Radiação Arcana: Totem De Arquivo

Capítulo 39: Queridas Bonecas


O lagarto gritou quando percebeu que estava abraçado em um corpo não totalmente decomposto. Ao passar pelo portal, Supreme caiu em cima do cadáver com o nariz exatamente no tórax quebrado cheio de moscas. O cheiro dos defuntos preenchia a sala, mas as moscas ganhavam na competição de Quem Incomoda Mais.

Levantei e dei um tapa no rosto do bárbaro, tentando tirar ele daquele estado.

— Calma, caramba! É só… um morto — falei sem entusiasmo.

— Só um morto? — ele rosnou.

— Está bem, é um morto coberto de moscas com o peito quebrado, a pele e carne apodrecida e — virei o corpo de costas — as costas carbonizadas.

— Claro, só isso — Limcon ironizou. — Garanto que o valente bárbaro corredor de maratonas não tem medo disso, não é?

Irritado, Supreme grunhiu alguns xingamentos antes de introduzir Fear a conversa.

— É esse toco de gente que gosta de mortos, não eu!

A lâmina da faca do pequeno assassino brilhou entre os pés do descendente de dragão, que pulou para trás e quase caiu tropeçando em outro corpo inanimado. Ao nosso redor, muitos heróis jaziam no chão de pedra.

Eu estava começando a enjoar de ver sempre os mesmos corredores tão grandes que não se conseguia ver o final e tão cinzas que me lembravam a vida após a 7ª Guerra Mundial, mas, para minha sorte, nós estávamos em uma ampla sala retangular. A parede do portal media cerca de vinte metros, metade da parede de comprimento do cômodo. Os primeiros cinco metros de cada lado das paredes menores eram de pedra polida e cinzenta, mas entre esses o chão era feito de pequenos tubos de bronze. Se percorrêssemos todo o trajeto, chegaríamos a outro portal, que estava do lado de uma alavanca de madeira com base de ferro na parede.

Em diversas partes da sala, corpos queimados permaneciam em posições estranhas, como se tivessem morrido se debatendo. Todos tinham roupas, pele, carne e ossos queimados, com moscas se aproveitando para encher de larvas.

— É uma sala de desafio — Fear falou. — Esses tubos devem fazer parte disso. Mas antes de pensarmos nisso…

O pequeno olhou para o portal de onde tínhamos vindo, porém este não era mais um espelho. A imagem ainda era trêmula dentro do retângulo de ouro, mas não nos refletia. Como se fosse uma televisão, a passagem mágica mostrava o que acontecia no corredor de onde tínhamos vindo, porém era difícil entender.

Eu e meu irmão passamos a cabeça pelo portal. Senti como se estivesse mergulhando a cabeça na água, mas nada me molhava. A cena que vi era aterrorizante.

O corpo da assombração havia sido trucidado, como se um caminhão tivesse passado por cima dele. Seus braços e pernas eram tiras de carne moída, cada um longe do outro e visivelmente foram arrancados com brutalidade do corpo. O torso estava aberto, com os ossos das costelas quebrados, as tripas desenroladas servindo de almofada para cabeça recém retirada do pescoço. Porém algo me intrigava.

— Não tem sangue — pensei alto.

— Ele era um morto. Deve ter morrido há muitos anos, seu sangue secou em seu corpo. Mas que cena horrível essa.

Passamos a cabeça pelo portal de novo, enxergando todos os nossos colegas com uma cara assustada e curiosa.

— O que aconteceu? — Skarlatte gaguejou.

— Alguém… Alguma coisa pegou a assombração — Fear contou.

— E trucidou com ele. Só de lembrar o que vi me dá calafrios — sussurrei.

— Mas pelo menos descobrimos que tem algo que põem medo nas assombrações — Fear retrucou. — Além dos desafios, armadilhas e monstros de terror, temos que nos preocupar com isso agora.

Irritado, o helmen chutou um osso carbonizado para longe, que caiu sobre um dos tubos depois de quicar em dois outros. Um chiado como de chaleira fervendo cresceu espantosamente antes que a labareda laranja queimasse ainda mais o resto de cálcio humano.

— Fogo… — falei com um sorriso no rosto.

— E parece que o que desarma a armadilha é aquela alavanca. Até que faz sentido — Limcon deduziu.

— Então já sabemos o que fazer, certo, Balazar? — Life zombou. — Vá lá, chifrudo, mostre seu poder.

