Rainbow War

Declarações do coração de ouro


POV Jack

Olhei para Perla enquanto ela saía fantasiada de Kahel travestido. Mas não me importei com isso e tratei de comer o almoço que ela tinha me dado. Comecei enfiando uma boa garfada de arroz com pirão na boca e coloquei um camarão só pra sentir o sabor. Hum, delicioso! Comi em silencio por um tempo, e depois comecei a recordar de tudo. Se ela tivesse que enfrentar Jade e Darkshadow juntos, provavelmente teríamos problemas. Sabia muito bem que a batalha não seria fácil de vencer, então era de suma importância que Fernanda viesse para o nosso lado.

Olhei para meu prato vazio e me senti ainda mais vazio. Eu devia ter ido junto com ela, para o caso de haver uma batalha. Mesmo que ela seja uma lutadora poderosa, ao ponto de eu me render e admitir que ela brigava bem melhor do que eu, sentia medo de deixá-la enfrentar aqueles monstros sozinha. Ainda achava que ela era uma garotinha indefesa. Romolo pareceu notar que eu estava passando por um estado de tristeza e se aproximou para tentar me consolar.

– Jack, ficar assim só vai piorar a situação. Se você se animar, quem sabe as coisas não ocorram de modo diferente? – perguntou ele sentando ao meu lado.

– Mesmo que eu me anime, de que adianta? Eu queria estar no meio da ação, e não no meio do quarto da Perla com você. Sem ofensas, é claro.

– Não ofendeu.

Olhei no fundo dos olhos dele. Tentei procurar algo que me impedisse de beijá-lo ali mesmo, mas não consegui encontrar. Sabia muito bem das preferências dele e teria de conviver com o fato dele nunca olhar pra mim como homem, e sim como amigo. Ossos do oficio, eu acho.

– Jack, o que você vai fazer agora que não precisa mais namorar com o Hikari?

– Eu não sei. Estou com vontade de terminar, mas ao mesmo tempo… Hikari é meu melhor amigo, e eu odiaria machucar os sentimentos dele. Sei lá, minha cabeça ta mais confusa do que cego em tiroteio. Eu precisava me desligar, esquecer de tudo e de todos por um tempo, pra ver se eu penso mais claramente.

– Mas você não pode fazer isso. Estaria perdendo a semana de provas todinha.

“Vai a merda! Quer dizer que você só se importa de eu ir embora porque eu estaria perdendo a semana de provas? Para de me dar falsas esperanças e a pare com as piadinhas de mau-gosto que você tem feito, principalmente aquela do ônibus! Aquilo foi a maior sacanagem, ainda to com raiva de ti por causa disso!”. Isso estava entalado na minha garganta de tal modo que foi difícil me controlar para não dizer isso. Respirei fundo quantas vezes pude, e encarei-o como se fosse um lorde inglês: cheio de desprezo e arrogância. Acho que ele não ficou muito feliz com isso.

– Sua preocupação é tocante, mas eu dispenso! – tentei falar isso da maneira mais sutil possível, mas a aspereza e a ironia não saíram tão bem disfarçadas quanto eu pretendia.

Romolo me olhou com uma cara esquisita e saiu de perto de mim. Recolheu a bandeja com o prato vazio e levou pra cozinha, deixando-me sozinho no quarto pra poder pensar. Eu sabia que tinha sido grosso com ele, mas mesmo assim era difícil me controlar com ele fazendo essas brincadeiras de mau-gosto pro meu lado. Pensei por um minuto se deveria me levantar e esquecer que tinha feito isso. Sair voando pela janela, e voltar pra casa.

– Você sabe muito bem que eu não tenho culpa da sua raiva, não sabe? – perguntou Romolo. Que horas que ele tinha chegado que eu nem tinha visto?

– Tem sim! Se não fosse você, minha vida seria muito melhor!

– Queria poder dizer o mesmo…

Chega, cansei!

– Romolo, se isso for mais uma das suas piadinhas sem graça, então pode ter certeza que eu vou fritar seus miolos quando você abrir sua bocar! Você só sabe me atormentar e me iludir, que nem aquele dia no ônibus! – OK, isso foi sem querer.

– Aquele dia no ônibus, foi porque eu não gosto de traição. Eu estava apenas te testando.

