Rock Family

Capítulo 2- Acidente


Não era o tipo de garota de ter más intuições. Malmente tinha qualquer tipo de intuição, mas naquela manhã de segunda-feira, passei todo o meu tempo com uma estranha agonia no meu peito, uma dor como se algo estivesse errado, algo ruim aconteceria.

Portanto, enquanto lavava os pratos na cozinha e ouvia os garotos na sala assistindo televisão, não pude evitar em perguntar, embora soubesse que não seria levada á sério:

- Gente... Vocês estão bem?

Eu não deixava de me preocupar com eles, eram as únicas pessoas que eu tinha naquela cidade desde que saímos sem permissão da casa dos nossos pais no interior, querendo seguir nosso sonho de viver da música.

Eu estava de costas, mas sabia que tinham franzido o cenho, notei o silêncio na sala antes da resposta de Louis, desconfiado:

- Tudo... E com você?

Eu me virei. Eles não estavam mesmo acostumados com o meu interesse no seu bem-estar, costumávamos ser unidos, porém, cada um com sua própria vida, até que alguém tivesse problemas, não nos fornecíamos ajuda. E eu, não era uma garota tão comum, alguns dizem que sou gótica, já eu, não sei definir. Não faço tudo que uma gótica faz, mas digamos que eu sou um pouco mais profunda do que pareço. Eu não costumava me relacionar com outras pessoas, não as pessoas que não faziam meu gênero, ou não respeitavam meu jeito de ser. Mas no geral, eu não era do estilo rebelde. Eu era responsável, colocava tudo em ordem ali e se hoje existiam regras e organização, era por minha causa.

Eu também não costumava beber, fumar, nem nada do gênero. Só era eu mesma, no meu mundo. Mas no fundo, eu era uma garota comum, gostava de ser compreendida, acalentada, e me importava com eles. Só precisava ser rígida as vezes, para que me respeitassem, não era fácil ser a única garota da casa e eu tinha que me manter séria para ser levada a sério.

- Sério gente, hoje eu to sentindo um péssimo pressentimento.

Eu expliquei. Eles se entreolharam sem entender, depois, assisti-os rir. Bufei, aquilo era tão previsível.

- Você? Tendo pressentimentos? Vai chover?

Eu fiquei um pouco irritada, gostava de ser levada á sério.

- Eu sei, eu sei, mas não é brincadeira, valeu? Acho bom tomarem cuidado.

Falei e me virei de novo pra pia para voltar a lavar a louça, um pouco magoada com o jeito que gozaram da minha boa vontade de ajudar. Ainda ouvi risadas. Mas depois, Marco levantou-se e foi até meu lado.

- Que isso, Maria, a gente só ta brincando.

Tentou concertar as coisas. Marco era um grande amigo. Éramos como irmãos, ele era o que mais me respeitava, me via como garota, me protegia, era o que me defendia das brincadeiras dos outros desde que éramos crianças e também era o mais velho, então era o líder da banda. Pegou no meu ombro descontraído, tentando me convencer.

Eu olhei pra ele. Marco era louro, de olhos verdes, escondia o cabelo em uma touca preta e tinha um pircing na boca, um no nariz e um alargador na orelha esquerda, além de suas diversas tatuagens. Era divertido, me ajudava sempre que precisava.

Ele então olhou pros garotos.

- Sério gente, intuição feminina é coisa séria, uma vez minha mãe sentiu que eu ia mal na prova da oitava série e acertou em cheio.

A voz de Marco queria ser séria, mas parecia que nem ele sabia como levar aquilo a sério.

Os outros continuaram rindo.

- Deve ser porque você nunca estudava.

Bill disse rindo. Marco cedeu ás brincadeiras, riu de sua gozação e arremessou-lhe uma almofada.

- Para, idiota.

Disse rindo pra Bill. Eu não liguei mais, mas sabia que o que estava sentindo era sério, não contaria a eles se soubesse que era uma besteira.

Foi então que vi Bill levantar-se do sofá dizendo:

- Caramba, tenho que ir.

Fitei-o. Não queria que nenhum deles saísse enquanto estivesse com aquela má sensação.

- Para onde?

Indaguei, de mal com a ideia. Ele bufou um sorriso.

- Pro mercado, lembra? É minha vez, tenho que ir e voltar antes do horário do show.

Então me lembrei, a casa estava quase vazia, não iria aceitar ficar sem comida por conta de meu mau pressentimento. Então não tive escolha.

Vi-o pegar a carteira e celular no balcão e depois seguir até a porta, antes que saísse, tive minha última tentativa:

- Bill, espera.

Ele olhou pra mim, esperando o que tinha a dizer.

- Se cuida.

Falei num murmúrio. Ele sorriu, dessa vez mais hospitaleiro á minha preocupação. Respondeu-me:

- Relaxa, Maria.