Escutei uma risada baixa de Supreme e perdi a paciência. Sem pensar, marchei por cima dos canos de bronze. Sentia o ar aquecer e as chamas lamberem meu corpo, sem me machucar. O fogo em mim era como a brisa em alguém normal, era algo que me fazia sentir bem e relaxar. Parecia que eu havia tomado uma poção de cura, pois as células do meu corpo começaram a se encher de energia. Um sorriso maléfico nasceu no meu rosto.

Passei facilmente toda a sala, até chegar na alavanca de carvalho. De longe eu não havia percebido, mas uma mão esquelética segurava o equipamento, o braço de alguém que morreu queimado antes de chegar ao mecanismo. Joguei os ossos fora e apliquei toda a minha força para baixo. No início, a alavanca parecia estar emperrada, mas assim que começou a se movimentar, não precisei usar tanta força.

Olhei para trás, onde o caminho de cadáveres queimados deveria ter deixado de ser um perigo. Para ter certeza, dei alguns passos em cima da armadilha, mas nada aconteceu.

— Está livre, podem vir! — gritei.

A equipe caminhou com cuidado pelos canos, com medo de que a armadilha milagrosamente voltasse a funcionar. Porém eles tinham um pouco de razão. Rangendo, a alavanca começou a subir. Agarrei-me nela e usei toda minha força para atrasar o movimento.

— Corram! Não vou aguentar por muito tempo.

Sem pensar duas vezes, os heróis correram em minha direção. Assim que eles passaram do perigo, soltei a alavanca, pois não aguentava mais segurar. Meus músculos gritavam de dor.

— Que droga! Isso é muito forte — disse apontando para a alavanca.

Joguei-me nos canos, que expeliram o carinhoso fogo que abraçou meu corpo. Senti-me anestesiado e muito melhor quando as chamas foram absorvidas pelas minhas células demoníacas.

— Isso me ajuda muito — falei para os outros entenderem o que eu estava fazendo.

— Achei que você tivesse enlouquecido — Supreme disse. — Mas por que não faz isso com suas próprias chamas?

— Quando você toma sua própria saliva, sua sede passa? — indaguei.

Pensativo, o bárbaro sorriu entendendo minha lógica.

— Aqui parece um lugar seguro para descansarmos, o que acham de sairmos do jogo? Não sei quando poderemos fazer isso de novo — meu irmão perguntou.

Concordamos, pois era uma decisão sensata. Nós não podíamos ficar jogando muito tempo ou nosso cérebro não aguentava tanta informação. Decidimos que dois ficariam vigiando enquanto quatro dormiam. Depois os turnos seriam trocados por dois que estavam dormindo, assim todos descansariam e caso algum monstro aparecesse, poderíamos tentar defender. Os turnos teriam duração de duas horas e seriam repetidos até todos poderem ficar fora do jogo por dez horas.

Minha dupla seria a Supreme, a de Limcon, obviamente, seria Skarlatte e o Fear ficaria com a Jujuba. O primeiro turno ficou para a equipe de meu irmão, então aproveitei o tempo para dormir fora do jogo.

Por causa dos últimos momentos que vivi, tive pesadelos com assombrações.

Eu corria pelos corredores do labirinto, sozinho. Sangue pingava da minha capa, mas não era o meu. A nuvem escura não existia mais, deixando o caminho claro. As paredes de pedra estavam arranhadas e unhas quebradas faziam palavras como socorro ou fuja dela. Um sussurro masculino chamava meu nome, cada vez mais perto.

— Balazar, você não pode fugir, é o seu destino.

Dobrei diversas vezes até me perder no labirinto. Parei, arfando, tremendo e suando. Demmarcs não suavam, pois não sentiam calor, mas eu estava coberto de suor frio. Minhas unhas estavam manchadas de sangue.

— Me tire daqui, por favor! — gritei aos céus.

Caí de joelhos, chorando. Aquele lugar estava me enlouquecendo, mesmo sendo um sonho. Eu não me dei conta de que estava dormindo e, por estar acostumado ao mundo dos jogos, achei que estivesse no Radiação Arcana.

Um calafrio percorreu meu corpo quando uma voz infantil de garota veio de trás de mim, dizendo:

— Onde está minha boneca, Balazar?

Virei-me para ver quem perguntava, mas sangue espirrou no meu rosto, cobrindo meus olhos.

Acordei repentinamente, sentando na cama e gritando baixo, quase arrancando a agulha do soro. Uma enfermeira estava na sala e veio me acalmar, depois de tocar o peito assustada.

— O que foi senhor… — ela leu meu nome na prancheta, mas a interrompi antes que pronunciasse a maldita palavra.

— Foi só um pesadelo, não se preocupe. Pode me trazer um copo de água gelada?

— Claro, vou buscar — a enfermeira magricela abriu a porta e saiu apressada, balançando os cabelos curtos e loiros.