Olhei pra ele e quase soltei minhas asas com essa. Ele estava me testando? Quem ele pensa que é pra me testar? Eu só não o mato agora por que… Traição? Como assim traição? Quem ele ia trair? Ele está namorando? E deu em cima de mim?

– Romolo, você está namorando? Você está namorando e deu em cima de mim no ônibus? Que tipo de cara você é?

– Jack, eu estou solteiro. Mas você está namorando com Hikari, e eu não iria ser o seu amante. Eu não traio, assim como não ajudo ninguém a trair. – ele ainda se mantinha impassível. Pode crer que eu quebro esse gelo rapidinho!

Levantei-me da cama e fiquei de costas pra ele. Eu tinha um plano e iria executá-lo de qualquer jeito! Apesar de estar de costas pra ele, pude ouvir quando ele caminhou para desviar da cama e ir ao meu encontro. Perfeito.

– Jack, entenda, por favor… Eu não estou fazendo isso por você, mas sim pelo Hikari. Você e el…

Não houve tempo de terminar a frase. Agarrei a garganta dele e puxei o corpo dele de encontro ao meu, até estarmos separados por milímetros. O interessante é que ele não ofereceu resistência, e quase encostei minha boca na dele. Quase. Ele só deu uma leve viradinha do rosto e acabei beijando a bochecha dele. Já é um começo.

– Jack, você não vai trair o Hikari. Pelo menos, não comigo. Não vou ser outra Jade na sua vida. E pode soltar minha garganta, por favor?

Tirei a mão da garganta dele, mas pus atrás da cabeça dele, só pra ter certeza que ele não iria virar o rosto dessa vez e me aproximei de novo. Ele virou a cabeça pra baixo e acabei beijando o cabelo dele que, aliás, estava com um cheiro maravilhoso. Pensei por um momento em ficar ali pra sempre, mas nessa hora, o celular dele dá um toque esquisitíssimo, próprio do estilo rock underground dele. Nos separamos e ele pegou o celular do bolso.

– É uma mensagem da Perla. Ela disse que chegou na casa da Tati e que ela vai levá-la até a Fernanda. E disse que vai estar de volta antes das seis.

Olhei pro relógio como quem não quer nada. 14h30min. Então acho que eu tinha mais algumas horinhas a sós com Romolo antes dela chegar. Se eu quisesse aproveitar, então era bom que começasse desde já. Esperei que ele voltasse pra perto de mim, mas apenas recebi o olhar calmo dele.

– Não fique esperando o retorno de algo que nunca foi seu, Jack. Você sabe muito bem que nós somos apenas amigos. E quero que fique bem claro que você é um bom amigo. – disse ele me dando as costas.

– Ta, pode ir. Eu fico aqui sozinho no quarto que há minutos antes estávamos em uma posição que nunca deveríamos ter saído. – disse eu tentando conter as lagrimas.

– Não fala assim, Jack. Eu não quero que você se machuque.

– Interessante você dizer isso quando só o fato de você existir já me machuca! – soltei sem muita piedade – Irônico você dizer isso quando você é a razão de todos os meus machucados, meus sofrimentos, minhas angustias, minhas próprias lágrimas. Só o fato de você existir longe de mim, já é o suficiente pra me machucar!

As lagrimas já rolavam soltas, e eu mandei tudo à porra e fui ao encontro dele. Do único dono das minhas lágrimas, e guardião dos meus sorrisos. Abracei-o por trás com tanta força que quase pude sentir que ele tentava se libertar, mas era meio que inútil. Eu era muito mais forte. Minhas lagrimas molhavam o cabelo dele, e eu fazia um baita escândalo chorando como um abandonado. Acho que ele tentava se libertar porque meu sofrimento estava passando pelo abraço.

– Jack, eu sei que eu faço as pessoas sofrerem. É sempre assim, quem se apaixona por mim acaba sofrendo, e eu nunca sofro. Mas se servir de consolo, também sofro um pouco por você.

Ouvir aquilo não era exatamente um consolo. Era mais como uma provocação, porque ele sofria por mim porque eu sofria por ele, e se eu sofria por ele, ele vê meu sofrimento e sofre. Aí eu sofro por vê-lo sofrer, e ao vê-lo sofrer, ele me vê sofrer por ele estar sofrendo, e sofrendo nós dois ficamos. É totalmente ridículo, mas é o que acontece entre nós: um sofre, e faz o outro sofrer. Mas eu sempre sou o que sofre mais, e evita ao máximo fazê-lo sofrer.

