O barulho de seus pés descalços chapinhava no chão molhado, a deixando tão nostálgica quanto deveria estar e o ambiente fechado estava frio quando Magali se posicionou no trampolim.

— Um, dois... – ouvir a voz do treinador era reconfortante enquanto respirava fundo. – Já!

Contou três passos e pulou, seu corpo já automaticamente formando um V por alguns segundos para depois cair em queda livre e sentir o baque na água. Nadar era a única coisa que Magali realmente gostava de fazer.

— Muito bem! – ouvia as palmas surdas pois ainda nadava. – Ela é a promessa do ano!

Era caloura na FLH e tudo que ouvia de seu técnico era que era perfeita e que ninguém nadava como ela. A verdade era que Magali não conseguia se lembrar de nenhuma fase de sua vida em que não estivesse nadando. Era sua verdadeira paixão.

Quando saiu da água e tirou os óculos de natação, notou que o técnico conversava animadamente com alguém no telefone e mostrou o polegar para ela sorrindo. Olhou para ele sem graça e entrou no vestiário, ligando o chuveiro na menor temperatura que conseguia aguentar.

Ainda era cedo, seis da manhã, “cedo demais” pensava ela enquanto lavava os cabelos longos e pretos. As aulas começaram havia um mês, mas desde que fizera sua matrícula ia para a grande piscina da faculdade. Era grande e bonita e com certeza já tinha nadado em maiores, mas agora já trazia certo conforto para ela.

Se vestiu e escovou os dentes. Ouvia a chuva incessante bater no telhado da quadra enquanto andava com sua bolsa pendurada em seu ombro.

— Magali, venha cá. – seu treinador a chamou um pouco antes que resolvesse enfrentar aquela chuva.

Se aproximou devagar enquanto sua mente corria de pensamento em pensamento. Já tinha ouvido diversas histórias das suas colegas sobre o treinador tentar abusar alguma das meninas que ele tinha interesse. Esperava, no seu interior, que ele notasse a aliança em seu dedo e não tentasse nada.

— Estamos bem para a temporada que está chegando? – ele perguntou com olhos em seu celular.

— Mas é claro. – ela respondeu sem expressão.

— Ótimo.

Ele tirou os olhos do aparelho por um momento e analisou a garota em sua frente. Magali olhou para o chão, esperando.

— Depois quero conversar com você... – sorriu para ela. – Outro dia. Você sempre chega tão cedo, fica mais fácil.

Sentiu um aperto no estômago e pigarreou.

— Estou indo agora. – E antes que pudesse olhar para ele, se foi.

Correu pela chuva e chegou no refeitório vazio, ainda estava cedo e sua aula só começaria em uma hora e meia. Checou seu celular esperando por alguma mensagem de Joaquim, seu namorado desde a infância, porém suspirou quando não viu nada além de solicitações em suas redes sociais.

.

Mônica olhava para o teto quando seu despertador apitou. Sentada na cama, apreciava a chuva pela janela que não tinha parado desde a noite. Seria mentira dizer que conseguiu dormir bem e tranquilamente.

Tomava banho enquanto ensaiava em sua cabeça como se apresentar para as pessoas e tentava não pensar que tudo ia dar errado em seu primeiro dia, não queria ter um ataque de pânico sem nem ao menos ter saído de casa.

Correndo da chuva, conseguiu pegar o ônibus e chegou em apenas alguns minutos na faculdade. Tinha visto fotos na internet, andado pelo Google Maps, mas não imaginava que o prédio seria tão imponente.

Se estendia por toda a rua e tinha certeza que alguns blocos se localizavam na outra rua. O prédio principal tinha cinco andares e mais de quinze blocos espalhados por todo o local. Mônica olhava extasiada para a faculdade, pensando nos próximo quatro anos que passaria ali.

— Olha a bola! – Ouviu alguém gritar e ao olhar para trás conseguiu desviar da bola de futsal que ia bater diretamente no seu crânio.

Com o coração batendo rápido, pegou a bola e jogou de volta para o grupo de caras que estavam brincando. Respirava fundo tentando se acalmar enquanto entrava na faculdade. Foi diretamente na secretaria pegar seus horários e onde ficava cada sala.

Na faculdade Limoeiro, era necessário passar por algumas matérias obrigatórias antes de entrar no curso de sua escolha. Mônica nunca tivera dúvidas que queria jornalismo, mas sabia que aquele primeiro semestre poderia fazer qualquer um mudar de ideia.

Teve que ir ao banheiro antes de entrar na sala, colocou sua mochila em cima da pia, lavando seu rosto e encarou o espelho. Nunca foi de se arrumar muito, porém naquele dia estava se achando formidável. Passou um pouco mais de máscara de cílios e pensou se deveria prender ou não o cabelo.

