Pureblood

Trinta — A peça que afeta o tabuleiro inteiro.


Encolhida dentro do moletom, Mira fitava o mar da manhã de quase Inverno. Os olhos azuis destacavam-se no meio da névoa suave que cobria a região da praia vazia. Vez ou outra, a albina pegava um punhado de areia e deixava-a escapar por entre seus dedos; e pensava que era assim como se sentia. Um punhado de areia escapando pelas aberturas da vida, pelas aberturas do… controle. Não conseguia mais pensar que havia controle de algo como antes, era tudo tão confuso.

Sabia que ia enlouquecer e ao menos, que ficasse maluca distante dos outros. Por isso estava ausente de Magnolia há vários dias, sem contá-los precisamente. Deixara uma carta para sua família e uma mensagem de voz para Natsu e esperava do fundo do coração que entendessem que ela precisava de um tempo sozinha. Soava como uma fuga de adolescente rebelde, algo ridículo demais para uma adulta como ela. Mas talvez as coisas fossem melhores assim.

O vento breve esvoaçou seus cabelos claros, momentaneamente erguendo a franja despenteada sobre os olhos. Estes agora fechavam-se enquanto Mira tentava se concentrar unicamente na própria respiração. O frio arrepiava-lhe até os ossos, mas não deveria ser um problema.

Tarde da noite, as três Strauss dividiam o mesmo espaço pequeno de um quarto no Hospital de Magnolia. A mãe de Mirajane e Lisanna jazia tranquilamente sobre a poltrona ao lado da cama alta. O cansaço era evidente em seu rosto, porém era mais sutil quando adormecida; a expressão que possuía ao dormir era definitivamente a de um anjo pisando em terra.

As irmãs ainda estavam acordadas, falando baixinho para não acordar a mãe.

— Mira… — disse Lisanna, coberta de curativos pelo corpo e rosto, além da perna engessada. Os olhos redondos e azul-brilhantes lacrimejavam, fitando os de igual formato e cor que os de Mirajane. Esta fazia-lhe um carinho nos cabelos de curto comprimento, sentada em um banquinho. — Não consigo dormir.

— Por que não? — perguntou Mira, gentil. — Mamãe e eu estamos aqui com você.

A mais nova estremeceu, permitindo-se chorar silenciosamente. Chorar era a única coisa que conseguia fazer naquela situação, se lembrando da dor de ouvir palavras capazes de ferir como uma lâmina afiada que Elfman proferira. E também o quanto pensava que estaria morta logo em forma de consolo durante a surra que ele havia lhe dado. Logo estaria morta e estava feliz por saber que morreria protegendo a mãe. No entanto, ali estava. Respirando. O aparelho que media os batimentos de seu coração fazia um som constante.

Bip, bip, bip.

— Ele pode voltar…

— Ele está preso. — respondeu Mira de imediato, percebendo logo após o quão ríspida fora. — E eu tenho certeza de que não vai conseguir fugir daquelas grades. Todas nós estamos seguras agora.

Mirajane não tinha tanta certeza disso, mas precisava forçar a si mesma a acreditar também para soar convincente. Queria fazer com que sua irmã ficasse tranquila para voltar para casa e dali a alguns dias à escola, vivendo tão bem como estava antes. A mais velha sentia o estômago doer ao imaginar que Lisanna poderia voltar com as intermináveis crises de pânico. Não estava disposta a viver o mesmo pesadelo outra vez.

— Dói demais, sabia? — a mais nova soluçou, controlando-se para não tornar o choro alto. Seus lábios tremiam, dificultando-lhe falar com clareza. — Apesar de tudo… Elfman é nosso irmão...

— Shh… — Mira sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto momentaneamente quente de raiva por Lisanna ainda pensar nele como um membro da família… mas ela percebeu que na parte mais profunda do próprio coração, ainda o amava. Os anos que viveram juntos como irmãos felizes não podiam ser simplesmente apagados apesar de todas as dores, todas as ameaças, todo o terror. Não podiam. — Não pense nisso agora. Você precisa descansar.

