Mileena ouviu o restante do discurso da ímpia em silêncio, não respondendo à sua provocação. No fim, a criatura riu até se converter totalmente em cinza e se desfazer. O livro maldito parou de pegar de pegar fogo e de soltar fumaça tóxica. Mesmo assim, Mileena conduziu Marjorie e seus cogumelos até a porta da sala e saíram de lá assim que a moça de manopla desfez a barreira. Em seguida, fecharam a porta.

Marjorie: E agora? Será que eu não vou poder mais entrar?

Mileena: As janelas estão abertas; a fumaça vai sair toda. Aguarde um pouquinho e você logo vai poder entrar de novo, tá bom?

Marjorie: Tá...

Enquanto isso, os cogumelos repararam no cadáver de Jasmine, que estava perto dali. Eles lentamente foram até o corpo e começaram a tocar nele de forma temerosa, com receio de ela se levantar de repente. Marjorie também reparou em Jasmine e sentiu-se desconfortável.

Marjorie: Ei, filhotes, não mexam nela.

Mushapila: A gente só queria saber se ela iria reagir, mamãe.

Musholoco: Se ela fizer alguma coisa, a gente pega ela pra você, mamãe!

Mileena: Ela não vai fazer nada. Ela está morta.

Mushozen: Mas você também tinha morrido e acordou...

Mileena: Se eu acordei, é porque, no fim das contas, eu não morri.

Marjorie continuava a olhar para o corpo de Jasmine e, apesar de quase ter sido sua vítima, sentia muita pena dela. A mercenária estava num estado horrível, toda machucada e ensanguentada. Porém, o estado de Jasmine não era a única coisa que a incomodava. Havia ainda algumas perguntas que surgiam em sua mente, mas para as quais não encontrava respostas.

Marjorie: Irmã Mili... Foi mesmo necessário que ela morresse?

Mileena: Eu dei várias chances pra ela ir embora, mas ela simplesmente não quis. Ela preferiu continuar lutando, mesmo não tendo mais condições...

Marjorie: Mas por que ela fez isso? Por que se esforçar tanto pra matar a gente? Eu sei que fiz mal em roubar os livros, mas...

Mileena: Tem um jogo de interesses por trás disso, Marge...

Marjorie: Jogo? Tá me dizendo que isso tudo foi por causa de um jogo?

Mileena: Pfft... Eu digo jogo no sentido figurado. O que eu quis dizer é que há muitos interesses interligados nessa história.

Marjorie: Ah, sim; Jasmine queria ser uma Combatente... Mas pra chegar a esse ponto...

Mileena: Tem erros que nos perseguem por toda a vida. O que Jasmine fez com o rei não passou de molecagem, mas custou a carreira que ela tanto queria. Ela deve ter ficado muito desesperada, tanto que aceitou ser uma mercenária de Aspo Shabon para ter ao menos uma chance de voltar às forças de elite de Sortiny. Quando descobriu sobre mim, achou que tirou a sorte grande e veio contra mim com tudo o que tinha.

Marjorie: Aspo Shabon... Eu lembro desse nome.

Mileena: Sério? O que sabe sobre ele?

Marjorie: A dona do meu orfanato já me falou dele antes, mas não muito. Eu só sei que ele é o chefe da Família Shabon... E que é um homem muito mau...

Mileena: Bem superficial, mas é verdade. É um sujeito sem o menor escrúpulo; está sempre tentando fazer algo pra se dar bem, não importa como.

Marjorie: Mas... Eu nem conheço ele direito; por que ele colocaria Jasmine atrás de mim?

Mileena: Também gostaria de saber... Talvez você tenha pego um livro em que ele tinha interesse...

Marjorie: Será? Eu só peguei livros da biblioteca da Vila da Ferradura... O que poderia ter lá que ele fosse querer?

Enquanto as duas se indagavam a respeito de Jasmine e Aspo, os cogumelos continuaram a mexer no corpo de Jasmine, contrariando a ordem da manipuladora de fungos. O cogumelo de chapéu violeta, por sua vez, olhava estarrecida para o braço esquerdo da mercenária, que estava

Mushofofa: Ai, que horror... Ela tá sem a mão...

Mushospanto: Credo, é mesmo! É de arrepiar as hifas...

Mushibento: Deve ter sido por isso que ela deu aquele berro...

Marjorie: Eu mandei vocês não mexerem nela! Querem ficar de castigo, é?!