Saía do banheiro com o cabelo solto quando tropeçou em alguém.

— Me desculpa. – ela disse rápido quando viu a mesma cabeleira loira do dia anterior.

A menina a olhou com raiva sem reconhecer Mônica e entrou no banheiro sem dizer nada.

“Ótimo jeito de começar a conhecer as pessoas”, pensava tristemente quando entrou na sala e viu que o professor já estava na sala. De todas as cadeiras vazias, escolheu a que ficava mais perto da porta. Assim que sentou, sentiu uma cutucada em suas costelas.

— Oi. – uma menina de cabelos cacheados e longos disse. – Tudo bem?

Quando Mônica olhou para trás viu vários pares de olhos a encarando e logo voltou a cabeça para frente franzindo as sobrancelhas. Ouviu risadas, mas ignorou.

A aula se passou rapidamente e já estava no intervalo. Mônica esperou todos saírem para mover um músculo e pegou seu celular por costume. Saiu da sala devagar e foi para um lugar que considerava vazio o bastante para se sentar. Estava bastante entretida com seu celular quando escutou passos vindo em sua direção.

— Mônica, certo? – uma voz masculina a fez olhar para cima.

O menino que a chamou era o mesmo para quem ela tinha jogado a bola de futsal mais cedo, mas agora olhou bem para ele. Ele era bonito, isso não se podia negar, bonito até demais.

— Sim. – ela respondeu observando o rosto dele.

— Eu sou Cebola. – Mônica levantou uma sobrancelha. – É meu apelido, todo mundo me chama assim.

E Mônica não precisou de muito tempo para perceber o porquê. Apesar de marcas suaves em sua bochecha, ele tinha cabelos espetados e uma expressão brincalhona no rosto. Por um momento ela não gostou daquilo, dele se aproximando mais ainda e sentando ao seu lado, depois fez uma nota mental para lembrar que ninguém sabia dos seus problemas de ansiedade naquela faculdade.

— Você é a novata da minha sala. – O jeito como ele falou aquilo deu a impressão que era bem conhecido por lá. – As pessoas podem ser um pouco distantes no começo, mas logo vai conhecer todo mundo.

— Legal. – Por dentro, Mônica se amaldiçoava e não conseguia pensar em nada para dizer. – É...

— Você é daqui? – Cebola questionou quebrando o silêncio.

— Não. – ela disse olhando para frente. Sentiu o olhar dele em seu rosto. – Quero dizer... Já morei aqui alguns meses, mas eu era criança.

— Você vai ver. Todo mundo da nossa sala é bem unido, a maioria estudou junto no Ensino Médio, somos todos amigos de infância.

“Maravilha” pensou Mônica tristemente enquanto se levantava, seguida por Cebola.

— Sexta-feira vai ter a calourada. – ele a informou. – Seria muito legal se você fosse, ai conheceria todo mundo.

Gostava do que ele estava fazendo, por mais que ela não pudesse nem pensar em ir a festas.

Olhou para ele pensando na resposta que iria dar, porém antes de começar a falar outra voz chamou a atenção dos dois.

— Cebola! – a voz era fina e os passos da menina eram curtos e rápidos. – Finalmente te achei. Pensei que ia ficar com todo mundo lá no pátio, todos estão te esperando.

A garota era a mesma que Mônica tinha esbarrado no banheiro.

— Isso! Eu estava chamando a novata para ir e conhecer todo mundo. – Cebola enunciou rapidamente coçando a cabeça.

— Novata? – e seus olhos recaíram sobre Mônica.

A loira era implacável com sua calça vinho e botas grades até o joelho. Mônica pensava que garotas bonitas assim eram todas modelos e estariam viajando para o exterior o tempo todo, como via nas redes sociais. Ela tinha olhos azuis e carregava uma bolsa que com certeza valia mais que o guarda roupa de Mônica inteiro.

— Prazer em te conhecer, sou Carmen. – ela se aproximou de Mônica e estendeu a mão com unhas perfeitamente pintadas.

— Mônica.

Podia ser que estivesse imaginando coisas, mas uma voz na sua cabeça disse que Carmen não tinha gostado nadinha dela. O dia de Mônica só ficava melhor.

Os três foram para o pátio, Carmen entre Mônica e Cebola. O garoto prestava atenção em quase tudo que a loira dizia, que era basicamente tudo sobre seu novo carro. Chegando lá, Mônica cumprimentou a todos e se sentou um pouco afastada mesmo com os protestos de Cebola.

Receberam uma mensagem avisando que o professor do segundo horário iria faltar, então os meninos resolveram adiar o treino de futebol.

— Vou acabar com a raça do Toni! – gritou um dos meninos, Cascão, se a memória de Mônica não falhasse e depois mostrou os punhos.

