Pureblood

Vinte e nove — Perguntas sem respostas.


De cara fechada, Natsu adentrou a casa e girou a chave na porta com brutalidade, batendo-a fortemente atrás de si. O som dos sapatos contra o chão ecoava no primeiro andar silencioso, naquela mansão tão deprimentemente vazia. Ou quase. Lucy estava lá, provavelmente na cozinha, mas ele não se deu o trabalho de verificar. Se sentia irritado com absolutamente tudo e todos e definitivamente, não estava a fim de vê-la depois de ter um beijo negado mais uma vez. Sabia que ela não era obrigada a beijá-lo, mas se não queria, por que não o cortava de uma vez? Mas não, precisava fugir no último segundo. Como era irritante!

Subiu as escadas olhando para frente, porém sequer enxergou Lucy e demorou a perceber que havia esbarrado com ela. Não pretendia olhá-la, mas foi algo um tanto involuntário.

E assustou-se com a palidez de seu rosto. Parecia prestes a cair.

— Desculpe, senhor. — sussurrou Lucy, mantendo o olhar baixo; nervosa, pressionava o dedo indicador direito envolto em uma tira de esparadrapo. O curativo já estava ali antes?

— O que aconteceu? — Natsu perguntou, inconscientemente colocando os braços ao redor de sua cintura com a certeza de que ela desmaiaria. A loira corou com o ato e mesmo com vergonha, não a soltou. Pressionou o corpo delicado contra o seu e os olhares de ambos encontraram-se por uma fração de segundo.

— O que… aconteceu? — Lucy pareceu apavorada, em seguida erguendo o dedo com o curativo. Seus músculos ficaram menos tensos. — A-Ah… o senhor está falando disso? Q-Quebrei um copo enquanto lavava a louça. Eu… eu espero que não seja um problema… não fiz por mal, senhor.

O rapaz quis rir por ela se sentir tão mal por um copo qualquer e tentar justificar que não o havia quebrado com más intenções. Era difícil imaginar alguém como Lucy fazendo algo daquele tipo de propósito. Era… fofa demais para quebrar algo por querer. Espere, no que estava pensando?!

Natsu deu de ombros.

— Não é nada demais.

— Uhum. — respondeu a loira, sentindo os olhos enchendo-se d’água. Não queria chorar em sua frente. Ele com certeza pensaria que ela era uma tola, se é que já não pensava…

Evitava a qualquer custo olhá-lo diretamente porque sabia que não conseguiria se conter sabendo que a visão que tivera enquanto lavava a louça não era real. Ainda, mas precisava descobrir o que fazer para que o futuro não fosse terrível daquele jeito… de qualquer forma, Lucy estava feliz por Natsu estar a salvo; estava feliz por ouvir sua voz, feliz por sentir os braços dele ao redor de sua cintura e inalar o leve perfume de suas roupas. Tão feliz que se o encarasse, acabaria fazendo o que não devia.

— Foi… foi só isso mesmo? — perguntou o rapaz quase sem mover os lábios. Não queria parecer preocupado, considerando que mal podia assumir consigo mesmo que estava até um pouco preocupado com o fato de ela aparentar estar tão perturbada. Algo lá no fundo lhe dizia que não era por causa do copo quebrado… mas poderia começar a ter exagerado.

A criada fixou os olhos castanhos em seu rosto, com lágrimas escorrendo pelas bochechas coradas. Pressionou-o contra a parede e, na ponta dos pés, beijou-o com doçura infantil.

Imóvel, Natsu arregalou os olhos de susto; fora tudo rápido demais e ele até mesmo duvidava que estivesse acontecendo de fato. Não conseguia reagir aos beijos rápidos e sutilmente angelicais que recebia, beijos que emitiam um som discreto a cada vez que seus lábios separavam-se um do outro. Dizia ao próprio corpo para se mover e correspondê-la, mas era difícil até respirar. Diabos, por que estava sem saber o que fazer justo agora?