– Eu realmente não queria que isso tivesse acontecido. Você é um bom amigo pra mim, Jack. Te ver sofrer desse jeito me faz mal, mas não posso lutar contra meus princípios. Eu e você só poderemos ficar juntos quando nada mais nos prender a outras pessoas.

Hikari. Abracei-o um pouco mais forte para dizer que não ligava pra ele. Como as pessoas mudam quando estão apaixonadas. Eu era unha e carne com Hikari e mal falava com Romolo. Quando eu realmente me apaixonei por ele, não sei precisar, mas já faz mesmo muito tempo. Acho que Hikari fez essa palhaçada de namoro porque estava um pouco enciumado. Se foi por isso, então eu o perdôo.

– Você fala como se fosse fácil. Mas queria ver você no meu lugar: amando loucamente outra pessoa e namorando com uma que você apenas ama de maneira diferente, e tendo que fingir pra si mesmo que está tudo bem, e que as outras pessoas não podem ver seus problemas.

Romolo ficou surpreendentemente quieto nos meus braços quando eu disse isso. Acho que ele tinha se cansado de tentar se soltar, mas não liguei. Ele estava comigo, então era isso que importava. Aí me lembrei que podia estar apertando ao ponto dele não respirar, então soltei um pouco pra ver se ele respirava e fiquei satisfeito ao ouvir sua respiração ofegante. Acho que não sou jibóia pra matar no abraço.

Mas, além disso, toda a resistência dele foi pro buraco. Não entendi direito isso, mas fiquei esperando pra ver o que acontecia. Achei que seria mais educado ficar desse jeito. Quando a respiração dele se normalizou, pude perceber que ele tinha ficado quieto de mais, e fiquei um pouco preocupado que ele tivesse ficado com raiva de mim. Mas ele virou o rosto na minha direção e eu vi seu lindo sorriso, aquele sorriso que me conquistava cada dia mais.

– Posso te contar uma coisa? Mas você tem que me soltar pra isso, e vamos estar sentados em algum lugar confortável. Pode ser? – perguntou ele, ainda sorrindo. Só então percebi que era um sorriso triste.

Soltei-o e ele me levou pra sala e nos sentamos no sofá. Eu sentia que viria uma coisa forte dali e meio que fiquei preocupado.

– Sabe, naquele dia que perdemos a Tati pro Darkshadow, quando pegamos o ônibus e eu tinha tentado te beijar? Eu realmente ia te beijar ali mesmo, sem me importar com ninguém que olhasse. Mas eu fui covarde. Eu perdi a coragem quando te vi com aqueles olhos surpresos. Estava na cara que você estava pensando no Hikari. Por isso não me atrevi a terminar o que tinha começado.

“Eu fiquei o caminho inteiro brincando com você, mas eu sabia que você estava chateado. Não respondia direito, ou me dava olhares homicidas ou me dava um corte. Eu sabia que você estava com raiva de mim, mas eu estava com muito mais. Eu fui o covarde, que te desejou naquele momento e não teve coragem de concluir porque outra pessoa se magoaria.

Quando cheguei em casa, eu só tinha raiva de mim mesmo. Não podia te culpar por ter ficado com seu melhor amigo, porque eu nunca me declarei pra você. Embora não houvesse nada a declarar, eu aprendi a corresponder ao seu amor velado. Você dava muitas dicas, e eu ficava meditando horas e horas sobre isso, e quando eu chegava as minhas conclusões, ficava com medo.

Fui dormir pensando no que poderia ter acontecido se eu não fosse covarde. Sabe, eu não sei se foi coincidência ou não, mas eu sonhei com você aquela noite. Eu posso parecer que estou dando uma desculpa, mas eu esqueci uma boa parte dele. Só não esqueci algumas coisas: você e eu estávamos olhando o pôr-do-sol embaixo de uma árvore na beira de um penhasco com o mar lá embaixo. A visão mais linda do mundo, e eu do lado de um bom amigo, um bom amor.