As pálpebras da menor ficaram subitamente pesadas e Mira sentiu-se igualmente sonolenta. A albina deitou a cabeça na borda da cama com absolutamente tudo ficando escuro tão rápido que sequer podia pensar direito. Pensou ter ficado adormecida por muitas horas apesar de na realidade, terem sido apenas segundos.

Mirajane abriu os olhos incomodados pela luz anormal dentro daquele quarto escuro e pode-se dizer que estes aumentaram dez vezes o tamanho quando Cana Alberona lhe apareceu por uma segunda vez.

Sua aparência continuava a mesma: os cabelos compridos e castanhos caíam em ondas desajeitadas sobre as costas. Seus olhos violetas e brilhantes destacavam-se em meio à pele morena, em meio ao rosto de feições tão cuidadosamente delineadas.

— Cana. — sussurrou ela com dificuldade para se mover como se sob efeito de algum anestésico.

— Olá, Mirajane. — Cana sentou-se na borda oposta da cama onde, apesar da forte luz batendo em seu rosto, Lisanna continuava completamente imersa em um sono tão profundo quanto o da mãe. O espírito sorriu-lhe brevemente e então, deitou em cima da albina mais nova com a cabeça posta de lado sobre o lado esquerdo de seu peito.

Mira queria mandá-la sair de cima de sua irmã imediatamente, porém jamais conseguiria repreender qualquer coisa que aquela… alucinação fizesse. Alucinação? Já não tinha mais certeza disso. Era incrível demais e ao mesmo tempo, real. Como a personificação de uma deusa.

— Ela é tão quente quanto minha irmãzinha. — comentou a morena com a maior naturalidade do mundo, fechando os olhos como uma criança feliz. A outra simplesmente piscou, apavorada com o relaxamento dos próprios músculos.

— O-O que… quer?

— Nada demais. — disse Alberona em resposta, com olhar carinhoso. Esfregou a cabeça levemente no peito de Lisanna. — Apenas um gesto de gratidão. Você está cuidando de alguém que eu amo.

No mesmo instante, Mira pensou em Laxus. O espírito havia pedido para que ela cuidasse dele. Ele era alguém que ela amara e se aquilo não fosse algo projetado por sua mente um tanto insana, ainda amava. No entanto, estava morta e não podia estar a seu lado; por isso, fizera o tal pedido. Cuide de Laxus, cuide de Laxus. A moça tinha de admitir que… falhara miseravelmente. E no momento, estava separada dele mais uma vez.

Lágrimas escorreram por seu rosto e Mirajane fechou os olhos, envergonhada.

— Não estou, não.

— Isso não é sobre Laxus. — respondeu Cana, sabendo exatamente o que ela pensava sem que precisasse dizer. — É sobre minha irmã mais nova.

— Sua irmã? — repetiu a albina, ligeiramente confusa. Não se lembrava de conhecer alguma outra Alberona. Do que Cana estava falando? — Quem… quem é ela?

— É tão difícil de saber? — a morena emitiu uma risadinha e sorriu mais uma vez de modo que prestando atenção em seu rosto… não era difícil pensar com quem se parecia. A resposta estava na ponta da língua, mas Mira não ousava dizer. Parecia… uma ideia completamente maluca.

— Oh, sim, é quem você está pensando. — falou Alberona, mais uma vez lendo seus pensamentos. A garota movimentou-se na cama, finalmente aproximando os lábios da testa da irmã de Mirajane. Depositou um beijo que fez Lisanna estremecer ainda adormecida e por um momento, sorrir. A marca do beijo possuía um brilho dourado que devagar se apagou. — Obrigada, Mirajane. Por ter sido boa, sua irmã receberá toda a paz que seu coração merece. A tempestade não irá voltar para ela, isso eu lhe asseguro.

Proferindo tais palavras, Cana levantou-se da cama e caminhou com os pés descalços pelo piso frio até a mais velha e suavemente envolveu-a em seus braços para abraçá-la, esta ainda um tanto incapaz de se mover com rapidez.

— Você é melhor do que imagina.