— P-Por favor, m-me desculpe, senhor! — exclamou Lucy, recuando sem se lembrar de que estava no meio da escada; o resultado, claro, seria o desastre. Desiquilibrou-se no degrau e saindo da espécie de transe, Natsu conseguiu segurá-la. Mas para sua desgraça – que pouco depois descobriria que não era tão ruim assim–, acabou por igualmente perder o equilíbrio e os dois rolaram dolorosamente até o piso do primeiro andar.

Um silêncio mortal pairou pelo cômodo enquanto se encaravam enrusbecendo mais a cada segundo. Lucy estremecia, completamente embaraçada pela posição estranha em que encontrava-se com ele logo após um momento ainda mais estranho.

Natsu sentia como se o coração estivesse prestes a rasgar seu peito, ou que fosse explodir a qualquer momento de tamanho calor percorrendo cada centímetro de si. Não era do tipo que se envergonhava com facilidade perto de uma garota, mas as condições ali favoreciam coisa alguma. Não havia planejado nada daquilo e por isso era complicado pensar no que fazer sem se sentir um idiota.

De uma coisa possuía certeza: queria beijá-la ainda mais do que antes. Os beijos de antes não acalmaram seu desejo nem em pequena parte; ao contrário, só fizeram com que a chama em seu coração ficasse mais acesa. Estava louco, completamente louco pelos lábios avermelhados a poucos centímetros de distância dos seus. Louco pela sensação estonteante da qual estar com o corpo dela junto ao seu lhe proporcionava; louco por Lucy, por mais insano que soasse. Não ia deixá-la fugir.

— E-Espere… — a loira arfou, fechando os olhos de tanta vergonha. Recebia beijos pelo pescoço que posteriormente partiram para seu pescoço como se em uma trilha, lentamente chegando até seus lábios. Num misto de prazer, medo e repugnância por estar realmente gostando daquilo, Lucy tentou pedir para que parasse.

— Você me beijou sem a minha permissão. — emitiu o rapaz em seu ouvido num sussurro arrepiante e… sensual. Constrangedoramente sensual. — Não é justo que eu a beije também?

A loira estremeceu mais uma vez com um frio na barriga. Pensava que deveria estar muito mais apavorada, considerando que estava com um rapaz sozinha naquela casa enorme; Sting trabalhava no jardim, porém dificilmente a ouviria se gritasse. Além disso, era fraca demais para se defender. Natsu podia obrigá-la a fazer qualquer coisa.

No entanto, fitando seus olhos, pôde enxergar que por mais estúpido que fosse às vezes, ele não seria capaz de machucá-la. Por mais amedrontador que conseguisse ser, agora que o conhecia um pouco mais, não sentia mais tanto medo.

E para si, um beijo era algo especial. Poderia parecer bobagem para alguns, mas… certamente não era justo “roubar” um beijo de alguém. Cometera um erro e precisava repará-lo, certo? Assim ficaria com a consciência tranquila. Uma troca equivalente era o que estavam prestes a fazer e por fim, Lucy fechou os olhos mais uma vez e apenas esperou enquanto entreabria os lábios devagar. Suas bochechas queimavam.

Natsu tentou ser tão delicado quanto ela havia sido anteriormente, mas não durou muito tempo; sem conseguir conter o desejo que fazia-o arder, o ritmo foi do lento ao quase impossível de se acompanhar, mas a loira fazia o melhor que podia e estava gostando do desafio que era manter-se em sincronia com ele. Aos poucos, Lucy sentia que iria enlouquecer pela vontade de tornar aquele momento eterno e esquecia-se totalmente de quem era, o que estava fazendo, o verdadeiro motivo de estar ali, Sting, todas as preocupações que perturbavam sua mente… absolutamente tudo. Beijar Natsu se tornava o tudo.

As sensações calorosas não foram interrompidas quando seus lábios separaram-se, pois um segundo depois já estavam trocando a carícia novamente. E de novo, e de novo, e de novo. Nenhum dos dois tinham a noção de quanto tempo permaneceram daquele modo até que o rapaz parou para encará-la de repente, com expressão confusa.