E saiu pela porta. Eu senti um aperto no peito quando vi ele sair.

E durante a tarde, tentei ignorar aquela agonia sem sentido, me fazendo acreditar que era tudo engano.

Li livros, joguei dardos com os outros. Não sabia bem o que fazer para me distrair, pois nada funcionava. Até que nos vimos sentados na sala, com os instrumentos em volta, esperando Bill chegar do mercado para irmos ao show bar.

Fiquei aflita à cada minuto que se passava e ninguém aparecia pela porta, o seu celular estava fora de área e já estávamos ficando preocupados, só faltavam alguns minutos pra o show começar e não podíamos fazer sem ele.

Enquanto esperava, milhares de coisas se passavam por minha mente. Eu tinha sentido algo ruim, mesmo assim, o deixei ir, por não saber o que acharia disso. Se algo tivesse acontecido, seria porcentagem minha culpa, por ter cedido que fosse, eu sabia e não fiz o bastante.

Até que um som agudo nos assustou, o telefone tocando, todos avançamos para atender, com esperança que fosse Bill dando notícias, mas Louis pegou primeiro.

Eu assisti com me coração acelerado ele falar com alguém do outro lado, se fosse Bill, não tinha mais com o que me preocupar.

- Sim, ele é divide apartamento com a gente... – Ouvi Louis responder á alguém. Alguém tinha ligado perguntando sobre Bill. Meu coração partiu-se ao meio de aflição. – Ai meu Deus...!

Ouvi Louis exclamar nervoso, passou a mão no rosto com agonia depois de algo que a pessoa disse do outro lado. Eu e Marco ficamos desesperados:

- O que foi?

- O que foi? O que aconteceu? Ele ta bem?

Louis não conseguia responder, comprimiu um choro na garganta e assentiu ás palavras da pessoa do outro lado. Eu me assustei, fiquei muito preocupada, não fazia ideia do que era e tinha a impressão de que a notícia era muito grave.

Pouco depois Louis desligou o telefone. Eu e Marco indagamos num ato, preocupados:

- O que foi? Quem era?

Louis puxou o choro pra dentro e respondeu com tom de lamento:

- Era a polícia. – Nos entreolhamos, inexatos. – Um cara foi atropelado saindo do mercado. Querem que alguém reconheça o corpo... – Foi então que caiu em prantos. – O Bill morreu... – Disse num sussurro lamentável.

Eu e Marco não sabíamos o que dizer. Uma pontada de dor se avançou em meu peito, não conseguia acreditar.

- Não. – Neguei em acreditar. – Não pode ser ele.

Falei. Ainda não sabiam quem era, então poderia ser outra pessoa. Eu tinha que ter esperanças em alguma coisa, não era possível que algo assim acontecesse, não ali, não naquele momento, não havia um porquê, por que uma coisa daquelas aconteceria com Bill?

Fomos até o hospital em que fomos chamados, nossos corações estavam apertados, sem saber do que acreditar. Só faltava uma resposta para que chorássemos.

Recebemos uma enfermeira ruiva bem vestida. Nos deu as informações:

- São Maria, Marco e Louis, os amigos de Bill Lee?

Perguntou-nos olhando na prancheta, não tínhamos ânimo em responder, naquele momento ser outras pessoas era a melhor opção.

- Sim.

Respondemos em murmúrio.

- Tudo bem, preciso de alguém para reconhecer o corpo.

Nos entreolhamos. Ninguém queria fazer isso. Quem gostaria de ter a imagem grotesca de seu amigo morto, brutalmente por um carro ou automóvel qualquer? Mas alguém tinha de ir. Marco comprimiu um choro de despedida e deu um passo á frente:

- Eu vou.

Falou. Olhei pra ele. Vi o quanto ele não estava preparado pra aquilo. Eram grandes amigos. Não menos que eu, ou Louis, mas os garotos eram mais próximos do que eu era. Vi Louis em prantos, completamente incapacitado e Marco completamente desolado, prestes á ter de enfrentar a dor de ver o amigo morto, numa maca.

Eu não podia deixar. Eu era a mais forte ali. Não a que sofria menos, mas era a justa coisa á fazer já que eu era a única que ainda não tinha se entregado á total desesperança. Eu acreditava que podia ser outra pessoa, com uma aparência igual á de Bill, e que o verdadeiro Bill podia estar chegando em casa agora, e não encontraria ninguém, depois riria do fato de terem achado que ele morreu.

Bill não podia partir, eu não podia deixar aquilo ser verdade.

- Não, Marco, eu vou.

Marco olhou pra mim. Já tinha deixado várias lágrimas correrem seu rosto. Olhou pra mim como se estivesse implorando por compreensão, expressão de total rendição á dor da perda. Ele sabia que eu sabia que ele não conseguiria fazer isso.