Parei e lembrei do sonho, dando um tapa na cara.

— É só um sonho, você está enlouquecendo. Não pode ter medo agora que está tão perto de ganhar o que tanto buscou.

Respirei fundo e meu coração parou de bater tão rápido. A enfermeira trouxe o copo d’água com um calmante, mas recusei o comprimido agradecendo a gentileza. Deitei na cama e fiquei pensando em muitas coisas, mas uma não saia de minha cabeça, mesmo depois de cravar uma espada na minha barriga.

Aproveitei que estava acordado para fazer todas as minhas necessidades, desde uma boa refeição até um banho quente. Podíamos viver no Polo Norte e ser pobres, mas a água tinha de ser agradável, principalmente em um hospital.

A qualidade das cidades da região havia melhorado, pois os prefeitos fizeram um plano de administração da cidade muito bem elaborado, que tirou da miséria boa parte da população. Depois que eu e meu irmão saíssemos do hospital, iríamos viver em um abrigo para órfãos. Jeff ajudou os políticos, fazendo a internet funcionar em toda a região coberta de gelo e ligando todas as cidades à Lua.

Antes, para se comunicar com os burgueses lunáticos, tínhamos de esperar a visita mensal, que recolhia os impostos. Agora poderíamos conversar e negociar com eles, já que nossa fala chegaria instantaneamente.

Minha dupla só teria de fazer vigia depois de quatro horas de descanso, então tive tempo para descansar antes de entrar no jogo novamente. Supreme veio cinco minutos depois de mim e o par de namorados parou o turno para descansar.

— Por mais legal que seja jogar, ficar lá fora está começando a ser melhor — o bárbaro disse.

— Te entendo, cara. Não é porque lá fora é um lugar bom, mas aqui está começando a virar nossa rotina, ao invés da diversão. Além que agora temos que ficar nesse maldito lugar com essas malditas assombrações para cumprir essa maldita missão — retruquei.

— Sim, mas daqui a pouco iremos para a Lua, viver melhor, no luxo, com garotas, comida e videogames novos. Talvez nunca mais precisaremos vir para cá.

— Eu acho que mesmo depois de ir para a Lua, seguirei jogando. Gosto daqui e passei a ver isso como uma realidade. Para nós não passa de um universo fictício, mas os moradores das vilas, cidades e reinos consideram isso tudo realidade. E se…

— E se na vida real nós também não estivermos em um jogo? — Supreme completou minha fala. — Já pensei nisso também.

— Você é mais esperto do que parece, lagartão — zombei.

— E você mais corajoso do que devia, chifrudo. Não sabe que não se deve mexer com o poderoso bárbaro Supreme? — ele falou estufando o peito e fazendo posição de herói.

— Nunca me ensinaram isso, assim como não te ensinaram a escrever o nome direito, Supreme — falei com ênfase no E.

— Ok, você ganhou, e usando esse argumento sempre irá ganhar. Quer jogar alguma coisa?

Radiação Arcana proporcionava uma série de jogos menores, como truco, pôquer, canastra, xadrez, damas, batalha naval, entre outros. Diferente de Limcon e Skarlatte, que passaram o tempo namorando, eu e Supreme apostamos algumas moedas de ouro em um jogo de pôquer. Quando comecei a perder muito, decidi recuperar o dinheiro com outro jogo.

— E se jogássemos batalha naval?

— Está bem, vou te ganhar do mesmo jeito — ele zombou.

Diferente do que disse, perdeu de lavada, me entregando tudo que tinha pego de mim e mais um pouco. Para a sorte do garoto elétrico, o turno iria trocar novamente. Fear e Jujuba entraram no jogo e nos avisaram que podíamos sair.

Toda vez que eu e Supreme voltávamos a fazer vigia, arranjávamos um jogo novo para jogar. No fim de todo o tempo de descanso, eu perdi míseras quatro peças de ouro.

— Tudo isso para tão pouco — o jovem retrucou.

— Não reclame, você não teve que dar seu dinheiro para um trapaceiro. Sei que você movia seu braço na velocidade da luz para pegar cartas do meio do baralho — reclamei.

O par de atiradores, o assassino e a paladina entraram no jogo, determinando que a hora do soninho havia chegado ao fim. Depois de chegar as armaduras, armas, penas e escamas, encaramos o portal.

— Todos prontos? — perguntei.

Com um sinal de cabeça, todos marchamos para o outro lado do espelho. Novamente eu achei que iria sair molhado. Quando abri os olhos, me deparei com um longo corredor sem névoa, que era cortado por outros corredores que cruzavam, fazendo esquinas. Poucos eram na transversais, mas todos eram retos como a espada de Jujuba.