Ela o fitou de volta e desviou o olhar, totalmente envergonhada. Se dava conta do que estavam fazendo e… céus, se estivesse em condições, correria dali o mais rápido possível. O que seria um simples “acerto de contas” parecia ter se transformado em algo tão intenso que dava-lhe sensações diferentes das quais estava acostumada. Eram prazerosamente quentes e a faziam balançar os quadris de um lado para o outro cheia de ansiedade. Admitir isso para si mesma fez com que cobrisse o rosto avermelhado atrás das mãos, sem conseguir dizer palavra.

— Estamos quites. — murmurou ele, finalmente saindo de cima dela duvidosamente. Piscava várias vezes, como se tentasse desfazer a imensa confusão mental da qual sofria no momento. Também pensava que fora longe demais, que havia se deixado levar pela emoção.

Se levar pela emoção o machucaria mais uma vez, certo?

Em silêncio, subiu as escadas sem olhar para trás, absorvendo toda a mistura de sentimentos em seu coração. Merda.

Com a respiração acelerada, Lucy se levantou com dificuldade e teve de apoiar-se na parede por um pouco. Cravou as unhas no antebraço e mordeu o beiço de dor, constatando que não estava em um sonho. Os beijos, o calor, os sussurros; tudo era real. Estava realmente vivendo aquele dia, como todas as outras pessoas. Mas, se estava na vida real, então a visão que tivera antes de Natsu voltar havia sido real também. Pensar nela lhe deu vontade de chorar… de novo.

Enquanto lavava a louça, sentira tontura e antes que pudesse soltar o copo que segurava, caiu desacordada no piso da cozinha. As imagens repassadas em sua mente foram rápidas, mas com tempo o suficiente para ficarem gravadas em seus pensamentos pelo resto do dia e dificilmente seriam esquecidas até a próxima semana… ou o próximo mês, não fazia ideia.

Enxugou uma lágrima com as costas da mão, tentando não tirar conclusões precipitadas. Estava tudo bem, com sorte, conseguiria se comunicar com Cana à noite e resolver as próprias dúvidas. O importante era que Natsu estava bem, e era isso o que a fazia feliz.

Apanhou o espanador e começou a limpar a estante da sala pela vigésima vez naquele dia, porém era um bom passatempo. Impressionantemente, a estante reunía pó mais rápido do que seus olhos podiam acompanhar.

Erza fingiu não notar a presença de Jellal no estacionamento, sequer olhando-o quando este chamou seu nome. Emburrada, a ruiva acelerou o passo quando o síndico passou a andar atrás dela, deixando claro que não queria conversa. Estava assim desde sábado e algo dizia a ele que ela com certeza estava na Kaneki, mesmo não tendo-a encontrado na festa. E algo o dizia que Scarlet havia lhe visto por lá também.

— Quer parar de fingir que eu não existo? — falou ele, agarrando seu braço com força. Por que ela precisava ter um comportamento tão infantil e irritante? — Você está estranha. O que aconteceu?

— Não querer te beijar é estar estranha? — devolveu Erza, tentando se soltar. O encarava com ódio fatal, já preparando-se para cravar as unhas compridas naquela mão abusada. — Não sou obrigada a fazer nada com você!

Jellal emitiu um chiado que significava um pedido de silêncio, enrusbecendo. A voz dela ecoava pelo estacionamento, por Deus, alguém poderia ouvir!

— Olha só… — começou o rapaz, tentando manter o volume da voz baixo e calmo. Desafrouchou os dedos ao redor do braço de Erza, ainda não soltando-o por completo. — Você estava na Kaneki, sexta passada, certo? Você…

A ruiva o beliscou com força, fazendo-o recuar de imediato.

— Sim, eu sei que você também estava lá! — gritou com lágrimas incontroláveis saltando dos olhos. — E eu vi o que você fez, seu merda!

Paciência não era um ponto forte em Jellal, muito menos com pessoas como Erza. Obviamente, ele começou a gritar de volta com o sangue subindo-lhe a cabeça. Não havia como negar o que realmente acontecera: beijou Kagura – até então, sua ex-namorada – na maldita festa da qual se arrependia profundamente de ter ido. Beijá-la fora um erro, a consequência de ter permitido-se ser levado pelo calor do momento; somente o calor do momento, pois não estava nem um pouco bêbado. O que tornava tudo pior.