— N-Não sou. — Mira soluçou em um choro silencioso, aos poucos notando que a luz no cômodo diminuía e o calor ao redor do corpo dava lugar ao frio noturno mais uma vez. — Eu não sou…

E assim como a sra. Strauss e Lisanna, Mirajane encontrava-se em um sono profundo e tranquilo como a calmaria das ondas do mar.

Perturbada, Mirajane sentiu as lágrimas escorrerem por seu rosto e furiosa, atirou a pequena mochila que trazia consigo para perto da água. Em prantos e pisando fundo, apanhou-a novamente e caminhou pela praia sem rumo específico.

Às vezes, andar sabendo que podia parar quando bem entendesse era bom.

Estava particularmente frio naquela tarde, mais um dos sinais de que definitivamente o Inverno rigoroso se aproximava. Com uma jaqueta sobre o uniforme, Lucy preparava com carinho uma xícara de café para o sr. Dragneel e por mais incrível que parecesse, finalmente descobriria o que havia na tal sala misteriosa que vivia trancada. Mirajane lhe dissera uma vez que só entrara no cômodo depois de cinco anos trabalhando na Mansão… e haviam sido poucas as vezes.

Nervosa, a loira perguntava-se o que teria de tão extraordinário na sala e o motivo pelo qual ele confiava nela – alguém que trabalhava ali há pouco mais de três meses – para… entrar lá e servir seu café. Sabia que Mira estava desaparecida e logo, era a única criada na casa. Mas ainda assim, era estranho… a deixava ansiosa, contente e amedrontada. Tudo ao mesmo tempo. Por causa de uma sala que provavelmente era como qualquer outra… talvez Igneel apenas não gostasse de deixar a porta destrancada enquanto trabalhava. Ele utilizava a sala para trabalhar, certo?

Café extra forte com um cubículo de açúcar, borbulhando de tão quente. Estava pronto e bastava levá-lo com cuidado ao andar de cima, porém sem delongas; a sra. Dragneel dissera que o patrão queria a bebida pronta até dez minutos. Disse tal coisa com uma gentileza um tanto forçada quando prestava-se atenção em seus olhos exprimindo raiva. Lucy notava que estavam assim há mais de semana.

Terminava de espremer a última laranja antes de despejar o suco que havia feito na jarra de vidro, para o café da manhã da sra. Dragneel. Suco natural de laranja sem qualquer tipo de adoçante para manter a boa forma. Lucy admirava os esforços da patroa para ser saudável, pois não sabia se algum dia conseguiria ser assim. Talvez devesse começar a se preocupar um pouco mais a respeito disso, melhorar sua qualidade de vida… provavelmente conseguiria se fizesse um pouco de esforço também.

Mas ah, havia o trabalho que ocupava a maior parte de seu tempo e se fosse capaz de ser aprovada na universidade, os estudos tornariam seu cotidiano uma bagunça. Deixou a ideia para lá.

A loira suspirou e repentinamente enrusbeceu, lembrando-se do dia anterior com tanta clareza que sentia como se estivesse vivendo aquilo tudo novamente.

— Você me beijou sem a minha permissão. — emitiu o rapaz em seu ouvido num sussurro arrepiante e… sensual. Constrangedoramente sensual. — Não é justo que eu a beije também?

Esfregou as pernas uma na outra quase sem perceber, não entendendo o porquê de se sentir tão ansiosa quando se lembrava do calor prazeroso que sentira como se fosse acontecer novamente. Em primeiro lugar, estava ali para trabalhar e em segundo, bom… não deveria ficar envolvida com ele. Ao menos não de um jeito em que trocassem carícias românticas. Porque as diferenças entre ambos já lhe era bem clara ao lembrar do uniforme que vestia.

Lucy derramou cuidadosamente o suco de laranja na jarra e prestes a erguê-la para enfim, a levar até a mesa, sentiu-se abraçada por trás. Envolta em braços firmes e quentes, a garota corou inalando o delicioso perfume de seus pijamas… ah, o que é que Natsu estava fazendo acordando logo pela manhã?

