima e refletir em tudo o que ouviu nesses últimos momentos. Carly, que não demorou muito para voltar à realidade, se pôs de joelhos perto de sua amiga.

Carly: Tudo bem?

Mileena: Estou sim. Não se preocupe.

Carly: Olha... O Purkeed vai ficar bem. Ele tem a mulher mais poderosa de Sortiny como irmã.

Mileena: Heh... Mesmo que eu realmente fosse, nem os mais poderosos estão isentos de problemas. E... Talvez o meu maior problema seja a minha própria tolice.

Carly: Por que diz isso?

Mileena: Eu sempre tive que lidar com situações difíceis. Eu vivia nos desertos antes de vir pra cá. Arrumar água e comida lá era um desafio diário. Também tinha os monstros... O calor extremo... A convivência com minhas companheiras de tribo também era um problema. Elas tinham inveja, porque eu era diferente delas, e os homens que procuravam esposas na minha tribo geralmente me queriam; mas eu ainda não queria casar. Uma vez, veio um homem rico de uma terra distante; ele não havia me visto ainda, mas minhas companheiras, já temendo que ele me escolhesse, me amarraram e deixaram uma cobra perto de mim. Foi aí que minha vida foi de mal a pior em um instante. O resto você já sabe...

Carly: Sim, você contou. A fuga, a adoção, suas irmãs... A rebelião...

Mileena: É... Antes da rebelião, Minha mãe sempre me dizia que onde existe vida, existe esperança. A vida não deve ser vivida com ansiedade por causa das circunstâncias; ela deve ser vivida com a crença de que podemos encontrar uma resposta para qualquer dificuldade. Depois da rebelião... Eu tentei relembrá-la das lições que ela me deu. Acho que foi só por isso que ela conseguiu sobreviver por dois anos, porque, do contrário... Acho que ela teria até se matado.

Carly: Mileena...

Mileena: Mas de qualquer forma, ela morreu... Aquilo pesou demais em mim... Foi como ter voltado ao começo de tudo, quando era ainda uma menininha medrosa e desesperada! Eu juro, nesses últimos anos, o que eu mais tenho tentado é recobrar a esperança que minha mãe me ensinou a ter! Será mesmo necessário que eu tenha que ver o Purkeed se sacrificar pra isso?!

A essa altura, Mileena já não conseguia segurar suas lágrimas e chorava pesadamente. Vendo a dor de sua amiga, Carly pôs a mão na cabeça dela e tentou confortá-la.

Carly: Ei, não pense assim. Não precisa ficar se martirizando. Se pensar dessa maneira, você só vai aumentar seu sofrimento.

Mileena: Eu sei. Não tô querendo me martirizar. Eu tô tentando absorver de novo o que eu já deveria ter aprendido há muito tempo. Meu irmão ainda tá vivo; eu sinto isso. E eu vou busca-lo; tenho certeza que eu consigo trazê-lo de volta. O fato de eu estar viva até agora é porque a esperança que minha mãe me deu ainda vive em mim. E eu não vou decepcioná-la. Se ela pudesse me ver agora... Eu daria tudo de mim pra que ela veja que tudo o que ela me ensinou não foi em vão.

Carly: É assim que se fala, garota. Você é única Darphai que deu orgulho à Madame Midea; eu tenho certeza disso. Se ela estivesse aqui, ela continuaria com orgulho de você.

Mileena: Heh... É meio patético da minha parte mostrar fraqueza pra você depois daquilo tudo que te falei quando você quase morreu...

Carly: Ah, todo mundo tem seu dia ruim. Só não pode transformar esse dia em semanas como eu fiz... Mas com certeza isso ficará no passado.

Mileena: Tá certo... Obrigada, Carly. Se não fosse por você, já teria enlouquecido aqui...

Carly: Eu é que agradeço, garota. Eu tô contigo agora. E a Madame Midea também.

Nesse exato instante, Mileena ergueu involuntariamente o braço direito em direção a um barril que estava próximo dela. Carly não entendeu o que houve.

Carly: Ué... Por que levantou o braço desse jeito?

Mileena: Não fui eu... Foi minha luva.

Carly: S-Sua luva? Não me diga que ela tá possuída!

Mileena: Não, ela reage aos meus desejos mais fortes. E agora, o que eu mais queria era ver minha mãe...

Carly: Ué... Então... Por que o barril? Não me diga que o fantasma dela tá preso nele...

Mileena olhou para Carly, demonstrando tanta confusão quanto ela. Mileena foi até ao barril e o abriu. Aquele barril era onde Lobs escondeu as coisas de Mileena quando ela teve que fugir. Ela saiu tirando os objetos dele até encontrar uma caderneta. Nela, havia um desenho feito a mão. O desenho retratava uma Mileena ainda adolescente e Midea; a primeira estava com traje de treinamento e a segunda estava atrás, com roupas simples, segurando os ombros da moça.

Carly: Bonito. Quem fez?

Mileena: Foi minha mãe. Ela era boa em um monte de coisas, inclusive em desenhos. Mas o que tem nesse desenho pra fazer minha luva reagir assim?

Foi então que a moça de manopla e a pequena bibliotecária viram uma aura mágica surgir do desenho. Carly, embora não estivesse entendendo o que estava acontecendo, admirava a aura. Mileena, por sua vez, não demorou muito para entender. Ao ver o desenho e depois o seu alforje, ela finalmente percebeu que aquele era o objeto que ela estava procurando naqueles últimos dias.