Queria se explicar, queria dizer que havia cometido um erro, queria ir contra seu orgulho e dizer a ela que não desejava que ela ficasse aborrecida com ele. Pensou em um milhão de respostas, porém o que saiu de sua boca foi algo completamente diferente de tudo o que pensara.

— Eu beijei ela lá sim, e daí? — berrou, cerrando os punhos. — E você não tem o direito de me repreender por isso como se fosse uma traição, porque eu não sou obrigado a me privar de outras garotas. Eu não sou nada seu!

A última frase ecoou em meio ao silêncio que se sucedeu, ecoando tanto no estacionamento quanto na mente da moça. Mas Jellal estava certo.

Não era nada dela.

— Seu merda! — Erza desferiu um tapa em seu rosto, trêmula em meio às lágrimas. — Eu… eu… eu odeio você! Eu preferia nunca ter te conhecido! Nunca mais tente chegar perto de mim, nunca mais!

Em prantos, correu até o carro e sentada no banco do motorista, o viu dando-lhe as costas através do espelho retrovisor e caminhando como se nada houvesse acontecido. A cada passo que Jellal dava, era como se seu coração estivesse sendo cortado pouco a pouco… e doía, doía demais.

Apoiou o rosto sobre o volante e gritou, soluçou, chorou e xingou aquele estúpido de cabelos azuis ao ponto da garganta começar a arranhar. De nada adiantava fazer qualquer coisa para tentar pôr sua raiva para fora; o ódio e dor permaneciam em si e as lágrimas vinham em maior número e rapidez, fazendo-a se sentir a maior idiota de todos os tempos.

Como ainda não havia aprendido a lição? Qual era seu problema? Por que era tão burra? O que acontecera com a promessa que havia feito a si mesma de jamais se apaixonar novamente?

Eu sou tão estúpida, repetia para si aos prantos. Sim, era uma tremenda estúpida, principalmente por desejar que… ele fosse dela e de mais nenhuma ridícula de narizinho empinado. Queria que pertencessem somente um ao outro.

Lucy beijou Erza na testa antes de sair de seu quarto, sendo já tarde da noite. Felizmente, conseguira lhe fazer adormecer contando histórias tão bobas que fariam-a rir se não estivesse tão deprimida por Jellal. Agora que sabia de tudo o que se passava com a amiga, a loira permitia que algumas lágrimas escorressem por seu rosto; sentia muito por ela e se pudesse, a faria acordar com a agitação e alegria de todos os dias, esquecida do síndico. Se fosse possível, tomaria a dor de Scarlet para si… e sofreria em seu lugar. Desejava com todo o coração que um dia pudesse tornar-se algo real.

A loira deslizou para debaixo das cobertas e tateou embaixo do travesseiro, apanhando a pedra azul que ela acreditava ser o que conectava-a com Cana. Fechando os olhos, pressionou a pedra contra o peito e pediu do fundo do coração para que pudessem se encontrar naquela noite. Na mesma hora, adormeceu completamente; no entanto, não era sua irmã que veria.

Para seu desespero, era a mesma cena que lhe aparecera na Mansão.

Natsu deitado na própria cama com um pano úmido na testa; coberto pelos lençóis, o rapaz estremecia sentindo tanto frio que poderia estar prestes a ter uma convulsão. O rosto vermelho já era um claro sinal de que ardia em febre e o número marcado no termômetro era ainda mais apavorante, embora Lucy não conseguia se lembrar quais eram.

Eu estou aqui, dizia ela, segurando sua mão gélida. Eu estou aqui com você, Natsu.

E de repente, ele parava de estremecer e a mão que segurava encontrava-se… mole, imóvel. Assim como seu corpo por inteiro. Como se estivesse morto.

Lucy chorava ainda adormecida, agoniada por não conseguir despertar. Não podia suportar vê-lo naquele estado… o que significava? Era algo que estava prestes a acontecer? O que poderia fazer para evitar? Cana, precisava de uma conversa direta com Cana, e não repetições de coisas horríveis que já havia visto antes.

Pensava que talvez sua irmã estivesse começando a brincar com ela por qualquer razão que fosse, mas não era nada disso. Logo, entenderia o porquê de tudo.