Radiação Arcana: Totem De Arquivo

Capítulo 5: O Ilusionista e a Caverna


Depois do encontro com o botânico do deserto, caminhamos mais umas três ou quatro horas. A noite logo ia cair, mas não tínhamos onde dormir de forma segura, como numa hospedaria. Nossos personagens ficariam cansados se não descansássemos. Por isso resolvemos descansar numa pedra de arenito com quase dez metros de altura. Cada um de nós faria uma hora de vigia, acordando o próximo que iria vigiando no fim do turno. Eu seria o primeiro a vigiar.

Como meu irmão estava treinando os poderes do anel de areia, ele ficou acordado, me fazendo companhia. Descobrimos que cada anel nos dava um poder, mas quando passávamos de nível recebíamos outro poder. Meu irmão tinha um poder que fazia a areia segurar o inimigo, impedindo-o de se mover. Mas como não teríamos areia em todo lugar, resolvemos usar alguns potes, que todos os jogadores ganham no kit de iniciante, para guardar um pouco de areia. Assim, meu irmão teria sempre um pouco de munição consigo.

Após uns vinte minutos de sono do Limcon, eu e meu irmão ouvimos um barulho. Era como um grito, um grito de pavor. O som foi aumentando até entendermos que alguém estava gritando por socorro. Sem pensar, eu e meu irmão nos levantamos e corremos em direção ao grito desesperado. Este grito vinha de trás de uma duna próxima, não muito alta, mas mesmo não sendo alta, ainda era difícil de subir, por isso ao chegarmos ao topo estávamos ofegantes.

Uma pequena garota estava sendo atacado por um escorpião gigante. Ela tentava lutar, mas o inimigo era forte demais. O feroz assassino atacava com sua cauda, que pingava ácido. O ácido em conjunto com a areia criava um cheiro horrível, parecido com de enxofre e pneu queimando e comida da tia velha que talvez você tenha (especificamente para quem tem tias velhas que cozinham mal). Dando um giro, o escorpião acertou as pernas da garota com sua cauda com um golpe lateral, derrubando a menina. Ela iria morrer se fosse atingida no chão, pois inimigos atacados enquanto estão deitados levam dano crítico, se não conseguirem se defender. Antes que o escorpião pudesse fazer algo, corri com toda a velocidade que eu podia adquirir, para tentar salvar a garota.

Quando cheguei a 10 metros de distancia a garota e o escorpião sumiram, dando lugar a um jogador (sabia por causa das informações de jogador que apareciam quando eu olhava para ele). Ele era um elfo, muito bem vestido com trajes de algodão roxo e azul. Se não fosse a pele extremamente branca e seus longos cabelos loiros, da mesma cor de seus olhos dourados, eu diria que era um indiano perdido no deserto.

Meu irmão já tinha me alcançado e estávamos nos olhando, espantados. Antes que pudéssemos concretizar a pergunta que se passava em nossas cabeças um zunido fortíssimo quebrou o barulho monótono do deserto. Caí no chão, tentando acabar com o barulho infernal tampando os ouvidos. Mas o barulho parecia vir de dentro da minha cabeça. Olhei para meu irmão, esperando vê-lo de pé me olhando, mas ele também estava no chão. Pela lógica, o barulho estava atingindo nós dois, pois meu irmão também tampava os ouvidos. O elfo indiano caminhou até nós. Quando chegou a dois passos de mim, parou, estalou os dedos e o zunido sumiu tão rápido quanto surgiu. Olhei para cima, encarando o jogador. Eu sabia que foi ele quem nos atacou. Sorrindo, disse:

– Agora que vocês provaram do meu poder, acho que poderei pedir-lhes um pequeno favor. O que acham?

Pensei em negar, mas a memória do zunido me fez responder:

–Sim, mas, por favor, não nos faça sofrer de novo.

–Prefiro desse jeito. Então, preciso que vocês façam uma coisa para mim. Logo ao pé daquela montanha existe uma caverna. - disse ele, apontando para a montanha, a mesma que eu, Limcon e Fear queríamos usar para cortar caminho. - Quero que vocês entrem nela e eliminem o jogador que vive nela. Depois peguem seus itens e traga-os para mim. Em troca darei 500 de xp para cada um de vocês e não vos atacarei.

Nós concordamos com a cabeça. O medo nos dominava. O poderoso jogador sorriu para nós. Olhei para onde mostrava o nível dele. Quase tive um infarto ao perceber que ele era nível 30. Se nós tentássemos lutar contra ele, morreríamos. Mas para nossa alegria, o indiano nível 30 sumiu, dizendo:

–Até logo!