— Pelos menos aqui podemos enxergar melhor. Limcon, teste sua arma para ver se encontramos a bala lá na frente — meu irmão liderou.

— Eu não vou buscar — Supreme avisou enquanto Limcon atirava.

— Não se preocupe, medroso, nós vamos ir até lá juntos. Se nos separarmos, é mais fácil para sermos dizimados. Nunca assistiram filmes de terror?— Fear perguntou.

— É, você está certo, vamos ter de ficar juntos dessa vez — Skarlatte falou segurando a mão do namorado.

Caminhamos em formação de batalha olhando pelas esquinas para não sermos pegos de surpresa. Meus ouvidos pareciam fazer força para não serem traídos. Andei próximo a Jujuba, pois eu devia uma para ela. A paladina me ajudou na fuga da assombração, então eu tinha de ajudá-la caso alguma coisa acontecesse. Vez ou outra minha mão esbarrava na dela, mas eu não sentia sua pele por causa da minha velha amiga manopla.

— Pare de fazer tanto barulho, Supreme — Fear sussurou.

Realmente o bárbaro não parava de fazer barulho. Ele parecia uma nuvem de tempestade, sempre soltando bocejos altos, batendo as correntes, dando passadas barulhentas ou falando alto para tentar tirar a tensão.

— Se algo estiver por perto, vai nos escutar e nós não conseguiremos ouvir, cara — Limcon falou baixo.

— Desculpe, vou tentar ficar mais silencioso — o lagarto respondeu.

Porém, os passos seguiram sendo barulhentos e, às vezes, o garoto fazia barulho, que eram seguidos por muitos pedidos de desculpa.

Passamos por muitas esquinas, mas decidimos não entrar em nenhuma, pois poderia ser uma armadilha igual a da assombração anterior. Andamos por duas horas pelo caminho de blocos rochosos, escutando o eco dos passos, arrotos e até mesmo peidos de Supreme.

— Puta que o pariu, cara! Para que ficar fazendo isso? Sério mesmo, você deve gostar de chamar aqueles monstros — Jujuba brigou.

Se as escamas pudessem corar, Supreme seria o herói mais corado do mundo.

— Juro pela deusa do conhecimento que minha espada vai fazer uma cirurgia no meio das suas pernas se você continuar a fazer barulho — a paladina apontou a lâmina prateada no pescoço do bárbaro, que engoliu em seco.

Seguimos a marchar, porém estávamos quase em silêncio agora. O barulhento tentou diminuir o barulho, porém não era um Fear da vida para se mover como um fantasma. Subitamente o assassino parou.

— Eu estou me esforçando, por favor, não briga comigo — Supreme começou.

— Não é isso, não se preocupe. Olhem ali — o ladino apontou para algo a nossa direita em um dos corredores que cruzavam com o corredor que estávamos.

Esforçando-me, percebi que havia algo no canto da parede com o corredor.

— Talvez nós não estejamos no corredor principal, e sim só em um secundário que não dará em nada. Podemos estar perdidos e nunca nos daríamos conta — Limcon pensou alto.

— Muito bem, Limcon, você pode estar certo. Infelizmente, temos que pensar como um monstro daqui. Pensando que os heróis inteligentes tentariam seguir os caminhos principais, os monstros fariam emboscadas nesses locais, pois teriam mais chances de encontrar presas. Se olharmos por esse lado, talvez esse corredor ali seja o principal — o assassino disse.

— Então devemos seguir por ele? — Skarlatte falou.

— Podemos pegar um caminho paralelo e cuidar para ver o que acontece no principal — planejei.

— Boa ideia. Será menos perigoso, mas ainda assim os inimigos podem estar nos esperando.

Dobramos noventa graus, aventurando-se rumo a morte. Só de pensar que poderíamos ser atacados de surpresa e morrer dolorosamente na mão de algum ser sem piedade eu já começava a tremer de medo, assim como Supreme. Contudo, o bárbaro fazia suas correntes balançarem e os elos se chocarem.

Nos aproximamos do que Fear havia avistado no canto da parede e comecei a analisar o que vi. Unhas quebradas faziam montes e sangue escorria por elas entre os sulcos das rochas do chão. Senti nojo ao ver a cena, me virando para trás e fingindo estar checando nossa retaguarda. Quando me virei para frente, meu irmão estava investigando com uma unha na mão.

— O sangue secou, então ja faz tempo que foi arrancada, talvez o monstro não esteja mais aqui ou talvez esteja com fome. Pela quantidade de unhas e pelo tamanho, imagino que devam ser tantos dos pés quanto das mãos de umas três ou quatro pessoas.

