Aquilo era uma merda. Uma grande e enorme merda. Estava na rua há algumas horas e estava completamente cansada de andar sem destino tendo que olhar tudo ao meu redor para ver se estava, ou não, sendo seguida. Será que a maioria dos fugitivos se sentia assim? Será que meu pai e parte de seus capangas e comparsas viviam nessa vida durante meses e anos? Sendo fugitivos da lei e tendo que se esconder sempre?

Droga, devia ser chato. Estou foragida há algumas horas e mal ouvi falar sobre o assassinato. Será que a polícia encontrou o corpo de Jeff e minhas digitais? Será que já estão sabendo do caso do babaca que tentou matar a namorada, mas ela, por pura defesa o matou? Claro que não, quem sabe dessa história somos apenas eu e ele, ambos que estávamos juntos em seu apartamento, mas eu sou uma fugitiva e ele... Bem... Ele está morto.

E, honestamente, torcia para que ele estivesse ardendo no inferno com aquele cabelo loiro e todas aquelas tatuagens estranhas e mixas. Só de pensar que algum dia já gostei daquele babaca, me dava arrepios. Sabe quando a pessoa aparenta ser exatamente aquilo que ela não é? Assim era ele. Quando o conheci, em uma festa, através de amigos em comum sequer pensava que ele era um drogado estúpido que tentaria me matar mais de uma vez. Sim, ele tentou. Jess tentou me avisar no instante em que ela soube que eu estava saindo com ele, mas eu, como boa orgulhosa que sou, sequer dei ouvidos. E foi a maior estupidez da minha vida.

A primeira tentativa de morte foi em seu apartamento antigo. Ele estava completamente embriagado e sequer me lembro porquê começamos a brigar, lembro raramente que era algo sobre uma garota que o vendia alguns “amiguinhos da felicidade”, vulgo drogas. Não digo que era a chata que não permitia que ele usasse as drogas que ele quisesse, não era assim, a vida era dele e com ela ele fazia o que bem entendesse, não era da minha conta, mas era da minha conta a garota com peitos enormes se jogar pra cima dele enquanto eu estava bem ali, sentada no sofá preto apenas observando ele gostar daquilo.

Só isso já deveria ser o primeiro e único motivo para que eu o largasse, certo? É, mais que certo, mas eu não o fiz. Não tenho ideia do porquê, mas minha consciência diz que foi por medo e nada mais, medo dele, medo de ficar sozinha, medo de sofrer alguma coisa – muito além do emocional – por ter terminado. Então, eu fiquei. Mesmo depois de ter quebrado uma costela, rachado um dente, ter ficado com os olhos inchados por quase um mês inteiro e dores, muitas delas por todas as partes do meu corpo. As outras vezes foram menos extremas, um tapa aqui, um soco ali, uns chutes.

Agora consigo perceber o quão estúpido isso parece, eu cega de amor, cega por ele e não me importava de apanhar. Essa é a pior parte, o mais difícil de admitir.

Mas mesmo com tudo isso jamais pensei que eu, uma garota comum, fosse capaz de matar alguém, por mais filho da puta que fosse, por mais estúpido e babaca que se mostrasse com o passar dos dias. E a pior parte: Jamais pensei que eu pudesse, por alguns segundos, gostar de vê-lo caído e me sentir aliviada. Isso era o que mais me chocava em relação à mim mesma. Talvez Jess tinha razão, ele merecia e, bem no fundo, eu sabia disso, mas não queria ser a responsável por mata-lo, ter seus sangues em minhas mãos arruinando minha vida mais uma vez.

E agora, tudo o que eu podia e era capaz de fazer era fugir e nada mais. Mas ficar por ai na rua, com uma mala pequena e encapuzada, definitivamente, chamaria atenção. O engraçado era, em uma cidade como Gotham, eu me preocupar mais com a polícia que o próprio homem morcego. Eu nunca o vi oficialmente, e sou dessas que só acredita vendo então, não há porque me julgar apenas porque não consigo acreditar que tem um homem morcego voando por ai, não soa estúpido?

“Como uma cidadã de Gotham não acredita no Batman?” Jess me perguntou da primeira vez em que indaguei se ele realmente existia ou não, e prosseguiu: “Ele é o maior combatente do crime na nossa cidade! E cá entre nós, essa cidade é um inferno, repleta de crimes e ele tá é dando um jeito pra gente, nos ajudando e blábláblá...” Querido homem morcego, quando você me defender como uma mocinha indefesa para que eu não precise matar um babaca, nós nos falamos.

