Pureblood

Sete — O poder da edição.


Ao ser deixada por Scarlet na frente da Mansão Dragneel naquela manhã, Lucy fechou os olhos com força, lutando contra a tontura que sentia devido ao cansaço. Certamente, não havia dormido bem mais uma vez; a noite anterior fora conturbada, de sono interrompido por pesadelos insólitos e apavorantes.

Sentia-se tão sonolenta que talvez fosse capaz de adormecer deitada sobre a calçada ou simplesmente fechar os olhos por alguns segundos, dormindo em pé.

Piscou repetidas vezes até que sua visão voltasse a se focalizar e viu Sting aparecer segurando o controle remoto do portão, antes que pudesse abertar o botão do interfone. O loiro estava como habitualmente: jeans desbotados, camiseta surrada, os cabelos cor de ouro bagunçados de um jeito charmoso; seu sorriso era perfeito e contagiante. Ele estava bonito como habitualmente e a garota sentiu o rosto esquentar ao pensar em tal coisa.

— E aí, Lucy? — cumprimentou o rapaz, timidamente caminhando em sua direção.

— Bom dia, Sting. — ela sorriu acanhadamente. Suas bochechas já começavam a ficar vermelhas.

— Está tudo bem com você? — perguntou ele, fazendo Lucy morder o lábio inferior antes de responder; sabia que seria necessário mentir.

A loira obrigou-se a sorrir e responder que sim, tudo estava bem. Sting franziu a testa por um momento.

— Está mesmo? — o rapaz chegou mais perto de si, enrusbecendo. — Você parece um pouco cansada.

Não parecia apenas um pouco cansada; era evidente que definitivamente não estava bem. Lucy caminhava devagar, forçando suas pernas a se moverem; piscava com força como se tentasse concentrar-se e também, haviam suas olheiras que tornavam tudo ainda mais óbvio. Ela sabia que sua aparência não estava das melhores e pensou em como ele era gentil em dizer que parecia somente um pouco cansada.

— Acho que estou estudando demais ultimamente. — a garota quis morder o lábio novamente por ser uma mentirosa, mas se conteve. — Haverá um teste para bolsas de estudos na universidade que quero entrar daqui a poucas semanas.

Com o rosto mais vermelho do que nunca, o loiro segurou aquele rosto tão macio com ambas as mãos.

— Não exagere, tá bom? — disse ele, quase gaguejando. A loira sentiu como se seu corpo estivesse inteiramente em chamas; por que havia gostado tanto de sentir o toque dele? E além de tudo, pôde notar uma certa preocupação em seu olhar e mal sabia como agradecê-lo. Sting era um amigo tão gentil!

Por mais envergonhada que estivesse, conseguiu reunir um tanto de coragem para se equilibrar na ponta dos pés e depositar um selinho em sua bochecha. Era uma espécie de agradecimento e também algo como uma devolução pelo beijo amigável do dia anterior.

— Obrigada por se preocupar, Sting.

O rapaz riu de nervoso e ela o acompanhou. Depois de rirem, se despediram; afinal, estavam naquele lugar para trabalhar.

Com o coração acelerado, Heartfilia andou até a porta da casa, que não estava aberta como nos outros dias; provavelmente, quando o sr. Dragneel ficava em casa, gostava de se certificar de que havia trancado a porta. Ao contrário da sra. Dragneel, que costumava deixá-la aberta. A jovem se perguntava como seria possível se esquecer disso vivendo em uma mansão, principalmente na cidade grande. Quem poderia saber quando algum tipo de criminoso poderia se aproveitar da falta de segurança dali?

Bateu na porta e esperou pouco tempo até que fosse aberta por Mirajane, que já estava trabalhando desde aquela manhã. Era uma exigência de Igneel; queria que Mira estivesse lá para preparar o café da manhã, almoço e jantar. Ao menos, quando o empresário estava em casa, era assim que as coisas funcionavam. Olívia não fazia muita questão disso; apenas o almoço estava ótimo para si.

A mesa de jantar estava impecavelmente arrumada com uma longa toalha de discreta estampa de flores; posta sobre esta, havia o café da manhã mais farto que Lucy já vira em dezenove anos de existência. Tudo ali contido parecia ser da melhor qualidade.