— B-Bom dia, senhor. — falou, prendendo a respiração para não sentir seu cheiro deliciosamente embriagante. — O-O senhor…

— Foi só um pesadelo.

— O quê?

— Nada. — respondeu Natsu com a voz rouca e baixa, sem desafrouchar os braços ao redor dela. Com os cabelos cobrindo o rosto, dirigiu seus lábios à parte de trás do pescoço completamente despido devido ao fato dos cabelos cor de ouro estarem presos num rabo de cavalo alto. Ali, deu-lhe um beijo demorado que a fez arquear o corpo para trás por um momento.

— S-Senhor, eu… eu realmente preciso pôr as c-coisas na mesa. A sra. Dragneel descerá daqui a pouco…

Seu coração apertou-se assim que o toque quente cessou, porém era melhor assim. Tinha de acreditar nisso.

O rapaz saiu sem dizer palavra e ela esperou tempo suficiente para que ele subisse as escadas, pois não sabia como encará-lo. Segurando a jarra com certo pesar, tomou um susto ao ver a sra. Dragneel na entrada da cozinha. Com uma camisola de seda amarela, a patroa esboçava um sorriso que não condizia muito com o brilho maligno dos olhos verdes, olhos como os de uma onça furiosa.

— Bom dia, sra. Dragneel. — Lucy soltou a jarra de volta ao balcão para fazer uma reverência, engolindo em seco. — A senhora dormiu bem?

— Bom dia, querida. — respondeu Olívia, indecifrável. — Totalmente.

— Eu… eu ainda tenho de pôr algumas coisas na mesa. — disse a criada, envergonhada. — P-Perdão por ser devagar.

A sra. Dragneel deu-lhe as costas momentaneamente girando na ponta dos pés; apesar de estranho, ainda assim o ato era gracioso como o de uma bailarina.

— Está tudo bem. — falou mais baixo do que de costume e dirigiu-se à mesa, aguardando para enfim poder tomar seu café da manhã.

Lucy temia que ela pudesse ter visto o que havia acabado de acontecer e talvez, pensado algo de errado. Ou não.

Ficaria na dúvida tortuosa.

Tomou um pequeno susto ao perceber que Natsu estava encostado na parede da cozinha, talvez observando-a há muito tempo. Céus, como podia ser tão distraída?

— S-Senhor! — disse ela, corando. Ao contrário do habitual, ele não vestia pijamas o dia inteiro. Quando o pai estava em casa, Lucy o via com jeans e um blazer verde ou azul que lhe caía muito bem. Além de sapatos perfeitamente engraxados a partir do momento em que pisava para fora do quarto. Tudo isso para evitar um possível conflito com Igneel por ser “tão desleixado”.

A criada não achava que usar pijamas o dia todo era desleixo. Na verdade, nunca prestava muita atenção no tipo de roupa que ele vestia; qualquer tipo fosse, Natsu continuava elegante e com ar misterioso. Continuava bonito. E pensar nisso a fez enrusbecer ainda mais.

— Deseja… algo?

— Não. — respondeu ele, vez ou outra dando uma olhada na xícara de café. Mantinha os braços cruzados e uma expressão minimamente furiosa. Mas a fragilidade na qual aparentemente se encontrava o deixava menos intimidador do que nunca. Natsu não lhe falaria, mas ela sabia que ele sentia muito por Mira continuar sem dar notícias. E gostaria de poder ajudá-lo se fosse possível. Gostaria de trazer Mirajane de volta.

— U-Um café, talvez? — supôs a criada, percebendo as olhadelas no café atrás de si. O viu baixar o olhar e assentir negativamente com a cabeça, devagar. Parecia querer dizer algo.

Lucy decidiu não fazer perguntas porque não queria irritá-lo.

— Com licença…

— Por que é que você tem que fazer o café dele? — falou ainda olhando para o chão.

Ele estava… com ciúmes?

— Porque eu estou encarregada de preparar os alimentos e bebidas, senhor. — respondeu a criada quase automaticamente, incrédula com o pensamento de que ele poderia mesmo estar com ciúmes. Não fazia sentido.

