Talvez eu seja como ele.

Memórias espalhadas pela cabeça de pessoas importantes e, realmente, significantes em minha vida.

“Você não é como ele, docinho!” – Freira Fridda dizia com sua voz doce quando descobri do que ele era capaz.

“Você é sã, isso que importa.” Jess, uma das minhas melhores amigas do orfanato.

“Se fosse como ele jamais te aceitaríamos aqui, esteja ciente.” Freira Anna, a chefe e ameaçadora freira do orfanato.

Não sou como ele... Não sou como ele... Não sou como...

Sangue.

Esfregando.

Esfrega.

Está ficando vermelho.

Esfrega mais!

Só mais um pouco.

Esfrega mais!

MAIS!

Saltei de frente à pia do banheiro quando ouvi a porta do apartamento bater, o barulho de salto vinha em minha direção e antes que eu pudesse esconder as evidências lá estava ela: Jess, minha antiga amiga de infância que estendeu-se até os dias atuais. Ela travou na porta me fitando completamente assustada, não queria contatá-la, mas não tive outra escolha. Na verdade tive, fiz a escolha de telefonar para ela ainda com as mãos repletas de sangue, mas antes mesmo que a ligação estivesse completa, antes dela atender, desliguei colocando o telefone no bolso.

– O que... – a voz de Jess falhou enquanto ela me fitava.

Minha roupa estava repleta de sangue, as manchas vermelhas não saiam de minhas mãos e eu estava começando a me machucar de tanto esfrega-la. Minha regata branca estava completamente vermelha e minha calça jeans estava, praticamente, da mesma cor. Não tive reação para tentar explica-la o que ocorreu, eu precisava de ajuda, precisava de alguém que fosse forte o suficiente para me ajudar, para que eu pudesse colocar minha cabeça no lugar... Não queria ir presa e parte de mim dizia que era o certo a se fazer.

– Estou indo embora – falei passando por ela pela porta.

– O que você fez? – ela virou-se em minha direção – você... Ai meu Deus.

– Eu matei alguém – virei-me para ela sussurrando tão apavorada que somente uma leitura labial seria capaz de identificar minha confissão – eu matei Jeff.

Ela estremeceu colocando as duas mãos em frente à boca.

– Sou como ele – sussurrei a fitando – sou... Exatamente... Oh, céus... Eu gostei... Eu...

– Cala a boca! – ela gritou fechando os olhos – você não é como ele!

– Eu matei um homem! – berrei – eu matei... Eu...

Ela veio andando em minha direção e logo me abraçou, chorei em seus braços mesmo e não poderia desejar lugar melhor. Queria me explicar, expor uma razão para ter assassinado Jeff, mas sequer sabia o que falar. Eu o matei por raiva, simplesmente porque ele tinha outra, e eu não tenho ideia do porquê ter feito isso, queria dizer que, no instante em que ele tentou me enforcar eu o esfaqueei bem no peito por pura defesa, mas eu pensava nisso, pensava em mata-lo, pensava em dar um fim no sofrimento, na sua vida, para que ele me deixasse em paz.

O quão covarde eu sou? O que tinha acabado de fazer? Minha cabeça não me deixava em paz e milhares de frases e pensamentos sobre ser parecida ou não com meu pai me confundiam e me deixava completamente irritada e, ao mesmo tempo, conformada. Após esta noite não tinha como negar que eu era muito parecida com ele e, em todos esses anos, todos a meu redor haviam mentido para mim, e até eu mesma.

Empurrei Jess bruscamente secando as lágrimas escorridas com raiva. Ela deveria ser minha melhor amiga e não mentir para mim do jeito que mentiu, Jess sempre disse que o que me diferenciava do meu pai era o fato dele ser um psicopata fora de si, e eu ser apenas uma garota sã. Ela estava mentindo, todo esse tempo. E eu acreditei, expandindo essa mentira para dentro de mim.

– Você mentiu para mim! – gritei me afastando dela.

– Do que você está falando?!

– Você disse que eu não era como ele! Você...

– Você não é como ele, caralho! – ela berrou irritada – mas que porra! Você não é como o filho da puta do seu pai, Nat! Entenda isso!

– EU. MATEI. JEFF – falei pausadamente a fitando nos olhos – e gostei pra caralho!

– Quem não gostaria de matar aquele babaca? – ela cruzou os braços tentando parecer tranquila – se você não...