O casal Dragneel se entretia com a brincadeira de roçar as pernas por debaixo da mesa enquanto comiam e bebiam, sem que ninguém notasse. Natsu também estava ali, mas a criada o olhava apenas com o canto do olho; ainda sentia-se amedrontada pelo ocorrido de ontem. E de anteontem também.

— Sabe, Lucy… Meu pai está voltando de viagem. — começou o rosado, fazendo-a tremer. — Não seria uma pena se algo ou alguém estragasse… tanta alegria? — ele deu ênfase na palavra alegria, ironicamente.

A garota engoliu em seco e curvou o corpo em reverência.

— Bom dia, sr. e sra. Dragneel. — em seguida, reverenciou-se para Natsu. — Bom dia, sr. Natsu.

— Bom dia. — respondeu o casal em um timing perfeito. A patroa não parou de sorrir nem por um minuto; era tão bom vê-la contente por estar ao lado do marido!

— Dia. — disse o rosado em alto e bom som, sorrindo maldosamente. Por um momento, seus olhares se encontraram e ela sentiu como se estivesse sendo atingida até o fundo de sua alma. Havia algo estranho em seus olhos, mais estranho do que de costume. Ainda a encarando, ele bebeu um gole de achocolatado; sua bebida não-alcoólica preferida.

— Mira, você pode me servir mais café? — pediu Igneel, estendendo sua caneca preta exclusiva. Era a caneca predileta do empresário; ele, e somente ele, poderia utilizá-la.

— Sim sim, sr. Igneel! — Mira atendeu ao pedido prontamente, parecendo realmente animada.

— Bem, com licença… — começou Lucy, sendo cortada por Natsu.

— Toda. — respondeu, praticamente berrando. Todos ali presentes o olharam sem entender o motivo, mas ele simplesmente tornou a beber o achocolatado como se não tivesse feito nada demais.

Olívia Dragneel desceu as escadas saltitante, embora fosse quase impossível conseguir saltitar com um salto altíssimo como o que estava usando. A mulher vestia um vestido branco com uma fita azul-marinho em cetim na cintura. Curto, exibia suas pernas, tão belas quanto as de uma boneca; sem qualquer defeito, qualquer mulher de sua idade a invejaria.

— Você está muito bonita, sra. Dragneel. — elogiou Lucy com sinceridade. A beleza da patroa ainda a impressionava.

— Obrigada, querida. — agradeceu a sra. Dragneel, em seguida dirigindo-se a Mirajane. — Mira, Igneel e eu vamos ao Scavollo, ok? Então, por favor, prepare-o apenas para o Natsu.

O Scavollo era um dos restaurantes mais caros de Magnolia; a criada jamais poderia pagar sequer por um suco de frutas. Luxuoso, também era conhecido pelo visual romântico e música agradável; existiam boatos de que era um dos melhores lugares para se pedir alguém em casamento. Se você for de classe alta, é claro.

— Tudo bem, sra. Dragneel. — respondeu a albina, sorridente.

O sr. Dragneel apareceu no andar de baixo pouco depois, sempre impecavelmente arrumado. Segurava as chaves da BMW enquanto abria a porta recebendo beijos de Olívia em seu pescoço. Como seus patrões eram um casal tão apaixonado!

Heartfilia sentiu-se grata a Deus por não ter ficado sozinha na mesma residência que Natsu. Estava com um certo medo do rapaz, e seria difícil que ele fizesse qualquer coisa consigo enquanto Mira estivesse por lá. Era o que pensava para acalmar seu coração.

Todo aquele medo seria uma grande tolice se, no fim das contas, ele realmente não soubesse que ela sabia do que o rosado escondia em seu quarto. Entretanto, talvez fosse também uma grande tolice acreditar que Natsu sequer desconfiava.

De qualquer forma, não estava com cabeça para pensar mais a respeito. Sentia-se tão cansada que tudo o que desejava era deitar na cama de colchão macio no apartamento de Scarlet e dormir esquecendo-se do amanhã, com um sono repleto de bons sonhos. Era pedir demais?

— Lucy! — chamou Mirajane pela terceira vez, trazendo-a de volta à realidade.

— Hum? — a loira piscou.