Os cogumelos, envergonhados, se afastaram de Jasmine e se organizaram diante da sua "mãe".

Cogumelos: Desculpa, mamãe...

Mileena observava a cena sorridentemente, com uma pontada de nostalgia, pois lembrava-se do jeito rígido mas amoroso da Madame Midea. Contudo, uma coisa despertou a curiosidade da moça de manopla. Os cogumelos haviam retirado dos bolsos do vestido de Jasmine alguns objetos e os deixaram espalhados ao lado dela. Entre eles, haviam alguns papéis dobrados. Mileena foi, pegou esses papéis e passou a lê-los.

Marjorie: Isso é da Jasmine?

Mileena: Pelo jeito, sim.

Marjorie: O que tá escrito aí?

Mileena: Tem um monte de coisa diferente aqui. Grande parte parece ser de informações sobre pessoas associadas a Gricai...

Marjorie: Gricai... Será que ela tava de olho na família real?

Mileena: Nenhuma novidade; tanto Jasmine quanto Aspo têm interesses nela. E tem mais coisa aqui...

Prosseguindo com a verificação, Mileena viu um papel com uma lista de prioridades. A moça de manopla franziu a testa ao lê-lo.

Mileena: Aspo, seu cachorro...

Marjorie: O que foi, Irmã Mili?

Mileena: Posto como prioridade máxima: "Encontrar todos os livros que contenham na capa o emblema do clã Darphai." Aquele desgraçado também está atrás dos diários das minhas irmãs!

Marjorie: O quê?! Mas... O que ele iria querer com os diários das Darphai? Sem contar que ele não tem como desfazer o cadeado; ele não é uma bruxa...

Nesse momento, Mileena sentiu um aperto no peito. Uma grande possibilidade surgiu em sua mente, deixando-a nervosa.

Mileena: Verdade... Mas ele pode estar com a minha irmã sobrevivente!

Marjorie: Ai, puxa! Mas... Ainda assim, ela precisaria saber a Chave Mestra, não é? E você mesma disse que era uma magia de herança de madames.

Mileena: É, mas quem garante que ela não tenha aprendido de alguma outra forma? Eu preciso tirar isso a limpo o quanto antes!

Marjorie: Então... Você já vai, não é?

Mileena: Não, ainda não. Tenho que fazer uma coisa antes.

A moça de manopla se dirigiu até o cadáver de Jasmine e a tomou em seus braços e, ao andar até a pequena bruxa, lhe deu uma sugestão.

Mileena: Se você realmente tem a intenção de se tornar a bruxa mais forte, seria bom você vir comigo. É importante.

Marjorie compreendeu a ordem e a seguiu, indo as duas para fora da mansão abandonada, até uma área plana a alguns metros do edifício. Todos os cogumelos foram junto com elas.

Mileena: Aqui está bom...

Marjorie: Irmã Mili, você poderia deixar que eu faça o túmulo pra ela?

Mileena: Não precisa, eu posso abrir um buraco aqui e...

Marjorie: Você disse que eu era uma manipuladora de terra e de trevas, não disse? Pensei que que agora seria uma boa hora pra botar em prática.

Mileena gostou da iniciativa de sua irmãzinha e decidiu em ajudá-la. Sob a orientação da moça de manopla, Marjorie conseguiu fender o chão à sua frente, abrindo vagarosamente uma cova rasa. Então, Mileena depositou o corpo de Jasmine na cova recém-feita e, em seguida, pediu a pequena bruxa para fechar a cova. Esta teve um pouco de receio ao imaginar Jasmine sendo coberta pela terra, mas, ao receber conforto da moça de manopla, finalizou o enterro. Para terminar o sepultamento, Mileena pegou uma pedra grande e pediu para Marjorie escrever nela usando o elemento trevas. Formando uma agulha de trevas a partir do dedo indicador, Marjorie escreveu, com ajuda da Mileena: "Aqui jaz Jasmine Kam'hir". Mileena então colocou a pedra na parte superior da sepultura. Em seguida, Mileena fechou os olhos e pôs o punho direito cerrado sobre o peito, gesto que Marjorie imitou. Então, a moça de manopla fez uma prece.

Mileena: "Sob as lágrimas de Argenta que iluminam o céu, te entregamos ao teu destino. Que ela julgue teu caminho com justiça. Piedade e paz para ti."