— Que nojo — Skarlatte falou escondendo o rosto no peito do namorado.

— Será que quem fez isso tem um fetiche por unhas? — Life Taster brincou.

— Bem, não temos mais o que fazer nem concluir, vamos em frente.

Continuamos com a caminhada tenebrosa. Por eu fazer parte do último par da fileira, não conseguia ver a expressão dos outros, mas sabia que todos tinham medo plantado no coração e essas unhas só irrigaram essa semente. Que monstro torturava suas vítimas? Isso só podia ser obra de assombrações.

Talvez fosse loucura minha, mas eu escutava ecos de gritos de dor às vezes. Em algum lugar, outros heróis morriam nas mãos de outros perigos, sem esperança de serem resgatados por alguém. Na busca por riqueza e glória, muitos perdiam seu maior bem, a vida.

Quando passávamos em um corredor que cruzava tanto o nosso quanto no principal, um de nós espiava para chegar como a situação estava. Aos poucos começamos a perceber que a névoa negra estava voltando.

— O que será que isso significa? — perguntei.

— Se meus temores estiverem corretos, acho que essa névoa vem junto com as assombrações. Porém isso é só uma suposição, já que temos pouquíssimas informações sobre esse lugar — meu irmão disse.

— Espero que não seja isso, mas vamos nos preparar para qualquer coisa. Com nossa visão limitada, o caminho fica mais perigoso. Nós também devemos mandar duas pessoas para chegar o corredor e os atiradores ficam aqui preparados para agir. Quem ficar aqui protege eles — combinei e todos concordaram.

Continuamos andando e checando a situação. Aos poucos a névoa ganhou força, atrapalhando nossa visão. Como antes do primeiro portal, nós só conseguíamos enxergar até vinte metros de distância. Por culpa disso, nós só vimos o sinal quando estávamos realmente perto.

Escrito na esquina de um dor corredores, palavras em sangue nos davam ordens.

— Volte, fuja, corra — Fear leu calmamente. — Acho que eles não querem que nós prossigamos com nossa jornada. Que pena, crianças, vamos ter que descumprir os pedidos.

Eu nunca senti tanto medo na minha vida. Algo me dizia para obedecer as mensagens e dar meia volta, mas algo me dizia para não olhar para trás. Eu sabia que uma assombração iria aparecer logo e talvez alguém morreria. E se meu irmão morresse? Como eu iria viver sem ele? Se o assassino super habilidoso perdesse a vida em uma luta, quais as chances de nós não morrermos também?

Marcas de mãos cheias de sangue contrastavam no cinza mórbido do corredor e das paredes. Alguém havia sido arrastado cruelmente para a morte nas sombras e eu senti um frio na espinha. Talvez a próxima vítima fosse eu, ou Fear, ou Jujuba. Qualquer um poderia morrer hoje.

Logo no fim da trilha de sangue, marcas de garras no chão estavam encravadas e unhas repousavam em um sinal claro, nós não devíamos continuar aqui. Caminhando mais alguns minutos, um objeto estranho chamou a nossa atenção. Fear se aproximou e analisou, usando suas perícias de ladino.

— É uma… boneca.

Observei a boneca de perto. O brinquedo de pano tinha cabelos encaracolados negros e usava um vestido longo e branco, um pouco sujo por estar no chão. No meio do vestido, um furo em formato de coração havia sido feito com alguma tesoura ou faca no lado esquerdo do peito. Mas o mais estranho eram os olhos da boneca. Dois botões de camisa haviam sido costurados no rosto e, por baixo deles, riscos vermelhos marcavam as bochechas como lágrimas, descendo até a boca sorridente. Aquele sorriso, talvez por paranoia minha, parecia cínico, como se soubesse da nossa situação.

Devolvemos a boneca ao chão e continuamos caminho, cada vez mais com medo. Parecíamos estar dentro de um filme de terror, não um jogo de aventura. Talvez na capa do Radiação Arcana estivesse escrito que era para maiores de dezoito anos e nós não vimos.

Chegamos em mais um cruzamento dez minutos depois da boneca.

— Balazar, é sua vez de checar o outro lado, junto com Jujuba — Limcon avisou.

Reclamando, eu e a paladina nos afastamos lentamente do grupo. Por segurança, cada um ia encostado em uma parede do corredor e iria olhar no sentido do outro. Assim, caso avistasse alguma coisa, logicamente faria uma careta de medo, o que avisaria o companheiro.