— Lucy, você está bem? — perguntou ela, incrivelmente preocupada com a amiga, apesar de não se conhecerem há tanto tempo. Mira possuía um coração muito sensível e, não importava quem fosse, realmente se importava se tudo estava bem ou não. E as olheiras de Lucy eram algo extremamente preocupantes. Estaria ela dormindo direito?

— Estou sim. — mentiu a garota, imediatamente se sentindo mal por isso assim como fizera com Sting. E Scarlet. E com sua mãe ao telefone; detestava mentir para as pessoas. — Só me sinto um pouco… sonolenta. Dormi pouco esta noite.

— Por que? — perguntou a cozinheira, verdadeiramente interessada. Aconteceu algo?

— Estou estudando para conseguir uma bolsa de estudos na universidade. — respondeu Lucy, pensando se aquilo poderia ser considerado ou não uma meia-mentira. Afinal, realmente estava estudando para o teste da Fairy Tail University; ou ao menos tentando, já que seus pensamentos e preocupações tiravam-lhe totalmente a concentração. Isso também a incomodava, pois realizaria a prova dali a algumas semanas. Não poderia pôr seus esforços a perder e nem adiar seu grande sonho para o próximo ano.

— E está estudando até tarde da noite? — a albina colocou as mãos na cintura.

A loira mordeu o lábio.

— Sim…

Por um momento, Mira franziu a testa como se estivesse prestes a lhe dar uma bronca. Tal atitude fez Heartfilia lembrar de uma amiga do passado, a qual considerava uma mãe e fazia a mesma expressão facial. A lembrança fez seu coração doer e seus olhos marejarem por um momento; tal amiga também havia invadido seus pesadelos à noite.

— Não exagere nos estudos pois isso vai te fazer muito, mas muito mal! — Strauss imitou um bico de peixe e ficou vesga, de bochechas vermelhas. Estava tão adorável e engraçada daquela maneira que a criada não pôde deixar de rir. Então era esta a “bronca”? — Você entendeu? — e fez biquinho de peixe mais uma vez.

— Sim, senhora! — Lucy esquecera de suas preocupações por um momento e até brincalhona estava. Apesar de, poucos segundos depois, voltar a sentir-se triste novamente, foi bom rir verdadeiramente pela primeira vez em dois dias.

A albina fez um sinal com as mãos que significava “estou de olho em você!” e a loira riu de novo. Mira era uma pessoa tão divertida e até a fizera se sentir um pouco melhor.

Strauss pôs a mesa especialmente para Natsu, e certamente, o almoço havia sido preparado apenas pensado nele. Portanto, nada mais justo do que uma grande panela de macarrão com molho de tomate.

— Lucy, pode chamar o Natsu para mim? — pediu a cozinheira dando um sorriso.

— C-Claro. — respondeu a loira, prontamente realizando o favor para a amiga, por mais que não desejasse chamá-lo em quarto; falar com ele diretamente era uma ideia apavorante sem que soubesse o porquê. De qualquer forma, respirou fundo e subiu as escadas, caminhando pelo corredor até chegar à porta do quarto de Natsu.

Com as pernas trêmulas, deu duas batidas na porta e aguardou. Supôs que o rapaz demoraria para abri-la ou talvez não a abrisse, se estivesse utilizando fones de ouvido para escutar música.

Contrariando suas expectativas, a porta do cômodo foi aberta lentamente. Natsu a encarava amedrontadoramente, causando-lhe um arrepio na espinha. O verde em seus olhos parecia ser de um tom ainda mais escuro naquele momento. A garota tentava dizer alguma palavra, mas um nó na garganta a impedia de falar.

— Lucy. — o modo como pronunciou seu nome era apavorante. E mais apavorante do que isso: o sorriso maldoso que lhe lançou, como naquela manhã. — Entra aqui.

A criada deu um passo para trás sem que percebesse.

— E-Eu a-apenas vim avisar ao senhor que… Q-Que…

— Entra aqui, agora. — o olhar dele mantinha-se fixo e sua voz estava mais rouca do que nunca. — É uma ordem.

A cabeça de Lucy girava a um ponto em que não sentiu Natsu pegar em seu braço com força e puxá-la para dentro, trancando a porta. Era como se sua vista houvesse se transformado em um borrão e, ao ficar nítida novamente, estava sentada na cama do rapaz de frente para a televisão.