Olhou pra meus pés e depois disse:

- Desculpa por isso. – Chorou. – Eu não posso...

Jogou-se em prantos. Eu peguei em seu ombro pra mostrar que entendia, e em seguida fui atrás da enfermeira pelo corredor, deixando-os na recepção.

Meus batimentos cardíacos aumentavam á cada passo que eu dava naquele corredor. Meus olhos já tinham enchido de lágrimas, meu peito já ardia de dor. Quanto mais perto daquela situação, mais vulnerável eu ficava á desesperança.

Entrei no quarto e puxei o ar para dentro de meus pulmões ao ver o corpo coberto por um lençol branco numa maca. Caminhei junto á enfermeira até ele e tentei respirar o máximo que conseguia. Não sabia se estava pronta pra aquilo, não sabia se podia acreditar em mais nada quando percebi as roupas que Bill vestira ao sair de casa por debaixo do lençol. Fui coberta pelo desespero, sem dúvida era ele e só quando a enfermeira levantasse aquele lençol eu poderia ter certeza.

- Está pronta?

Perguntou-me. Nunca estaria pronta pra aquilo, mas tinha que enfrentar.

- Sim.

Menti. Foi então que esforcei-me á olhar quando ela levantou o lençol. Reconheci Bill, seus olhos orientais estavam abertos e suas pálpebras arranhadas roxas e murchas. Seus lábios estavam partidos e seu rosto machucado, amassado. O mesmo cabelo tingido de verde, o mesmo rosto redondo, era Bill.

Quis gritar de desespero ao imaginar todo aquele sofrimento, a dor que sentiu ao morrer, eu desejei que voltasse, que não passasse de um pesadelo. Virei o rosto para afastar aquela imagem grotesca. E me lembrei de todos os momentos, desde que éramos crianças, seu jeito bobo, ingênuo, tolo e único de ser Bill, suas brincadeiras, era impossível acreditar que não o veria de novo, não viveríamos mais nada juntos a partir dali. Desejei inutilmente que voltasse, nunca imaginei que fosse assim a dor da perda que enfrentaria pela primeira vez.

- É ele?

A enfermeira perguntou-me. Eu comprimi a dor em meu peito para responder-lhe num lamento:

- Sim.

Ela cobriu o rosto dele outra vez e caminhou para sair da sala. Eu quis me afastar daquela imagem, mas ao mesmo tempo não queria abandoná-lo. Virei-me pra ele um durante um minuto depois voltei-me para andar para fora do quarto.

Quando me vi naquele corredor fúnebre de novo, por um impulso corri de volta para a recepção, enxugando as lágrimas que jorravam dos meus olhos. Só queria ver Marco e Louis, ter certeza que ainda tinha pessoas, que não perderia mais ninguém aquela noite.

Marco já esperava minha volta, os dois já tinham se entregado á dor da perda, avancei para os braços de Marco e afundei meu rosto em seu casaco enquanto ele me abraçava. Todos tentamos ser fortes aquela noite, mas todos sabíamos que não era desse jeito.

No meio do silêncio da perda, um barulho intruso nos atormentou. Era o celular de Marco. Ele pegou-o irritado no bolso do casaco.

- Quem é que me liga agora?

Resmungou. Olhou quem era no visor e viu que era nosso chefe, o dono do show bar, que deveria não estar feliz com nossa falta aquela noite. Marco teve de atender.

- O que foi Carl?

Perguntou á contra gosto, nosso chefe era muito rigoroso com responsabilidade, principalmente porque nunca demos motivo á ele para preocupação, não deveria estar feliz agora que demos.

- Que foi digo eu! – Pude ouvir o grito do outro lado. – Por que faltaram? Tive de dar comissão á todos os clientes, perderam a cabeça?

- O Bill morreu, Carl.

Marco disse num tom lamentável. Ouvi um breve silêncio de vergonha, depois sua resposta com um tom mais baixo:

- Morreu? O baterista? Como?

- Atropelado hoje á tarde, estamos organizando os papéis aqui.

- Ah... – Lamentou. – Meus pêsames... Tudo bem, hoje está certo, mas da próxima vez avise para que eu prepare a programação.

- Tudo bem, tenho que desligar.

- Tchau.

Marco desligou o celular e arremessou pelo balcão. Ele rolou e caiu no chão.

- Tudo bem, um membro da família precisa vir aqui assinar o atestado de óbito. Algum de vocês tem contato?

Nos entreolhamos. Não víamos nossos pais ou os dele á um ano. E depois de um ano, ligar para dizer que Bill havia morrido, seria um desafio.

- Temos...

Louis respondeu a contragosto.

- Ótimo, devem manda-los aqui para decidir o destino do corpo até a quarta-feira.

- Certo.

Marco respondeu. A enfermeira pegou os papéis, juntou-os numa pilha e pediu lincença para sair.