Calmamente, nos aproximamos da esquina do corredor principal, espada desembainhada, punhos cerrados, mana preparada para trucidar um monstro. Paramos um metro antes da beirada e nos olhamos, prontos para darmos o pulo final e ficar bem na esquina.

Meus lábios contaram até três e nós dois demos o salto. Não havia nada. Continuei observando, esperando que alguém saísse das sombras, mas eu posso jurar pela minha vida que, por uma fração de segundo, vi alguém aparecer e desaparecer no meio do corredor. A aparição foi tão rápida que eu não tive certeza do que vi, mas pude perceber que era alguém vestido de branco.

— Eu… acho que vi uma coisa — gaguejei.

Jujuba espiou para o lado do corredor que eu investigava rapidamente e disse:

— Não tem nada, vamos voltar logo, estou ficando… com medo.

Lentamente e sem tirar os olhos da esquina, começamos a voltar.

— Tá tudo limpo? — Limcon perguntou.

— Está sim, cuidem das nossas costas enquanto voltamos — gritei antes de me virar para eles.

Quase tive um ataque cardíaco quando minha visão caiu sobre eles. Dez metros atrás da nossa equipe, quase oculta pela sombra, uma criança estava parada, inerte. Seus sapatos pretos estavam bem engraxados, então pude ver o brilho que refletia a luz onipresente. Seu vestido branco e sujo quase cobria os pés de tão longo, mas isso ajudava a não mostrar sua pele pálida cheia de marcas roxas de surra. Seus cabelos negros não passavam das omoplatas e dividiam entre os de trás e os que repousavam sobre os ombros. Por ser tão magra e baixinha, imagino que ela deva ter uns onze ou doze anos.

Essa parte da descrição chega a ser fofa comparada ao resto. O sorriso cínico e com dentes pontiagudos parecia nos dizer que nossa morte seria lenta e dolorosa. No lugar dos olhos, dois botões de madeira foram amarrados e, debaixo deles, sangue escorria como se fosse choro. No lado esquerdo do peito havia um furo, mas não somente no tecido, porém na pele também. Da cavidade escorria uma grande quantia de sangue, que não sujava o tecido, pois evaporava em uma pequena trilha de vapor com cheiro de enxofre. Dentro do peito faltava algo e, com um pouco de raciocínio, percebi que era o coração. A imagem da garota falhava, pois esta se teletransportava alguns centímetros constantemente.

— Ga-galera… atrás de vocês — falei quase sem voz.

Todos se viraram com as armas prontas para se defender, mas a garota sumiu instantaneamente.

— Não tem nada, chifrudo — Supreme disse, se virando para mim e fazendo uma cara de terror.

— Irmão, atrás de ti.

Meu corpo gelou, sabendo o que estava na minha retaguarda. Nem eu nem Jujuba nos viramos, paralisados pelo medo. As batidas do meu coração podiam ser escutadas até da Lua, minhas respiração parecia sugar todo ar dos corredores, incluindo o cheiro de enxofre da garota que estava logo atrás de mim.

A voz infantil feminina me fez querer morrer para que a tortura de terror terminasse.

— Onde está minha boneca, Balazar?

Minhas mãos tremiam de medo. Senti minha garganta secar e minhas pernas perderem, aos poucos, a força. Supreme começou a estender o braço, apontando para o caminho de onde tínhamos vindo.

— Está… para lá… — ele falou gaguejando.

— Obrigada — a garota respondeu.

Escutei um leve estalo e ela apareceu do lado dos meus amigos, depois desapareceu, mas pelo movimento da cabeça que eles deram, imaginei que a assombração reapareceu alguns metros depois.

Caminhei até eles, com as pernas tremendo. As escamas do bárbaro pareciam arrepiadas, as asas da Jujuba estavam encolhidas nas costas, tremendo, Fear parecia inquieto, Skarlatte abraçava o namorado, que parecia em estado de choque.

— Essa foi por pouco — o assassino retrucou.

— Garota maluca — o anjo disse com a voz cheia de pavor.

— Eu acho que ela não era uma assombração, pois não teve zunido, não é? — falei.

Todos ponderaram a afirmação.

— É um bom pensamento. Por mais assustadora que fosse, não houve zunido e ela conseguia falar, algo diferente dos outros monstros — Fear concluiu.

Mas, para nossa infelicidade, um zunido cresceu em picos. Em alguns segundos, já estava no auge. A garota apareceu no meio do círculo de defesa que improvisamos, gritando:

— Vocês estragaram minha boneca?

Todos demos um salto e viramos as armas para ela. Em sua boca, sangue espumava. Seus olhos de botão giravam lentamente, arrastando os fios pela pele branca acinzentada. Seus cabelos flutuavam levemente.