Marjorie conhecia essa prece; era a prece póstuma do clã Darphai, uma prece que era bem conhecida no passado, mas, por causa da infâmia que as bruxas ganharam por causa da rebelião, estava caindo no esquecimento. Mileena ainda fez outra prece.

Mileena: "Das areias tu vieste, para as areias tu retornas. Que elas te encubram e te protejam do furor do sol para sempre. Que os regentes conduzam tua alma em paz."

Marjorie: Mas Irmã Mili... Ela não foi enterrada na areia...

Mileena: Essa última prece é a reza póstuma das tribos do deserto. Jasmine era de uma filha do deserto, assim como eu. Ainda que ela não tenha sido uma flor de pessoa, ao menos ela tinha direito a um enterro digno.

Marjorie: Ah, sim...

Mileena estava bastante consternada com aquela situação, não por causa de Jasmine, mas por causa das memórias que vieram ao realizar a sua sepultura. Para ela, era inevitável se lembrar da Madame Midea, pois fora a própria Mileena que, com o auxílio de Lobs, a enterrou. Além disso, era também muito triste o irônico fato de que nenhuma de suas irmãs teve um enterro digno; seus corpos foram jogados em uma grande fornalha, como se fossem lenha. Apesar disso, Mileena procurava se manter firme.

Mileena: Se você realmente quer se tornar uma bruxa forte, você terá de aprender a lidar com esses momentos o melhor que puder. Você sabe o porquê?

Marjorie: Hm... Acho que não...

Mileena: Nós bruxas somos seguidoras de Argenta, a regente que julga e lida com a morte. Como suas seguidoras, devemos saber lidar com todos os aspectos da morte, por mais doloroso que seja. Entendeu?

Marjorie: Ah, sim, entendi.

Mileena sorriu para Marjorie e pôs a mão em sua cabeça, acariciando-a em sinal de contentamento. Em seguida, ela olhou para a mansão abandonada. Faltava ainda uma coisa que ela precisava fazer e, para isso, recorreu à sua luva novamente.

Mileena: Me indique onde está o diário de minha mãe, Madame Midea.

A luva se moveu sozinha novamente, mas em direção oposta à da mansão, para o horizonte. A luva puxava fracamente o braço de Mileena, o que levou a moça de manopla a concluir que o diário não estava por perto.

Marjorie: Ué, para onde está apontando?

Mileena: Parece que o diário está bem longe daqui.

Marjorie: E você tem ideia de onde?

Mileena: Nessa direção fica... A cidade de Bisquitt.

Marjorie: Bisquitt... Foi um dos lugares por onde as Darphai tentaram entrar em Gricai, não é?

Mileena: É... E também é lá que fica a morada de Aspo.

Marjorie: Aspo Shabon mora lá?!

Mileena: Sim. E é muito provável que ele já esteja com o diário da minha mãe...

Marjorie: Essa não... O que você vai fazer? Você... Vai ter que correr, não vai?

Mileena percebeu um tom de tristeza na fala da pequena bruxa, algo que foi ela já tinha notado antes. Marjorie sabia que a moça tinha que ir embora, mas inevitavelmente ficava triste. Mileena logo tratou de confortá-la.

Mileena: Ei, isso não é um adeus, tá? A gente vai se ver de novo; não precisa ficar triste.

Marjorie: Sim, sim! Desculpa... Mas... Bem que você poderia deixar que eu vá com você...

Mileena: Acredite, eu quero. Mas agora não é o momento pra levar você comigo...

Marjorie: Mas... Mas eu posso ajudar!

A essa altura, Mileena havia se agachado para olhar Marjorie nos olhos.

Mileena: Você vai me ajudar mais ficando aqui. Primeiro, Bisquitt é um lugar cheio de gente má, que pode tentar algo contra você. Não é um lugar bom pra alguém tão nova como você permanecer.

Marjorie: Mas...

Mileena: Tem mais uma coisa. Lembra de quando eu caí desacordada? Eu tinha te pedido pra guardar os diários das minhas irmãs.

Marjorie: Ah! Você ainda quer que eu fique com eles?

Mileena: Eu aposto que a maior parte das coisas escritas neles é besteira, mas ainda pode ter informações importantes também. Se pararem em mãos erradas, pode ser desastroso. Mas infelizmente eu não tenho como cuidar deles agora. Eu estou confiando essa tarefa a você. Tudo bem?