“Acordei com os olhos meio molhados, mas acho que era a luz do sol do meu sonho que fez meus olhos lacrimejar. Minha família já estava me olhando estranho e eu não podia contar exatamente o motivo sem que eles me expulsassem de casa, então guardei meus sentimentos dentro de mim. Sabia que me faria mal, mas era a melhor coisa que eu podia fazer. Não sei se você reparou, mas nem fui à escola na sexta. Não tinha cara pra te encarar.

Sábado eu não fiz muitas coisas de especial, mas saí com a Perla e um amigo dela, e conversamos sobre muitas coisas. Em especial sobre duas: o novo alien e meus sentimentos por você, não necessariamente nessa mesma ordem. Acho que ela estava cansada de me ouvir, e o amigo dela então nem se fala. Mas foi reconfortante. Pude extravasar bastante tudo o que eu sentia, e recolher informações importantes sobre a Nanda. Quando voltei pra casa, ainda pensei um pouco em você.

Acordei domingo e tive um pressentimento bem interessante. Soube quase o que aconteceria no futuro, e eu tive que imaginar se você não viria hoje. Justamente o que eu imaginei. Kahel me liga de manhã e me diz que conversou com você e que você iria vir aqui em casa para treinar seus poderes, mas imaginei que fosse brincadeira dele pra me provocar. Ele disse um monte de loucura, tipo: que você tinha queimado seu colchão e que iria dormir na casa dela, enfim um monte de besteira.”

Nessa hora, meu rosto esquentou um pouco. Abaixei a cabeça pra ele não perceber minha vermelhidão.

– Mas você foi até minha casa de verdade, e eu não pude deixar de ficar feliz. Mas fiquei meio impressionado pelas loucuras dela serem verdadeiras. Então você e eu treinamos, e você quase destrói metade do quarteirão com aquela explosão. Mas o mais importante foi que eu consegui fazer você prometer que não dormiria com ela. Sabia que ainda não era tempo de te contar. E você foi dormir sabe-se lá Deus com quem, mas foi pra escola no dia seguinte, e eu pude ver que você estava me dando pouca atenção. Era uma punição? De qualquer modo, tivemos aquela batalha e eu só pensava em te proteger, tanto é prova que eu te mandei pra longe quando tive minha batalha. Jack, eu não sei se fiz tudo o que fiz por amor, mas sei que gosto imensamente de você. Aprendi a gostar e a gente nunca desaprende de verdade uma coisa que fica gravada.

Olhei pra ele com um misto de sentimentos. Primeiro culpa, depois alegria, depois raiva, depois tristeza, depois desejo, depois indiferença. Queria tanto ter ouvido essas palavras dele antes. Quase doía ter que ouvir que ele também gostava de mim agora, e eu não queria admitir que agora tinha uma chance. Sou controverso. Apesar de amá-lo com todo o meu ser, pra isso eu teria que abrir mão do Hikari, coisa que eu não estava pronto pra fazer. Magoá-lo, feri-lo, traí-lo, tudo isso me passava pela cabeça e me dava repulsa. Eu amava o Hikari. Ele é meu melhor amigo.

– Romolo, você realmente me ama? – perguntei encarando-o no fundo da alma.

– Sim, eu aprendi a amar-te com o tempo.

Me aproximei dele, a pretexto de contar alguma coisa pra ele no pé do ouvido. Só conversa pra ficar perto dele, do cheiro dele, da pele dele, da boca dele. Quando estava próximo o suficiente, peguei-o desprevenido e deitei-o no sofá e fiquei por cima dele. Não era assim que eu tinha imaginado que as coisas aconteceriam, mas era melhor do que eu podia bancar no momento. Ele era menor do que eu, e seu rosto era muito fofo, com aqueles cabelos negros, a pele morena, os olhos igualmente negros. Eu o desejava quase tanto quanto o amava.

– Jack, eu já falei que a gente não pode ter esses contatos antes de estarmos totalmente desimpedidos. Eu também quero você, mas tenho que me controlar para não magoar seu namorado.