Escutei o ronco da minha barriga no instante em que atravessei a rua e dei de cara com uma lanchonete vinte e quatro horas, respirei fundo e mudei de direção procurando algum lugar mais barato, vulgo muquifo, para que eu pudesse comer algo e não acabar com quase todo meu dinheiro. E nada melhor que uma dessas lojinhas a beira de um posto no meio da estrada. E ai estava minha resposta: eu sairia de Gotham e viveria como uma fugitiva fora dali, sem correr o risco do homem morcego me procurar ou ser capturada pela polícia. Não podia mostrar que era exatamente igual ao meu pai.

E eu não era.

Coloquei as mãos nos bolsos da jaqueta preta e caminhando rapidamente fui em direção à saída da cidade, estava longe, completamente longe, mas nada mais me impediria de sair de Gotham, afinal, como fugiria ali dentro sendo que os policiais conhecem cada pequeno pedacinho daquela cidade escura? Nem fugir eu sabia, por que não pensei antes em, simplesmente, sair de Gotham? Caramba, eu não era mesmo nenhuma gênia do crime, mais uma fato que me diferenciava do meu pai e eu não sabia se ficava feliz ou triste por isso.

Provavelmente feliz por não haver semelhança, mas triste por ter sido tão burra.

Minhas pernas já estavam doendo e minha cabeça começando a doer quando avistei a placa brilhante e na falta de algumas letras indicando que, enfim, tinha chegado em uma das lojas que eu tanto procurava. Um carro estava parado no posto bem ao lado e sequer me importei para o homem quem me olhava enquanto colocava gasolina em seu carro.

Entrei pela porta de vidro e logo os sinos tocaram indicando para o vendedor que eu estava entrando, fui direto para a sessão de salgadinhos e notei que não havia ninguém além de mim na seção, o vendedor – quem esfregava os olhos como se tivesse acabado de acordar, e tinha – e o homem do lado de fora quem ainda me olhava segurando a mangueira. Isso não parecia nada bom. Nada mesmo.

Segurei um pacote imenso, peguei um refrigerante no freezer, um pote médio de sorvete e fui para o caixa, o rapaz com o nome de “Mark” me fitava com os olhos vermelhos e pequenos, pedia um segundo enquanto procurava a máquina de registros e logo se abaixou para procura-la, peguei um chiclete e o joguei em cima do balcão enquanto ele procurava sem parar. Olhava para todos os lados na esperança de ninguém entrar, incluindo o homem que estava do lado de fora, na mesma posição, com seu terno preto e a mão esquerda enchendo seu tanque. Estava começando a me preocupar.

– Quem é o cara lá fora? – perguntei ao garoto quem me fitou segurando a máquina na mão.

Ele olhou para trás – Ele está ali há um tempinho.

– Ele não veio aqui?

– Não – ele respondeu pegando o pacote enorme de salgadinhos.

– Ele está olhando para cá.

– Se eu fosse me importar com cada cara bizarro que passa por aqui – ele deu um risada abafada pegando a lata de refrigerante.

O fitei sem dizer nada.

A televisão aumentou repentinamente e o barulho do noticiário me chamou atenção. Antes mesmo que eu pudesse desligar ou diminuir o barulho vi que o garoto do balcão já estava vidrado na televisão, o corpo fechado com uma capa preta e a poça de sangue em volta do carpete mal cuidado com bitucas de cigarros e latas de cerveja faziam com que eu me lembrasse atentamente do que se tratava. Puxei o capuz do casaco mais para frente e pigarreei fazendo com que obtivesse sua atenção.

– Eu tô com um pouco de pressa, então...

– Certo – ele assentiu passando o sorvete – desculpe.

– Tudo bem – falei fitando a televisão.

– Insano, né? – ele disse com a cabeça abaixada nos códigos de barras.

– O que?

– Você não ouviu falar? – ele levantou seu olhar até mim.

– Do que?

Ele apontou para a televisão – A garota que assassinou o namorado.

Olhei para televisão e lá estava minha foto. As impressões achadas na faca me incriminaram no exato momento em que a arma foi encontrada ainda no peito de Jeff, e isso tinha apenas algumas horas. Como puderam dar falta dele assim tão rápido? Provavelmente era algum dos traficantes que foram entregar as drogas para ele, não havia outra explicação.

Ou havia.

“Eu cheguei por volta das dez da noite, do meu trabalho... E ele estava assim... Com a faca e os olhos abertos” um gemido e ameaça de choro “eu o amava... Eu o amava”.

Piranha.