— Nós… nós não fizemos… nada, eu juro — Limcon tentou dizer.

— Não minta, elemental de fogo, eu sei que foram vocês — ela continuou a acusar.

Desaparecendo e reaparecendo, chutou a parte de trás do joelho do atirador, fazendo ele se ajoelhar. Rapidamente ela levantou a mão e mostrou as unhas cheias de sangue, que desceram em direção ao pescoço do soldado. Porém, sua namorada estava pronta para salvá-lo. Com uma rajada de tiros, afastou a menina, que cambaleou sem ferimentos.

— Como ousa atirar em mim, sua vadia? — a pirralha gritou, teletransportando de novo.

Dessa vez a garota mordeu a canela da feral, que gritou de dor e caiu no chão, sem apoio de um dos pés. A super metralhadora vem um barulho alto quando se chocou contra o piso.

Retribuindo o favor, Limcon atirou contra a pequena garota, que cobriu a boneca com os braços. Enraivecida com as balas quentes, novamente brigou.

— Pare com isso, ou vou matar vocês! Quer saber, vou matar todos vocês mesmo, pois merecem morrer. Seus dedos sujos tocaram minha boneca, vocês ousaram tentar ferir a mim e ao meu bem precioso! Irei arrancar cada unha de vocês, depois a pele e por último os olhos. Vocês só vão morrer depois de horas agonizando! Vocês não vão conseguir fugir de mim — ela riu maleficamente.

Os dentes mordiam os lábios. Ansiosa, a garota respirava fundo.

Com exceção do zunido, um completo silêncio dominou a sala e meus cabelos arrepiaram, mas não de medo. Até agora algo fazia barulho, mas nós já não prestávamos mais atenção, porque havíamos acostumado. O tilintar das correntes de aço havia cessado. De canto de olho, vi Supreme. Ele estava quieto.

— O que você disse? — o bárbaro perguntou sussurrando.

Eu nunca tinha ouvido ele sussurrar. Por um momento senti mais medo do lagarto do que da garota.

— Vou matar vocês, seus vermes. Vocês vão ser meus brinquedos, morrendo lentamente.

Olhando para o chão, o garoto tempestade respondeu calmamente:

— Você ameaça matar eu e meus amigos, torturando, e depois diz que eu não consigo fugir de você? — os olhos reptilianos levantaram devagar e fulminaram a assombração.

Eu olhava de um para o outro e percebi que a criança deu um passo para trás. Seu corpo ainda não ficava em um lugar fixo, teletransportando-se minimamente a cada segundo.

— Acho melhor você começar a correr — Supreme sussurrou.

A garota sumiu em sua magia novamente. O bárbaro estendeu a mão, enforcando o ar, e alguns milésimos de segundo depois a assombração estava com o pescoço entre seus dedos. Um brilho de eletricidade percorreu o braço do jovem, arrepiando o cabelo da garota, que gritou sem ar. Ela se moveu para longe, massageando a garganta.

— Seu brutamonte desgraçado, vai morrer primeiro — gritou.

Com um novo teletransporte, surgiu atrás de Supreme e jogou os dedos afiados contra as costas expostas do herói. No último momento, este sumiu em um flash, reaparecendo nas costas da garota e enrolando a corrente embaixo da cabeça. Com um chute forte no joelho, fez ela se ajoelhar e colocou o pé nas costas da assombração. Fazendo uma força absurda, tentou decapitar o monstro, em vão.

Sem ar, a garota tentou falar enquanto era enforcada.

— Eu sou imortal, não posso morrer.

— Eu já vi um de vocês morrer, também posso matar um — Supreme falou calmamente.

Eu nunca havia visto o garoto tão sério e silencioso. Ele era a calmaria antes da tempestade, pronto para destruir o que viesse.

Para não morrer, a menina surgiu longe do inimigo, mas este estava do lado dela assim que ressurgiu. Com outro teletransporte, tentou ganhar distância de novo, mas o guerreiro não separava, usando sua velocidade de raio para achar a presa. Cada vez eles se distanciavam mais de nós.

— Supreme, não vá para longe, pode ser uma armadilha! — gritei.

— Eu sei — ele disse quando apareceu do meu lado. — Ela que não vai sair de perto.

Estendendo a mão, criou uma pequena bobina feita de eletricidade. Senti meus fios de cabelo serem levemente atraídos pelo campo magnético de mana. Até onde eu sabia, a bobina precisava ser feita de metal, mas as características da energia mágica quebravam essa regra.