Eu e meu irmão descemos a duna, indo em direção a grande pedra, para avisar o Limcon, mas quando chegamos lá, ele tinha sumido. Pegamos nossas bolsas e começamos a viajar até a montanha. Sabíamos que Limcon também iria para lá, então talvez nos encontrássemos.

Andamos o deserto inteiro, seguindo em direção à montanha. Ainda estava de noite. Cerca de 1 km antes de chegar ao pé da montanha um bosque surgia. O deserto terminava de uma hora para outra. Possivelmente o jogo definia exatamente o fim de um cenário e o começo de outro. As árvores do bosque tinham seus troncos bem afastados um do outro, mas seus galhos se tocavam, pois eram longos e cheios de folhas. Como sempre faço, colhi algumas frutas. Umas laranjas, umas maçãs, alguns limões e mais algumas frutas que deviam existir somente no jogo, pois nunca tinha visto uma fruta azul do tamanho de uma maçã. Olhei o inventário e o nome da fruta era “Pedaço do Céu”. Um nome bem criativo, já que se você olhasse a cor do céu e a cor da fruta, notaria que elas são idênticas.

Alguns animais viviam no bosque. Eles passavam correndo de uma árvore para outra, entrando em tocas ou arbustos. Mas, felizmente, nenhum animal era agressivo. Meu irmão até segurou alguns coelhos nos braços.

Comecei a sentir a força da gravidade agindo de forma diferente. Tínhamos finalmente chegado ao pé da montanha. Olhei para cima, procurando ver o topo do gigantesco monte de pedras e terra, mas as nuvens tampavam a visão. Era uma montanha realmente grande, pois as nuvens estavam no que parecia ser a metade dele, cerca de 3 km de altura até onde as nuvens chegavam. Começamos a andar para os lados, procurando a caverna que deveria estar por perto. Não foi difícil encontrar, pois algumas tochas indicavam sua entrada. Mas por sorte o sol já nascia então isso facilitou nossa investigação da área por volta da caverna. Tomamos todo o cuidado possível para não cair em armadilhas, pois encontramos algumas. Uma delas atirava dardos envenenados, outra era um chão falso que cobria um buraco de 10 metros, outra derrubava uma árvore por cima de nós. Felizmente eram só essas.

Decidimos comer antes de entrar na caverna. Queríamos terminar a missão o quanto antes, mas nossa fome já estava causando efeitos de fadiga. Comemos algumas frutas, descansamos por alguns minutos e enfim levantamos, de armas nas mãos, eu literalmente, prontos para lutar.

Fui na frente, pronto para atirar com o anel de fogo. Minhas luvas brilhavam, iluminando a caverna. Escutei um barulho de choro, depois uma risada fraca. A risada começou a aumentar, seguida de passos vindos em nossa direção, até que um garoto entrou no meu círculo de iluminação. Ele parecia cansado, suas roupas estavam rasgadas e sujas, seu cabelo negro estava desarrumado, ele tinha um olhar vidrado e profundas olheiras. Devagar, levantou a cabeça, parando só quando seus olhos estavam em um nível que olhavam diretamente para os meus. Ele perguntou:

–Vocês vieram lutar? Se vieram para isso, podem começar, estava ficando impaciente com vossa demora.

Acendi a bola de fogo e em um rápido movimento atirei-a. Ela voou pelo ar até chegar ao peito do garoto, que caiu no chão com a força do impacto. Tremendo, ele levantou. Foi a vez de meu irmão de atacar. Ele pulou, dando um giro no ar e caindo com um chute no ombro do menino, que deu alguns passos para trás por causa do empurrão do chute. Finalizando, meu irmão girou os machadinhos, acertando o pescoço do inimigo, abrindo dois grandes cortes. O garoto caiu no chão, duro, pálido. A cena era triste. Era difícil olhar para o corpo de um garoto morto. Os jogos não deveriam mostrar o corpo dos personagens mortos, era crueldade demais. Nenhum dos jogos que eu joguei fizeram isso. Por que esse tinha de ser uma exceção? Mas dai me lembrei. Quando derrotamos os guerreiros e o botânico, o corpo sumiu imediatamente, virando uma chuva brilhante de dados. Olhei para o corpo, assustado. O garoto se levantava, rindo. Quando já estava de pé, disse:

– É só isso que vocês podem fazer? Então é minha vez de atacar.