Mileena: É isso! É isso aqui! Não acredito que tava aqui esse tempo todo!

Carly: O quê? O que é isso aí?

Mileena: Isso é o complemento! Era o que faltava pra decifrar o diário da minha mãe!

Carly: Sério?! Que ótimo!

Mileena não perdeu tempo; foi até o seu alforje e tirou o diário de dentro. Colocando o diário na cama, ela invocou o lacre e colocou o desenho na frente. O desenho emitiu vários semicírculos roxos, da mesma forma que o diário, sendo que os padrões dos semicírculos eram espelhados. Os semicírculos se encaixaram perfeitamente, formando círculos completos. Tudo o que restava a Mileena agora era abrir o cadeado, como fizera com os outros diários anteriormente. Como havia mais de um círculo, o processo de recitação de palavras mágicas seria bem mais demorado. Mas isso definitivamente não impediria a moça de manopla de seguir em frente.

Enquanto isso, em algum lugar dos subterrâneos de Gricai, Purkeed amargava seu sombrio cativeiro na cela Al-Katrax. A cela consistia em um cubículo com uma área de pouco mais de dois metros quadrados; tinha uma cama e um buraco no chão para as necessidades, além de uma garrafa d’água e um prato de comida insossa. Mas esse cubículo ficava dentro de um espaço bem maior, cercado por um emaranhado de linhas mágicas invisíveis e de um líquido escuro que preenchia tudo ao redor da cela, como se fosse uma lagoa com uma ilhota no meio. As linhas eram capazes de induzir aquele que as tocasse a entrar numa rápida e intensa combustão, virando cinzas em um instante. Nem mesmo os mais poderosos manipuladores de fogo escapariam desse destino, pois as chamas geradas por essas linhas eram mágicas e usavam as energias vitais como comburente. Pior, as linhas eram atraídas por qualquer coisa que se mexia. Já o líquido escuro era basicamente uma poção cáustica, capaz de dissolver quase qualquer coisa em questão de segundos. O único lugar seguro naquele lugar era o próprio cubículo. As paredes desse cubículo também eram invisíveis, mas eram inofensivos. Para piorar, o ambiente inteiro era muito escuro e o ar era pesado, ruim de respirar. O cubículo só era acessível graças a uma plataforma flutuante, também movida por magia. Purkeed não estava ali há muito tempo, mas o medo e a solidão já lhe atormentavam bastante.

Porém, uma luz fraca surgiu naquela escuridão. Purkeed percebeu que alguém se aproximava de sua cela e parecia estar carregando um facho de luz. Quando esse alguém finalmente chegou perto o bastante, Purkeed viu que era ninguém menos que o rei, e o facho de luz era na verdade uma aura mágica emanando de sua mão esquerda. Este entrou na cela e olhava o menino com total desprezo.

Ritchie: Está gostando de seu novo quartinho, irmãozinho?

Purkeed: Você...

Ritchie: É “majestade”, seu insolente. Eu sou rei e exijo ser referido como tal.

Purkeed: Se eu sou seu irmão... Por que me deixou nesse lugar? O que foi que eu fiz de tão grave pra merecer isso?

Ritchie: É porque você é um verme! E eu lido com os vermes da forma como eu achar melhor! Não pense que por ser meu irmão vai receber tratamento melhor da minha parte; portanto vamos logo ao que interessa. Ficar no mesmo espaço que você me enoja.

Purkeed: O que vai fazer comigo?

Ritchie: Ah, relaxa, eu não pretendo matar você. Só vim pegar uma coisinha... Uma coisinha que vai me tornar todo-poderoso.

Na Taverna da Lagosta Escaldada, Mileena transbordava de alegria.

Mileena: Consegui! Finalmente consegui!

Mileena conseguiu abrir o Cadeado Mágico completamente. A ansiedade de Mileena em finalmente ver o diário de sua mãe amenizou a dor que estava sentindo até então. Finalmente, Mileena estava um passo mais próxima de descobrir o que transpirou há oito anos, no fatídico dia em que suas irmãs organizaram o motim que mudou a vida de todo o reino de Sortiny. Porém, para a sua surpresa, assim como a da bibliotecária, o diário emitiu uma forte luz, que ocupou o quarto inteiro. As duas moças se afastaram, cobrindo os olhos. Quando a luz enfraqueceu um pouco, Mileena tornou a abrir os olhos.

Mileena ficou paralisada ao ver o que surgiu em sua frente. Havia a silhueta de uma mulher, muito magra, com belos cabelos ligeiramente loiros, quase brancos, longos, ondulados e volumosos. Seu bonito rosto apresentava um sorriso terno; seu olhar sereno penetrava a alma da moça de manopla. Mais uma vez, Mileena tornou a derramar lágrimas, mas dessa vez era de pura felicidade. Aquela que um dia partiu diante dos olhos da moça explosiva estava ali, de volta, como que por milagre, destruindo a dolorida saudade que por muito tempo assolava o coração dela. Finalmente, um pouco das forças da moça voltaram e, assim, ela movimentou seus lábios para dizer sua primeira palavra àquela mulher.

Mileena: Mãe!