— Isso não irá nos puxar com muita força, mas eu coloquei um ímã de mana nela. Então…

Escutamos os gritos de pavor da inimiga, que tentava se teletransportar, mas era puxada cada vez mais pelo campo criado pelo inteligente bárbaro.

— Poder especial dos raios, campo magnético. Você não tem como fugir de mim depois que eu te toquei — ele zombou.

A assombração arranhou o chão, mas as pedras eram realmente duras. Sangue marcava o piso, derramado pelo furo do coração. Orgulhosa, a monstra não pedia perdão e nem implorava pela vida.

— Você não vai conseguir me matar, seu inútil! Eu vou matar todos vocês.

Caminhando devagar, Supreme se ajoelhou ao lado da garota.

— Assombração maldita, você nunca tocará nos meus amigos enquanto eles estiverem sob minha proteção, entendeu? E eu descobri seu ponto fraco — o herói sussurrou.

Sem fazer muita força, arrancou a boneca das mãos da inimiga, que gritou de medo.

— Não! Você não vai fazer isso, eu não vou deixar!

Novamente ela se teletransportou, mas para o lado do bárbaro, que desviava facilmente das mãos mórbidas. Inutilmente, a assombração tentava recuperar seu brinquedo.

— Quer de volta? — Supreme perguntou.

Sem pensar, ela concordou com a cabeça. Quando o guerreiro atirou para longe sua boneca, a monstra usou a sua magia para ir resgatar. Porém o sempre lesado soldado tinha um plano. Quando tanto a dona quando a boneca estavam juntas, o garoto tempestade lançou um raio contra as duas, as pulverizando instantaneamente. O estrondo do ataque ecoou pelos corredores e o grito de vitória da equipe foi junto.

— Maldita pirralha, queria ter batido mais nela, mas não podia correr o risco da situação mudar de lado. O ponto fraco daquela assombração era seu brinquedo. Alguém descobriu isso e fez o furo do coração, o que machucou a dona de verdade — Supreme contou seus planos.

— Você foi muito esperto, salvou nossas vidas. Nenhum de nós conseguiria lutar com tanta facilidade contra ela — Limcon falou agarrado na namorada.

Todos lembramos da perna da super atiradora, que foi atacada durante a luta.

Peguei uma poção de cura e coloquei o bico nos lábios dela, que bebeu um gole e fez cara de alívio.

— Muito obrigado, Balazar. Essas poções são muito boas, mas estão todas sendo usadas para curar nossas pernas e pés — ela riu.

— É verdade, temos mais algumas para caso algo aconteça. Acho melhor tomarmos cuidado para não perder todos de forma vã — Fear disse sombriamente.

Meu irmão estava certo. Os inimigos eram realmente forte e poderíamos precisar curar ferimentos graves. Claro que não iríamos deixar alguém com a perna machucada, pois alguém lento nos atrapalharia, porém devíamos administrar o líquido mágico com mais sabedoria. As poções de mana não haviam sido gastas ainda, pois recuperávamos aos poucos e nós não gastamos tanta magia.

Supreme inaugurou a primeira garrafa azul, recuperando o que gastou com o campo magnético.

— Eu não sabia que você podia magnetizar as coisas, cara — falei.

— Não sou bom nisso, mas é algo útil. Por mais que eu tenha planejado como matar essa assombração, vocês sabem que não sou o pensador do grupo, então não sei aproveitar cem por cento dos meus poderes.

Concordamos com ele, pois era uma afirmação óbvia. Se Fear não fosse o melhor estrategista, então este seria Limcon, pois o atirador podia ver a batalha de um ângulo diferente. Eu, por mais que fosse o general da S-War, sempre estive envolvido diretamente na linha de frente, o que não me dava uma boa visão. Além disso, eu me irritava fácil, colocando os sentimentos acima da estratégia.

— Por que vocês não pediram para eu curar Skarlatte? — Jujuba perguntou.

— É verdade, nós poderíamos ter pedido. Mas no calor do momento,esqueci que você podia fazer isso, desculpe.

— Tudo bem, demmarc, sei que meu fogo não te interessa muito.

— Depende… — falei.

Percebemos que a névoa sumiu com incrível velocidade depois que a assombração morreu, o que nos permitiu enxergar o fim do corredor principal. Ainda cautelosos, decidimos arriscar o caminho verdadeiro. Quando estávamos a cem metros do fim do caminho, avistamos uma porta de ferro.

Ao chegar a vinte metros de distância, percebemos que não havia maçaneta, somente o buraco para chave.

— Vocês viram no buraco? — Fear perguntou, com a voz trêmula.

— O que? — indaguei.

— A-Alguém... estava nos espiando — eles disse, me encarando com medo.