O rosado pegou o controle remoto sem dizer palavra e apertou o botão para ligá-la. Um vídeo começou a passar, inicialmente mostrando-o ajustando algo que seria a calma. Usava as mesmas roupas de quando saíra para almoçar fora há dois dias atrás, até que a criada notou que no canto da tela, havia a data e horário da gravação.

Natsu saiu e a gravação continuou; o horário mudava na tela a cada minuto que se passava.

— Vamos direto para o que interessa. — disse ele, sussurrando em seu ouvido. Passaram-se algumas cenas até que eram quatro horas da tarde na hora da gravação. O horário aproximado em que Lucy encontrara a cocaína no bolso da jaqueta.

Poucos segundos depois, a loira entrou no quarto até então vazio. Não possuía expressão alguma; naquele momento, estava em estado de choque para demonstrar qualquer emoção. E então, abriu o armário onde a jaqueta preta estava devidamente guardada; até retirar um saquinho plástico do bolso de seu uniforme e colocá-lo no bolso da jaqueta.

Depois de algum tempo, Lucy removeu as roupas sujas de todos os cestos da casa para pôr na máquina de lavar. Ao entrar no quarto de Natsu, havia uma jaqueta dentro de um dos armários com um pedaço da manga para fora. A loira abriu o armário e retirou a jaqueta de couro que estava do avesso. Ao desvirá-la, sentiu algo leve cair sobre seus pés. Algo que caíra do bolso da peça.

A criada pegou o objeto com cuidado, confusa a princípio. Sabia o que era aquilo. Lembrou-se de uma festa noturna que fora em Rosemary com seus amigos; todos eles possuíam aquilo em suas mãos e ofereceram a ela, que recusou prontamente.

Pó branco dentro de um pequeno saco plástico transparente. Cocaína.

Natsu mantinha cocaína escondida em seu quarto.

Horrorizada, a garota deixou o plástico cair novamente. Estava tão pálida que parecia prestes a sofrer um desmaio.

— Santo Deus. — murmurava para si mesma, fitando o objeto caído em seus pés. Seus pensamentos corriam à mil quilômetros por hora, desordenados; lembranças do passado misturavam-se às do presente, causando-lhe uma forte tontura e náusea.

Ajoelhou-se, vendo tudo ao redor tornar-se escuro aos poucos. Sabendo que desmaiaria, Lucy deitou no chão e tentava respirar fundo, não conseguindo racionar corretamente. Não fazia ideia de há quanto tempo estava ali quando a tontura passara; pegou o saquinho plástico de Natsu e o colocou no bolso antes de sair do quarto.

— E esse é o momento em que, por razões desconhecidas, você entra no meu quarto e põe a cocaína no meu bolso.

— Antes disso. — murmurava Lucy. — Antes disso, eu…

— Antes disso, você não havia entrado no meu quarto. — o rosado voltou algumas cenas com o controle, fazendo-a prestar atenção ao horário no canto da tela. — Vê?

Heartfilia se levantou da cama subitamente, sentindo o desespero tomar conta de si. Após Natsu ter voltado as cenas três vezes para fazê-la compreender, ela entendeu o que estava acontecendo.

— O senhor… — foi tudo o que conseguiu dizer, com a voz falhada.

De alguma forma, ele cortara a cena em que ela desvirava a jaqueta. E não fazia ideia de como, conseguira editar as informações de gravação no canto da tela; o que parecia era que na realidade, quem estava mantendo drogas era a criada. E por qualquer razão que fosse, simplesmente as colocara no bolso de Natsu.

— Eu não queria ter que fazer isso… — o rapaz a pôs violentamente contra a parede, pressionando-a contra seu corpo. — Mas eu não posso deixar que saibam, você entende?

Os olhos da jovem estavam completamente arregalados; mal conseguia manter-se em pé com as pernas trêmulas. Não queria acreditar que aquilo realmente estava acontecendo.

Lucy passou a vida enfrentando monstros; monstros interiores e, principalmente, pessoas que conheceu. E aparentemente, Natsu Dragneel surgira em sua vida para ser mais um desses monstros.

Mais uma vez, sentia-se incapaz de lutar contra a situação.