— Você entendeu o que eu quis dizer! — ele olhou para ela por um momento e mesmo que levemente, suas bochechas ficaram vermelhas.

— É a mesma coisa quando faço o achocolatado do senhor. — disse Lucy, segurando um riso; quase impossível, considerando que ele estava completamente adorável. Certo, precisava levar o café. Concentração!

Natsu se aproximou e ergueu-a pela cintura para que pudesse alcançar seu rosto e claro, seus lábios. Vermelha de vergonha, ela tentou protestar dizendo que realmente precisava levar o tal café, que estava trabalhando e uma porção de frases pré-programadas. No entanto, nada era como planejava.

Ele pode esperar. — sussurrou ele propositalmente ao pé de seu ouvido, já tendo percebido o modo com o qual a postura dela mudava com o ato.

Sem conseguir conter-se, deixou que fosse levada pelas sensações calorosas causadas por ter seus lábios encaixados nos dele, na excitação por ser mais uma vez desafiada a acompanhar seu ritmo veloz. Era como se uma vez perto dele, não poderia se soltar até que fizesse o que sentia que tinha de fazer.

Antes que notasse, já estava sendo pressionada contra a parede enquanto arfava timidamente por receber beijos molhados no pescoço e posteriormente pelo rosto inteiro até retornarem aos lábios. Não conseguia pensar em nada, absolutamente nada.

Momentaneamente fora de si, deslizou as mãos para debaixo do blazer desejando tocar seu peitoral quando percebeu o quão quente o corpo dele estava. Quente, ardendo, como se febril.

Natsu deitado na própria cama com um pano úmido na testa; coberto pelos lençóis, o rapaz estremecia sentindo tanto frio que poderia estar prestes a ter uma convulsão. O rosto vermelho já era um claro sinal de que ardia em febre e o número marcado no termômetro era ainda mais apavorante, embora Lucy não conseguia se lembrar quais eram.

Eu estou aqui, dizia ela, segurando sua mão gélida. Eu estou aqui com você, Natsu.

E de repente, ele parava de estremecer e a mão que segurava encontrava-se… mole, imóvel. Assim como seu corpo por inteiro. Como se estivesse morto.

— O-O senhor está com febre? — perguntou, apavoradamente colocando as mãos sobre sua testa e pescoço. Estavam quentes demais. — Ah, meu Deus… está sim…

— Ei, calma. — disse ele, segurando suas mãos. Achou graça por ela ter mudado tão de repente. — Eu não…

Uma tontura interrompeu-lhe a fala por alguns segundos. Era como se tudo houvesse ficado escuro ao piscar.

— Senhor! — a loira tentou segurá-lo, mas não era forte o suficiente. Teria caído no chão da cozinha com ele se Natsu não tivesse se recuperado num instante. — O que o senhor está sentindo? Aonde há algum termômetro?

— Eu acho que vou dormir um pouco. — ele riu, um tanto confuso. — Não tô acostumado a acordar cedo.

— M-Mas…

O rapaz lhe roubou um beijo apressado e esfregou os olhos.

— Vou dormir.

Lucy deixou que ele fosse, mal se lembrando de como respirar. Sequer pensava nos beijos que acabaram de trocar, somente na preocupação pela possibilidade de ele estar realmente com febre. Não era possível que estivesse com uma tempertura corporal normal naquele estado.

Tentaria ser rápida ao entregar o café do sr. Dragneel para assim poder verificar se Natsu estava bem. Sentia-se tão nervosa que suas mãos suavam frio e trêmula, teve de tomar cuidado redobrado ao subir as escadas.

Bateu na porta daquela sala misteriosa e aguardou que fosse aberta ou que Igneel lhe desse permissão para entrar. Por fim, ouviu a voz grave do patrão dizendo que a porta já estava aberta. Engoliu em seco e girou a maçaneta, pensando em mil e uma coisas no segundo que se passou. Finalmente haveria descoberto todos os cômodos da Mansão e isso a deixava de certa forma honrada; era como se já fizesse parte do lugar. Talvez cedo demais para afirmar, não?