As mãos dele tentaram me afastar, mas eu prendi as duas acima da cabeça dele e consegui que ele parasse de tentar reagir. Ficou quieto como se esperasse que eu fizesse alguma coisa ou como se fosse ser salvo por um milagre. Acho que ele estava pensando que eu ia estuprá-lo ali, naquele momento. Nunca nessa vida! Eu o amava demais pra machucá-lo de qualquer maneira que seja (tirando aquelas maneiras que uma pomada e um curativo dessem jeito).

– Eu não vou te forçar a nada, Romolo. Eu apenas quero que você compreenda que vou esperar pacientemente até você querer.

– Você vai esperar demais. Eu só vou querer de verdade quando o Hikari não estiver mais namorando com você.

Será mesmo? Inclinei-me na direção dele, pronto para dar um beijo nele, e dessa vez, tive certeza que ele não iria virar a cara. Estava bem próximo agora, quase próximo o bastante para conferir os poros da boca dele. Mas tudo que é perfeito acaba de repente. O celular dele começa a tocar um rock incrivelmente barulhento de uma banda tão desconhecida que eu nem consegui encontrar numa pesquisa avançada pela internet. Eu fico me perguntando se ele não vai atender aí me lembro que as mãos dele estão presas.

– Teu celular está em qual bolso?

– No esquerdo.

Minha mão esquerda estava livre, então troquei com a direita e passei minha mão pelo rosto dele, e deslizei suavemente pelo seu corpo até chegar ao bolso esquerdo dele. Coloquei minha mão lá dentro e tirei o celular dele, e olhei pra ter certeza se era seguro atender. Era Perla. Perfeito.

– Alô?

– Jack? O que você está fazendo com o celular do Romolo? – pensa rápido!

– Eu tava entediado, aí peguei ele pra jogar. ­– Rezei pra ela cair nessa.

– Sei. To ligando pra avisar que vou levar a Fernanda para aí e que ela está em estado de choque então, por favor, me ajudem com ela. E se não for pedir muito, poderiam ir adiantando o jantar? Quando eu chegar, só coloco as coisas no fogo e pronto. – essa garota é anormalzinha da cabeça.Se eu soubesse fazer ovo frito, já seria comparado a um chef.

– Tu acha mesmo que eu tenho cara de quem sabe cozinhar? Se eu souber botar água pra ferver, já está de bom tamanho!

– Certo, então vamos ver como eu faço. Se eu chegar em casa em meia-hora, deve dar tempo… Mas você não sabe mesmo cozinhar? Não é frescura de botar a mão na massa?­ – odeio quando eu falo a verdade e a pessoa não acredita. Eu tenho mesmo cara de mentiroso?

– Sua doida, eu te juro como não se cozinhar nada! O que você tem em mente para o jantar? Se for pizza, eu posso dar um jeito.

– Olha, a minha idéia era mesmo fazer um arroz básico, e alguns bifes ao molho madeira. Mas acho que é complicado demais pra vocês, a não ser que você e Romolo trabalhem juntos na cozinha, e usem o livro de receitas na parte de cima da estante da sala. Boa sorte.

Eu ia dizer umas poucas e boas na cara dela, mas no momento que eu terminei de pensar, ela bateu o telefone na minha cara e eu fiquei com vontade de esmagar o bichinho. Só não o fiz, porque não queria pagar um celular novo pro Romolo. Se não estávamos namorando, ele não teria nada de mim. No fim das contas, saí de cima dele e disse:

– Sabe cozinhar?

Eu e Romolo nos divertimos mais na cozinha do que na casa inteira. Lá fora o lar de varias brigas infindáveis de comida e acabamos deixando a casa da Perla mais suja do que outra coisa. Tive que me lembrar que ela me assassinaria caso encontrasse a cozinha naquele estado. Mãos a obra pra limpar, mas no exato momento que eu digo isso pro Romolo, escuto o clique da porta e vejo a Perla entrar com uma garota morena linda!

Ela tinha a pele de chocolate perfeitamente lisa, e os cabelos cacheados eram uma fofura. Parecia a Nega Maluca. Olhos negros e uma boca bem desenhada, além de um corpo escultural. Tive de me lembrar mentalmente que ainda estava namorando meu melhor amigo, o homem que eu amava estava do meu lado, tinha “transado” com a Jade no chão, e que Hugo queria me comer para não cogitar a possibilidade de dar uma rapidinha no matagal com ela. Eu sei, eu sou safado, mas fazer o que?