Não esperava ser chamada para assistir, mas uma menina bonita de vestido rosa se aproximou, muito simpática e disse:

— Vamos assistir com a gente, vai ser divertido!

Mônica de imediato se levantou e seguiu a menina.

— Me desculpa, não peguei seu nome... – ela disse se desculpando.

— Tudo bem. – recebeu um olhar engraçado. – Sou Magali.

Ficaram em silêncio até chegarem na quadra coberta, e Mônica agradeceu por ser fechada e não entrar um pingo de água.

Sentou-se com Magali e com a menina que a tinha cutucado, agora sabia que era Marina.

— Então, Mônica. – Marina começou. – Você é daqui?

— Não, me mudei ontem. – isso atraiu os olhos das duas. – Morei aqui quando era mais nova, porém meu pai teve que se mudar por causa do emprego.

— Entendo... E está gostando daqui?

— Sim, mas chove muito. – As meninas riram, deixando Mônica sem entender.

— Chove mesmo. – Magali afirmou. – É assim quase o ano todo. Mas relaxa, você se acostuma.

— E veio você sozinha? – Marina sondou curiosa.

— Sim.

— Nossa! – Magali manifestou. – Seria meu sonho se meus pais me deixassem ir sozinha estudar em outro lugar.

As duas começaram a contar como seus pais eram super protetores e Mônica se lembrou de seus pais, e sentiu uma saudade imensa. Ela só tinha conseguido convencê-los porque sua própria psicóloga tinha dito que era o melhor para ela. “Um tempo sozinha para pensar” era isso que ela tinha dito.

— Olha lá, os meninos! – atestou Marina, sorrindo. – Não sei porquê, mas amo quando eles vestem o uniforme, um fica mais lindo que o outro.

Marina não era a única que pensava assim, pois Mônica via que as outras meninas da sala também não tiravam os olhos dele. Nem mesmo ela poderia ser excluída desse grupo, pois olhava fixamente para Cebola e seus amigos.

O outro time também não ficava para trás, era um cara mais bonito que o outro.

— Magali, você tem namorado! – Marina ria alto e bateu nas costas da amiga. – Estamos vendo você babando pelo Cascão.

— O que? – as bochechas de Magali ficaram levemente rosadas. – Tá doida é?

— Vou te explicar, Mônica. – ela disse ainda rindo. – Magali namora desde criança com o Joaquim...

— Qual deles é o Joaquim? – inquiriu Mônica apontando para a quadra.

— Não, meu Joaquim é padeiro, ele não faz faculdade. – Magali disse aquilo timidamente para Mônica.

— Então! – Marina chamou atenção das duas. – Mas ela sempre teve uma paixão pelo Cascão.

— Isso é mentira, Marina! – Magali estava quase explodindo de vergonha. – Para de falar isso, o que ela vai pensar de mim?

— Desculpa, Mônica. – ela parecia sincera. – É que a Magali pensa que não pode ao mesmo tempo namorar e achar outros meninos bonitos.

— Eu não sou você.

— Todas vocês namoram? – Mônica se sentiu distante. – Quer dizer que eu sou a solteirona do grupo.

— É bom que nós podemos arrumar alguém para você, Mônica. – Magali concordou com Marina.

— Não, muito obrigada. – Mônica rejeitou rapidamente, fazendo as duas meninas rirem.

Segundos depois, Cebola se aproximou da grade e acenou para Mônica, que acenou de volta e sorriu.

— O que é isso? – Magali perguntou rindo e olhando para Marina.

— Já está fazendo sucesso. – Marina analisou a situação. – Se eu fosse você ficaria bem longe do Cebola, viu Mônica.

Por dentro, queria perguntar por que Marina tinha dito aquilo, porém temeu parecer que tinha interesse e causar má impressão.

— Ele que veio falar comigo. – Ela comentou casualmente.

— Claro, não podemos negar que ele é simpático. – Magali riu.

— E bem bonito! – Marina completou. – Não é nada demais, é que ele é um cachorro, sabe? E ainda diz que namora com a Carmen.

— Tem que ser muito corajoso para aguentar ela.

— Ele namora com a Carmen? – Então era por isso que a menina tinha olhado tão feio para Mônica.

Magali e Marina se entreolharam e falaram bem baixinho para Mônica:

— Na verdade, quem fala isso é ela. – Confessaram. – Não é segredo que ele pega todas, mas Carmen gosta de falar pra todo mundo que namora com ele. Porém, não vejo glória nenhuma em ser chifruda.

A chegada de mais uma menina dispersou a conversa.

— Oi, Ana. – e cumprimentou todas.

— Veio ver o Titi? – só a menção do nome fez Ana revirar os olhos. – Terminaram de novo?

— Olha, eu não aguento mais ele. – e lançou um olhar significativo para Mônica. – Você é a novata, Mônica não é?