Marjorie: Bom, se é tão importante assim... Então tá bom! Deixa comigo! Eu cuido dos diários pra você!

Mileena: Ótimo. Mas, por agora, seria bom você voltar para o seu orfanato também. Tá muito tarde pra criança ficar acordada.

Marjorie: Hm... Pior que nem que horas são. Queria voltar lá pro meu salão pra organizar minhas coisas também. Será que já dá pra voltar pra lá?

Mileena: Acho que sim, a fumaça tóxica deve ter se dissipado.

Marjorie: Então tá...

Marjorie começou a ficar com os olhos cheios d'água, enquanto Mileena a olhava sorridentemente. Logo em seguida, esta puxou a garotinha para perto de si e lhe deu um abraço apertado.

Mileena: A gente vai voltar a se ver. Eu prometo.

Marjorie: Promete mesmo? Olha que promessa é líquida!

Mileena: Pfft! Dívida, Marjorie!

Marjorie: Ain, puxa... Desculpa!

Mileena: Heh... Eu vou quitar essa dívida. Pode acreditar.

Enfim, Mileena desfez o abraço e deu um beijo na testa da pequena bruxa. Então, se levantou e começou a tomar seu rumo, distanciando-se dela, enquanto a pequena a observava e acenava para a moça.

Marjorie: Tchau, Irmã Mili! Volte outra vez!

Cogumelos: Tchau, Tia Mili! Tchau! Tchau!

Mileena acenou de volta à Marjorie até que ambas perderam uma a outra de vista. Marjorie, então, tratou de organizar suas coisas para voltar logo ao seu orfanato, pois já estava muito tarde. Já Mileena caminhava, decidindo qual seria seu próximo passo. Esta, porém, não era a única coisa que estava na cabeça da moça de manopla. Com o tempo, tudo o que lhe aconteceu há momentos atrás começou a pesar em sua alma. Seu clã, sua tribo, suas lutas... Parecia que tudo se amontoou e de uma vez foi posto em seu coração, espremendo-o. No entanto, Mileena não ficou divagando sobre isso por muito tempo, pois notou que havia alguém que estava logo adiante em seu caminho. Era um senhor de idade, de cabelos médios e barbado e usava roupas humildes. Quando este viu Mileena, esperou-a se aproximar, enquanto a moça, desconfiada, pôs as mãos na cintura para esconder sua luva com a sua jaqueta. Quando ela finalmente chegou perto o suficiente do senhor, este a chamou.

Ancião: Minha jovem, por favor, poderia me dar uma informação, se possível?

Mileena: Pois não...

Ancião: Você por acaso viu uma moça, acho que da sua idade, que usava um vestido dourado e uma tiara adornada?

Mileena: (Jasmine...) Eu... Sim, eu a vi, mas já faz um tempo. Me pareceu que ela estava indo para bem longe.

Ancião: Ah... Que pena... Obrigado por me informar.

Mileena: Er... Desculpe, mas, se não for incômodo, pode me contar o que aconteceu?

Ancião: Ela socorreu meu filho e meu neto. Eles caíram num buraco e meu filho amorteceu a queda do meu neto. Eles não estavam conseguindo subir; foi então que ela apareceu e os tirou do buraco.

Mileena: (Então foi por isso que ela chegou tão depois de mim...)

Ancião: Meu filho a convidou para cear conosco e ela aceitou, mas ela disse que tinha um assunto urgente para resolver antes. Mas ela está demorando um bocado...

Mileena: Olha... Sinto muito, mas... Eu realmente não acho que ela vá voltar por aqui. Ela estava... Bem decidida, pelo o que eu vi...

Ancião: Ah, tudo bem... Ela deve ter tido um assunto mais urgente pra resolver. De qualquer forma, obrigado.

Mileena: De nada...

O velho homem então deu meia volta e se foi. Mileena, com seu íntimo movido, resolveu seguí-lo de longe. Ele não morava longe daquele ponto onde encontrou a moça de manopla. Esta ficou observando o velho ir até à sua pequena casa, onde seu filho, cujo ombro e braço estavam enfaixados, sua nora e seu neto o receberam, entrando todos na casa em seguida. Aquela cena, por mais simples que fosse, deixou Mileena ainda mais melancólica, com saudades de um pai cujo rosto ela nem se lembrava mais direito. Ela se retirou dali e foi-se até uma árvore. Sentou-se perto dali e se pôs a chorar.