– Não diga isso – a repreendi no exato momento – eu tenho que dar um fora daqui, sumir do mapa, eu não posso...

– E você iria para onde?

– Não tenho ideia, eu não... Ninguém jamais acreditaria que uma garota do subúrbio matou o namorado por pura defesa.

– Então você tinha razão – ela me fitava ainda assustada.

– Nem você acredita – passei as mãos na cabeça bagunçando meu cabelo, assim que vi as mãos manchadas de sangue comecei a esfrega-las novamente.

– Nat... Se acalme, nós vamos... – ela vinha em minha direção quando a interrompi me afastando ainda mais.

– Não percebe? – abaixei as mãos sujas de sangue – você é minha cúmplice! Eu jamais me perdoaria se algo acontecesse com você, Jess! Você não tem nada a ver com isso, com meus erros... Eu preciso sair daqui.

– Você tá louca? – ela perguntou me seguindo até o quarto – para onde você vai?

Não respondi, apenas fiquei em silêncio enquanto ela prosseguia.

– Você só se defendeu, Nat, você não fez nada de errado...

– Eu...

– É – ela me interrompeu gritando – você matou Jeff, e daí? Como se ele fosse um grande homem ou fará falta para alguém. Você pode alegar que foi por pura defesa, que ele avançou pra cima de você... Vamos conseguir um bom advogado pra você, Nat... Você não tem para onde ir!

Puxei a primeira mala que vi, era uma preta que sempre usei em todas as mudanças breves do orfanato para casas de famílias estranhas que me devolviam depois de um tempo, como um objeto, um brinquedo estragado.

Peguei algumas peças de roupas necessárias: algumas calças jeans, blusas, casacos e roupas intimas, coloquei a mala no ombro e fitei Jess quem mantinha-se para à porta de braços cruzados, irritada e com a respiração ofegante. Ela não aceitava o fato de eu simplesmente partir, virar uma fugitiva, mas com que cara enfrentaria a lei? E quais as minhas chances? Nenhuma, não tenho ninguém que olhe por mim e muito menos dinheiro para pagar um bom advogado, eu mofaria na cadeia por anos e, com sorte, sairia mais cedo por bom comportamento.

Eu sabia muito bem que me entregar era o certo a se fazer, mas parte de mim – uma grande parte – sabia que eu jamais me entregaria, não queria terminar como ele, como meu pai, dentro de uma jaula sem ter direito de me defender graças aos meus atos.

– Não há necessidade de fugir, Nat – ela disse ainda para na porta.

– Sim, há Jess – parei bem na sua frente – eu preciso ir.

– Fugir não é a melhor opção, você vai o quê? Fugir pra sempre?

– Não sou culpada – sussurrei – não totalmente.

– Então prove sua inocência para a lei.

– Na minha situação atual não tenho nada pra provar minha inocência Jess, e não vou ser presa! – a empurrei com o ombro passando pela porta.

– E o que você pretende fazer?

Não respondi, apenas fucei em cima da mesa procurando meu celular. Lá estava ele, manchado de sangue.

– Diga algo! – ela gritou.

– Jess, ei – fui andando até ela tentando parecer o mais tranquila possível – você nunca me viu aqui esta noite, você chegou o apartamento estava arrombado, eu tinha saído com as roupas e tudo mais. Você jamais imaginou que eu fosse capaz de matar alguém, estamos entendidas?

– Não me deixe preocupada, Nat... Para onde você vai?

– Não posso dizer – coloquei meu sobretudo preto e as luvas nas mãos – e, de fato, ainda não sei.

– Isso não é um adeus, é? – ela me fitava de braços cruzados e, naquele momento, vi que Jess queria chorar.

– Claro que não – fui andando até ela.

– Sentirei sua falta.

– Eu sei, Pocahontas – ri lhe chamando pelo seu apelido de infância, ela apenas esboçou um sorriso – eu te amo, melhor amiga.

Ela sorriu brevemente mais uma vez e sussurrou – eu te amo, melhor amiga.

Sequer pude abraça-la, estava suja de sangue e não queria coloca-la em risco. Eu não tinha ideia do que faria, para onde iria ou quem procuraria, precisava por minhas ideias em ordem e precisava fazer isso em um lugar onde a policia de Gotham não me achasse. Ou até mesmo aquele Homem-Morcego.

Não ousei olhar para Jess, apenas bati a porta atrás de mim.