Troféis. Incontáveis estantes ocupadas unicamente por troféis banhados em ouro, outros poucos em prata e o maior de todos feito de diamantes. Todos absolutamente reluzentes, assim como as estantes não possuíam um resquício de pó.

Uma estante de livros tão grande quanto a da sala também ocupou seu campo de visão, e logo após viu uma escrivaninha igualmente enorme, uma mesa de computador e arquivos de pastas; uma poltrona de couro com um criado-mudo ao lado. Luminárias dos anos 90 davam um toque de cor ao ambiente tenso e adulto.

De frente para o computador, estava a cadeira na qual o sr. Dragneel sentava-se naquele momento. Estava de frente para ela, os olhos como os de Natsu lendo-a de maneira ilegível.

— Boa tarde, sr. Dragneel. — disse Lucy, fazendo uma reverência. — Trouxe o café que pediu.

— Feche a porta e venha até aqui. — falou com um tom de voz autoritário, mas felizmente não aparentava estar de mau humor como quando o vira das outras vezes. Hesitante, obedeceu às ordens e parou quase roboticamente em frente a Igneel, sentindo-se uma idiota por não ter ideia do que fazer com aquela xícara. Esperava uma próxima ordem.

O sr. Dragneel estendeu as mãos e com a xícara em mãos, levou-a aos lábios e bebeu do café que Lucy havia preparado com carinho e o desejo de que fosse do agrado do patrão. A loira começou a encarar as estantes pois aquele gole parecia durar uma eternidade; prestando mais atenção às estatuetas, notava que todas elas possuíam um bonequinho vestindo um terno e carregando uma maleta. Assim como ele.

— Não são tantos? — perguntou Igneel, pousando a xícara sobre a mesa, ainda sentado.

— S-Sim, senhor. — concordou ela, imaginando que aqueles prêmios deviam-se às vendas prósperas do empresário. Considerando que ele trabalhava insanamente – tanto que sequer havia tempo para ficar em casa, era esperado. O que a surpreendia mais era o fato de que não havia um pequeno pó por ali. Ele certamente considerava os troféis como realmente importantes para mantê-los limpos daquela maneira… ou para que a sra. Dragneel os limpasse, a pedido ou não. A via entrando naquela sala quase todos os dias em determinada hora do dia, discreta.

— Sabe, Lucy… — disse o homem, levantando-se finalmente. — Todos esses troféus foram difíceis de conseguir. Eu tive de trabalhar muito por eles e toda vez que os vejo, lembro da sensação da vitória. Da sensação de conseguir algo por próprio mérito.

Lucy assentiu em silêncio.

— Claro, antes de tê-los, eu passei por muitas derrotas. Muitas frustrações. Mas algo me dizia que eu tinha que continuar até ser o vencedor e agora eu tenho uma sala praticamente cheia desses prêmios. Tudo porque fui persistente.

— Entendo.

— Você vai fazer o teste de admissão na Fairy Tail University na semana que vem, certo? — ele esperou-a assentir com a cabeça antes de continuar. A criada se perguntou do porquê de ele saber até quando iria ser a prova, um homem atarefado como era. — Não é fácil, mas o que importa é você se dedicar e se concentrar. Quando você veio aqui para a entrevista de emprego, pude ver como parecia determinada ao falar da universidade. Certamente você está estudando bastante.

— Sim, senhor. — respondeu ela, pensando nas pessoas que conhecera em Magnolia. Natsu. Sting. Mirajane. Pessoas que de repente, tornaram-se parte de sua rotina e ela não podia imaginar viver sem elas. E claro, também havia Erza e em como provavelmente ela se sentiria solitária caso voltasse para Rosemary. — Eu realmente espero conseguir, pois darei o meu melhor. Se eu falhar, não serei a única a se decepcionar. Há pessoas que torcem por mim e que precisam de mim por aqui. Então eu vou lutar por eles também.

— Vai lutar?

— Vou! — respondeu sem perceber que estava completamente empolgada. Seus olhos brilhavam. — Eu definitivamente vou realizar meus sonhos.