Então eles se encontrariam as dez? Para o quê? Fugirem depois de me matar? Porque foi com a intenção de me espancar até a morte que ele me chamou até sua casa. Não é tão inacreditável o fato da piranha das drogas ser a amante dele, o inacreditável é eu nunca ter acreditado que isso acontecia, de fato. Esfreguei as mãos no rosto e fitei o garoto quem, agora, já tinha passado todas as minhas coisas e não tinha fechado a conta.

– O que está fazendo? – perguntei estremecendo colocando as mãos novamente dentro do casaco.

Ele olhou diretamente para minhas mãos – Direi a você a mesma coisa que digo para todos que chegam aqui com um “probleminha”.

– Que porra você tá falando?

Ele virou a tela de seu notebook em minha direção – Você se parece demais com ela.

– E daí? Você está me chamando de assassina?

– Relaxa, tudo bem? – ele voltou seu monitor ao lugar – não falarei nada à ninguém.

– Você é maluco, feche a conta.

– Tem certeza que não vai precisar de mais nada? – ele cruzou os braços.

– Fecha a porra da conta! – aumentei o tom de voz o fitando.

Ele levantou os braços – Sim senhora. Eu só pensei que, talvez, com sua foto circulando por ai... Quero dizer... Com sua suposta foto rolando por ai – vi um pequeno sorriso surgir em seu rosto – você ia querer algo como tesoura, tinta de cabelo e maquiagem.

– Não sou eu! – tremi retirando o dinheiro do bolso – vamos lá garoto.

– Tudo bem, tudo bem – ele me fitou abaixando as mãos – o que mais deseja?

– Nada! – o fitei incrédula – só isso.

– Tá bem – ele fechou a conta pegando o dinheiro do balcão e logo me entregou as sacolas com o troco – a sessão feminina é para lá.

Olhei na direção em que ele apontou. De certo modo ele estava certo, mas quem diabos era esse garoto? Quem garantia que ele não iria me entregar de acordo com a tinta que eu usasse e aceitasse o conselho dele? Não posso confiar em ninguém e muito menos em um garoto que acabei de conhecer em uma loja escrota no fim de Gotham.

Virei meu rosto em sua direção perguntando – Por que você ajudaria uma assassina?

– Você acha que é especial? – ele mantinha um pequeno sorriso nos lábios – se você soubesse o quanto de assassinos e criminosos eu já ajudei aqui.

– O que é você? Um tipo de protetor dos criminosos?

– Bingo! – ele gritou erguendo uma das mãos e abrindo o sorriso.

Apenas o fitei arqueando as sobrancelhas.

– Não, estou brincando – ele deu uma fraca risada – e então, qual cor vai seir?

Bufei jogando as sacolas de volta no balcão e fui caminhando em direção ao corredor que estava bem ao meu lado, peguei um kit chamado “faça você mesmo”, o qual vinha com uma tesoura, pente, um shampoo e um condicionador, estava barato e continha tudo o que eu precisava. Mais à frente encontrei a maior diversidade de tintas de todos as cores possíveis e impossíveis, um bando de perucas ao lado e algumas dicas de cortes. Arqueei a sobrancelha na dúvida sobre qual escolher, ao mesmo tempo que a tinta loira parecia a melhor escolha, a verde parecia piscar em cima do balcão.

Peguei a caixa e fui caminhando em direção ao caixa, o garoto me fitava com um pequeno sorriso no rosto e então desligou a televisão, coloquei a caixa de tinta perto das minhas sacolas de tintas e o esperei ligar o rádio. Uma música animada começou a tocar e antes que pudesse assimilar o som, ele me fitou cruzando os braços novamente e indagando me fitou:

– Você quer ser discreta ou o que?

– Que? – cruzei os braços após revirar os olhos.

– Deveria pintar seu cabelo de loiro, só uma sugestão.

– Você quer me produzir ou o que?

– Ou uma peruca – ele prosseguiu pensativo.

– Você gosta de se meter na vida alheia, hein – resmunguei caminhando novamente até o corredor, pegando um pó descolorante, um creme qualquer e a peruca loira de cabelos curtos. Joguei novamente em cima do balcão e ele sorriu abertamente passando os produtos restantes exceto a caixa da tinta.

– Vai querer isso...

– Sim, moço – aumentei o tom de voz – passa logo essa porra, cara.

Ele deu uma fraca risada e assentiu em silêncio passando a tinta por último. Dito o valor, o paguei e, quando estava quase saindo virei-me para pergunta-lo tentando parecer o mais simpática possível.

– Bem... Você sabe algum lugar onde eu possa ficar? Só essa noite.

Ele não disse nada, mantinha o pequeno sorriso nos lábios.

– De preferência com banheiro só pra pintar meu cabelo.

– Dessa cor?

– Sim – assenti cruzando os braços – verde, como o do meu pai.