Ele avançou atacando com pequenas facas de caça. Acertou meu irmão ferozmente, abrindo um talho em seu braço. Mas isso não foi tudo. Com o ataque surpresa, eu e meu irmão ficamos paralisados. Ele deu mais três cortes no meu irmão, atingindo em seu peito, antes de vir me atacar. Levantei o braço para me proteger, mas isso só serviu para desproteger meu flanco. Deslizando pelo meu lado e me cortando ao mesmo tempo, o garoto rasgou minha capa e abriu um corte profundo em minhas costelas. A dor era insuportável. Ele aproveitou a oportunidade e cravou as facas em minhas costas. Por sorte, minha armadura diminuiu o dano, mas mesmo assim as facas penetraram alguns centímetros em meu corpo. Ele girou as facas, me torturando. Meu irmão corre para me ajudar, vindo com um golpe de machadinho contra o inimigo, mas este só desviou o corpo para o lado e colocou o pé, fazendo meu irmão cair. Ele tirou as facas de mim e atacou meu irmão, cravando as facas novamente. Escutei o grito do meu irmão. Isso me deu raiva, raiva o bastante para superar a dor e olhar para trás. A luz que vinha de fora da caverna me cegava, fazendo-me enxergar só duas silhuetas, já que meu irmão e o garoto estavam mais perto da saída do que eu. Comecei a andar para atingir o menino, mas ele já esperava meu movimento. Com um chute me fez cair no chão. Será que era assim que iríamos morrer? Eu não conseguiria nem derrotar um garoto? Que nível de poder ele tinha para poder derrotar dois jogadores ao mesmo tempo?

Então escutei uma voz vinda do lado de fora da caverna, dizendo a linda e gloriosa frase:

–Surprise Motherfucker!

O barulho do tiro era um som divino naquele momento. O piche queimou o garoto, que caiu no chão, gritando de dor. Diferente da minha bola de fogo, o piche seguia queimando durante um tempo. Então o grande salvador do dia correu contra o garoto, que estava ajoelhado no chão. Com um chute forte, Limcon derrubou o inimigo, desembainhou uma espada curta das costas e cortou a mão do adversário fora. Então notei que em um dos dedos da mão que tinha acabado de perder o corpo estava um anel com símbolo de caveira.

Depois que o anel perdeu contato com o corpo, o garoto morreu normalmente. Possivelmente aquele anel tinha o poder de não deixar o inimigo morrer. Isso era muita sacanagem com os outros jogadores. Levantei, sentindo meu peito fechar os buracos. A recuperação de membros perdidos ou ferimentos era rápida no jogo, desde que não tivesse nada impedindo, como por exemplo, flechas ainda cravadas, facas fincadas ou machados grudados no corpo. Eu tinha quase morrido com a batalha, mas conseguia andar normalmente. Logo iria me recuperar os pontos de vida perdidos. Fui agradecer Limcon, que já estava pegando os itens ganhos na luta. O anel estava incluso nos itens ganhados. Decidimos que Limcon poderia ficar com ele, já que ele derrotou o inimigo. Mas infelizmente o poder as vezes muda de jogador para jogador, então Limcon ganhou somente um bônus de dano de +2 e o poder de causar fadiga em seus inimigos.

Depois de testar o anel, Limcon disse:

Fiquem felizes, vocês também vão ganhar presentes. Enquanto estávamos separados, achei algumas coisas. Tive de lutar contra um louco que parecia ter nível 30, mas era só um dono de anel de poder psíquico. Mesmo assim ele tinha nível 5, então já tinha um poder que criava ilusões, incluindo fingir ter nível alto. Quando derrotei ele ganhei isso aqui.

Ele entregou para meu irmão uma pequena esfera de vidro que continha o símbolo da areia dentro, uma duna com um sol se pondo. Para mim ele entregou um anel com um símbolo estranhou. Usando a minha fraca memória lembrei que era o símbolo da água, uma gota com cachoeiras em volta. Coloquei no dedo, mas longe do meu anel do fogo. Por algum motivo eles não se tocavam, como quando você tenta tocar dois ímãs de polos iguais. Coloquei o anel do fogo no dedo indicador e deixei o dedo do meu entre o anel do fogo e da água.

Mas o que meu irmão tinha ganhado? Aquela esfera de vidro parecia conter um grande presente. Ela tinha um furo onde se encaixava o anel da areia do meu irmão. Por um acaso, todos agora tínhamos anéis e pelo que me lembro essa era uma das formas mais eficazes de amuletos. Mas cada pessoa só podia ter quatro anéis em cada mão. Só que o poder dos anéis era aumentado com o tempo, a partir do xp que ganhávamos, ou com alguns objetos que aumentavam o poder dos anéis.

Mas agora era hora de abrir o presente de meu irmão. Ele colocou seu anel no furo e girou a esfera como se gira uma maçaneta. Ela começou a brilhar e rachar, até criar uma luz quase forte o bastante para nos fazer desviar o olhar. E então quebrou, libertando o presente, que caiu no chão sem fazer barulho. Olhei para o agora liberto presente de meu irmão, que pulava de felicidade ao ver o que tinha ganhado. Era um pequeno e amarelo...