Voltado, Perla quase teve uma sincope quando olhou o estado que tínhamos deixado a cozinha e juro por tudo que for sagrado a você, se ela não tivesse visitas em casa, ela teria nos matado ali mesmo. Gritou acho que o tempo todo que Romolo terminava de cozinhar alguma coisa desconhecida no fogão e eu fazia uma boa faxina no chão, no teto e nas paredes. Não conte comigo pra cozinhar, mas sei limpar uma casa como ninguém. Quando servimos os pratos, pensei ter visto alguma coisa se mexer e fiquei um pouco receoso de ser atacado pelo que cozinhamos.

– Que porra é essa que vocês dois fizeram? – perguntou Perla cutucando o prato com a faca na mão direita e se escondendo atrás da mão esquerda, abaixada para facilitar uma possível fuga para baixo da mesa.

– Se não quiser comer, não coma. – disse Romolo pegando uma grande garfada e enfiando na boca. Olhei fixamente para, esperando que ele não começasse a espumar e estrebuchar para ter certeza de que a comida era segura.

Surpreendentemente, a Fernanda provou um pouco da comida e declarou que tinha um gosto interessante. Tomei um pouco de coragem e experimentei também. É, Romolo até que não cozinhava mal. Me contive com apenas um prato e comecei a me preparar pra ir pra casa. Teria que enfrentar a fúria dos meus pais sobre o colchão e sobre minha pequena fuga, já que tinha esquecido o celular na pressa de sair de casa. Considerei minhas chances de sobreviver até o fim da semana de provas, e acredite: não eram boas.

– Então, Fernanda…

– Me chame de Nanda.

– Certo. Nanda, onde você mora?

– Eu moro perto da lagoa. Acho que vocês devem conhecer.

Com certeza eu conhecia. A lagoa era famosa pela comunidade que se reunia naquele local: as pessoas mais pobres iam morar lá por falta de trabalho, por falta de dinheiro ou por falta de opção mesmo, mas não afetava o carinho e a felicidade dos moradores. Era meio perigosinho, então achei melhor que ela dormisse na casa da Perla hoje, só para o caso de não tentarem matá-la na volta pra casa.

– Mas tenho que voltar logo, minha mãe já é uma senhora idosa e tenho medo de deixá-la sozinha em casa.

Ela sabia como tocar os nossos corações.

– Se você for na casa do Jack, ele pode te dar uma carona. A Nefertiti ainda está com gasolina no tanque? – perguntou Romolo na maior cara-de-pau

– Tem sim gasolina do tanque, Romolo. E sim, você não precisava ter sugerido, eu mesmo me sinto na obrigação de levá-la pra casa.

Para alívio geral e contentamento da nação, Perla disse que quando o pai dela chegasse talvez ela pudesse levá-la pra casa. Mas eu sempre prefiro a certeza a duvida. Afirmei que ela era minha responsabilidade e que eu mesmo me encarregaria de levá-la pra casa. Perla pareceu um pouco desconfiada das minhas intenções, mas lancei a ela meu famoso olhar “eu sei o que você fez no verão passado” e ela se calou. Tenho quase certeza que tinha visto uma chama de interesse do lado dela quando olhava pros peitos da Nanda.

– Jack, pare de olhar para os seios da Nanda, lembre-se que você ainda está namorando com Hikari.

Eu mato o Romolo!

– Ah, sua namorada tem um nome lindo! É bem legal, gostei. Posso conhecê-la um dia? – é impressão minha ou ela nem ligou? Valeu, universo!

– Claro, claro… Mas você é comprometida? – odeio parecer curioso, mas precisava explicar a ela que meu relacionamento estava completamente desgastado e que eu iria terminar com ele em breve.

– Sou quase casada. Minha namorada e eu nos conhecemos ano retrasado num baile funk e ficamos juntas a noite inteira. Mas quando fomos embora, não tínhamos trocado telefone aí eu pensei: “bem, mais uma na conta”, mas não foi bem assim. Em outra festa que eu fui, numa tenda eletrônica, ela também estava lá e perguntei se ela se lembrava de mim e ela falou que sonhou com a minha boca durante semanas. Dessa vez, trocamos telefone. Aí começamos a ficar, e do fica começamos a ter um lance, depois um romance, e agora estamos namorando, mas ela disse que vai me pedir em casamento. Só estou esperando ela sair de casa.