Igneel sorriu e ela ficou sem reação, jamais pensando que poderia vê-lo sorrir.

— Esse é o espírito da coisa! — informal como nunca, ergueu o braço e estendeu-lhe a palma da mão. A criada levou um tempo para compreender o que significava. Assim que bateram as mãos como num cumprimento entre amigos, Lucy sorriu de volta.

O sr. Dragneel era um homem simpático, no fim das contas. Agora, além de todos os outros, também não poderia decepcionar o patrão.

Na escuridão noturna, uma moça cobrida da cabeça aos pés pelo capuz preto movia-se silenciosamente até o local definitivo carregando uma mochila igualmente negra de tamanho considerável. Esfregava as mãos vestidas em luvas uma na outra, o tempo todo olhando ao redor para verificar se não estava sendo seguida. Apurava a audição, porém o único som que ouvia era o barulho de seus passos nas folhas secas que despiam todas as árvores; o Inverno estava chegando mais depressa do que podia imaginar.

Avistou o casebre e correu até chegar na porta, contente por finalmente estar ali. Abriu-a lentamente e falou baixinho.

Sou eu.

Das sombras da casa precária, aparece uma outra moça encapuzada. Esta, no entanto, era um pouco menor e estremecia de frio. O capuz e roupas de tecido fino e já rasgado eram suas únicas vestimentas, o quão sofria naqueles dias de quase Inverno. O corpo magro tremia e tremia, mas a menor pôde lançar-lhe um sorriso tímido.

A menor levantou-se e apanhou uma pequena vela para acendê-la com um fósforo. Colocou-a no centro do pequeno local e esfregou as mãos nuas e quase congeladas uma na outra.

A primeira moça abaixou o capuz, sendo possível ver seu rosto pelo fogo aceso. Flare Corona passou os dedos rapidamente pelos cabelos ruivos presos por uma trança mal feita. Começou a remexer a mochila, olhando no fundo daqueles olhos cor de violeta e desesperados de frio e fome.

— Você me disse que gostava de verde. — disse Flare, inacreditavelmente gentil. — Então pensei que pudesse gostar desse moletom. E é quentinho.

A menor segurou a peça de roupa grossa, trêmula.

— Pode colocá-lo agora se quiser.

— Quer colocá-lo em mim? — perguntou a moça encapuzada sem qualquer ar malicioso. Simplesmente queria que alguém a vestisse, visualizando tal ato como um carinho entre amigas, ou irmãs… mas notou que talvez Flare não pensasse o mesmo. — Desculpe…

A ruiva riu.

— Venha aqui.

A garota de capuz aproximou-se dela e ficou semi-nua em sua frente, envergonhada por suas roupas íntimas aparentarem serem tão velhas. Flare ignorou o fato, mas pensou que em sua próxima visita lhe traria roupas íntimas novas.

Sentindo certa dor por ver um corpo tão desnutrido bem em sua frente, pôs-lhe o moletom e também uma calça quente que havia trazido, e meias. Aos poucos, a menor sentia-se aquecida como nunca e isso lhe deu uma felicidade tão grande que quase esqueceu da fome. No entanto, seu estômago não.

— Vamos comer? — Flare retirou dois potes de plástico da mochila, cada qual com um sanduíche de tamanho generoso preparados por Yukino. Possuíam vários ingredientes, cada qual fornecendo os tantos nutrientes dos quais a menor precisava. Comendo bem daquela forma, logo ela ganharia um pouco de peso. A ruiva queria vê-la saudável.

Novamente frente a frente, começaram a comer. A garota misteriosa mordiscava o pão com voracidade e por um instante, parou para falar após engolir um pedaço.

— O teste de Lucy é semana que vem. — disse ela, claramente desconfortável por não estar usando um capuz. — Se ela falhar, teremos de mudar tudo o que planejamos.

Flare assentiu com a cabeça, ouvindo tudo o que ela dizia com atenção.

O destino estava nas mãos de Lucy, por mais que ela ainda não soubesse.