— Sim. – sorriu.

— Tudo bem. Ela é legal. – Magali apaziguou Ana.

— Tá. – concordou, estressada. – Ele é um idiota, meninas. A gente estava na casa dele ontem e ele terminou comigo porque eu não quis trocar de roupa. Eu estava com aquele vestido azul, sabem?

— Nossa, que otário. – Marina cruzou os braços. – Você não deve ficar com alguém assim, Ana. Ele pode até ser seu namorado, mas não pode proibir e nem te dizer o que fazer.

— Também acho. – concordou Mônica. – Nunca namoraria com alguém assim.

— Mas eu o amo. – choramingou. – Fiquei tão triste quando ele me deixou em casa e foi embora. Pra ele foi simples assim.

— Se foi simples pra ele... – Magali cuspiu as palavras. – Deveria ser simples para você também, Ana.

— Eu sei.

Consolaram Ana até o jogo começar. As meninas conversavam bobagens sobre eles, como quão bonitos eram ou sobre a bunda de outros enquanto Mônica tentava entender o jogo, porém ele ocorria rápido demais.

Já estava 4x3 quando deu o intervalo e Cascão parou perto da cerca para beber água e uma menina se aproximou dele.

— Lá vai a nojenta. – comentou Marina suspirando e olhou para Mônica. – Aquela ali é a inimiga da Magali.

— Já disse pra parar! – Magali avisou e Ana ria alto. – Mônica, aquela ali não é inimiga minha não. É a namorada do Cascão.

— Caramba, todo mundo namora aqui hein. – Mônica tinha que comentar. – É até assustador.

— Mas tem muito menino solteiro. – Ana disse. – Ali, ó, o Xaveco tá solteiro.

Mônica ficou sem entender enquanto as meninas riram e apontaram para um menino de cabelos loiros sentado no banco. O menino era magro e parecia ser mais velho do que realmente era.

— Que feio, Ana. – Magali a repreendeu e se virou para Mônica. – Mas tem muitos meninos solteiros, ali o Toni, o Nimbus, o DC, tem o Jeremias e o Luca do basquete.

— Esqueceu de acrescentar o Cebola. – Marina riu baixinho. – Eu namoro o Franja, ele não joga bola, só sabe ficar na biblioteca estudando.

— Marina finge ser periguete, mas gosta de meninos inteligentes e esforçados. – comentou Magali fazendo uma careta para Marina.

— E você, Mônica? – Ana a olhou desconfiada. – De que tipo de garotos você gosta?

— Ah, não sei... – ela nunca tinha parado para pensar nisso. – Nunca olhei muito isso.

— Assim você não ajuda a gente! – As três riram. – Como vamos arrumar um pra você se você não sabe seu tipo.

— Olha meninas. – Mônica sorriu. – Não quero ninguém, não precisam fazer isso.

— Tudo bem, tudo bem. – Marina levantou as mãos. – Mas você é muito bonita, logo logo vai ter um monte na sua cola.

Era a última coisa que Mônica precisava naquele ano. O jogo terminou com os meninos da sala de Mônica ganhando por 5x3 e foram para o vestiário após o jogo. Mônica se despediu das meninas com a promessa falsa de que iria para a calourada na sexta.

Desceu os degraus que separava ela do chão seguro e da saída e assim que virava no corredor para sair da quadra viu um menino passando por ela e o seguiu com os olhos. Ele era bem mais alto que ela e estava vestido com o uniforme. “Ué, não vi ele na quadra” ou será que estava tão absorta na conversa que não tinha percebido.

Ouviu uma risada e percebeu que ele com certeza tinha visto ela o encarando. Xingou baixinho e foi embora fervendo de vergonha. Recebeu uma notificação de mensagem e viu que as meninas já a tinham colocado em dois grupos: o da sala e o privado.

Já era de noite quando se sentou no pequeno sofá da sala e ligou a TV em busca de algo para assistir, mas não encontrou nada. Checou seu celular e viu que no grupo tinha informações de onde seria a calourada e instintivamente olhou para a cozinha diretamente para a garrafa de whisky em cima da mesa.

Tentou ignorar os pensamentos que insistiam em aparecer em sua mente. Se trancou no quarto e deitou na cama, respirando fundo. Suas mãos suavam tanto que tinha que limpá-las no cobertor. Sabia que ela mesma estava tentando se enganar, o vício vinha em forma de pensamentos como “só um copo não vai me fazer mal”.

E se sentiu muito mal pensando se realmente poderia ir para aquela festa. De acordo com o grupo seria em uma boate, então flashes de suas antigas festas vieram em sua mente e balançou com força sua cabeça. “ Não, não, não!” Abriu sua bolsa e segurou com força o broche de noventa dias, choramingando até dormir.