Romolo e eu estávamos completamente bestas, mas Perla parecia ter ganhado o dia com essa notícia. É, ela realmente estava interessada na Nanda. Levantei-me da mesa e disse que era hora de irmos embora. Romolo e Nanda me acompanharam. Quando saímos, tomamos nossos ônibus depois de algum tempo esperando na parada próxima a casa de Perla, assim, Nanda, Romolo e eu fomos para a minha casa apenas para pegar Nefertiti e deixar a coitada em casa. Mas é óbvio que a função de Romolo nisso tudo era acalmar meus pais só no tempo deu levá-la e voltar, coisa que ele faria muito bem.

Quando chegamos na porta da minha casa, pensei que teria milhões de viaturas de policia e provavelmente metade da vizinhança na minha casa consolando meus pais, ou pelo menos uma ampla gama de parentes que viria para dar forças pelo meu sumiço. Era realmente muito bom saber que sou amado ao ponto de não merecer nem mesmo um boletim de ocorrência. Fomos discretamente até a garagem para pegar Nefertiti, e quando o fizemos, Romolo ficou esperando sentado enquanto eu tentava ligar minha rainha sem muito barulho.

– Vê se não demora, viu? – recomendou ele.

Acenei uma afirmação com a cabeça e sumi pela noite afora com Nanda na garupa e o vento na cara. Pilotar de noite é uma das melhores sensações do mundo, ainda mais quando o trânsito já está ficando mais fraco. Então do meu bairro até o bairro da Nanda foi bem menos que vinte minutos. Cheguei na porta dela um pouco depois de 19h30min. Quando desliguei a moto e esperei ela sair da garupa, fui até lá na porta para ver se tinha alguém.

– Você é muito gentil, Jack. Cavalheiros ainda existem mesmo nesse mundo.

Olhei-a com um olhar suave, técnica de sedução infalível. Fixei meus olhos castanhos nos olhos negros dela, e disse:

– Não é mais do que meu dever para com uma dama.

Ela riu o riso dos anjos. Quão doce poderia ser aqueles lábios?

– Agora que você sabe onde eu moro, você vai voltar? – perguntou ela, com inocência.

– Sempre que eu tiver tempo! Você disse que estava quase casada com sua namorada, mas uma traição está fora de cogitação?

Ela deu apenas um sorriso e aproximou a cabeça bem devagar em direção a minha. Ela era bem baixinha, então me inclinei um pouco para baixo enquanto ela ficava na ponta dos pés para ficarmos mais ou menos do mesmo nível. Olhos nos olhos, respirações se confundindo, e nossos lábios sedentos um do outro se aproximavam cada vez mais. O escuro era facilitador das sensações, mas isso não impediu o fechamento dos meus olhos quando nossos lábios fizeram contato. Indizível confusão de sabores, inconfundível arte que se entende por todos os povos. Sublime aquele que fez tua boca e sagrado aquele que uniu a minha junto a tua.

Ficamos assim por segundos incontáveis. Não me pareceu difícil soltá-la, mas soube que jamais beijaria alguém assim de novo. Como eu sou galinha. Quando existem outras opções de pessoas para possuir, nunca me faço de rogado, e todas que aparecem vez a acrescentar minha coleção. Mas dessa vez, sei lá… Senti que estava traindo a Nanda quando ficava com Hikari ou mesmo com Romolo.

– Nossa, nossa. Assim você me mata – disse ela me provocando.

Ri com isso.

– Sério que você gostou? Eu gostei mais do seu beijo.

– Jack, não seja modesto. Você sabe beijar muito bem mesmo, mas eu tenho que ir. E você prometeu que não iria demorar. Romolo pode ficar com raiva.

Quase tinha me esquecido que tinha que voltar pra casa. Estava tão bom conversando ali com a Nanda que eu realmente pensei que não tivesse lugar pra voltar. Mas eu tinha que encarar os fatos: eu não sou nômade. Tenho uma casa, pais que me amam e uma mãe que vai me assassinar pelo meu colchão. Suspirei e me despedi da Nanda e voltei para Nefertiti, esperando que quando chegasse em casa, Romolo ainda estivesse lá.