Pureblood

Seis — Inquietações.


O verão na cidade de Rosemary registrava altíssimas temperaturas, quente e abafado. Sem dúvidas, a pior parte da estação era o estresse pela impossibilidade de pegar no sono durante a noite. Os cidadãos, sem conseguir dormir, ficavam em frente às casas bebendo, brincando de jogos de azar sobre a calçada ou simplesmente jogando conversa fora.

Lucy Heartfilia também sofria com o calor e a dificuldade de ter uma boa noite de sono. Nesses dias, a garota costumava jogar Baralho com suas amigas e na companhia do namorado da mais velha de todas elas, Cana.

— Sorte. — murmurava Cana, fazendo todas rirem enquanto misturava o monte de cartas. — Pura sorte.

— Estou certo de que você vai ganhar a próxima, amor. — seu namorado, Laxus, lhe fez um carinho nos cabelos castanhos. Ele sempre estava certo de que ela ganharia a próxima partida e no fim, constatava que cometera um erro.

Enquanto a morena distribuía as cartas, Lucy percebeu que havia um garoto se aproximando do grupo. Quando ele estava mais perto, pôde notar que nunca o havia visto na vida; um completo desconhecido.

Era raro ver pessoas que não conhecia naquela cidade tão minúscula. Mas principalmente, não naquela hora da madrugada. Assustada, a jovem de treze anos escondeu-se atrás de Cana, quem considerava sua irmã mais velha. Sentia-se protegida ficando bem perto dela.

Além de ser um estranho no sentido de pessoa desconhecida, o rapaz também possuía uma aparência estranha, uma atmosfera assustadora. Seus cabelos negros cobriam a maior parte de seu rosto, deixando apenas um olho de íris vermelha como sangue à mostra. Usava roupas escuras e sua expressão era como de alguém que acabara de sair de um funeral ou de algum tipo de lugar terrível.

Ao contrário do que Lucy imaginava, ele passou reto e ela sentiu que finalmente podia respirar. Enquanto isso, todos discretamente se entreolharam.

Ele parou de caminhar por um momento e virou-se olhando diretamente para a loira. Seu olhar lhe fez sentir um arrepio na espinha.

Lucy Heartfilia acordou bruscamente na cama, fitando o teto de seu quarto. Seu corpo estava banhado de suor frio; seus batimentos cardíacos batiam com uma frequência absurdamente veloz. Hiperventilava, demorando um pouco para compreender que realmente estava em seu quarto.

Fazia algum tempo desde a última vez que tivera pesadelos no meio da madrugada. Memórias em forma de pesadelos das quais Lucy não gostava de se lembrar; sem dúvidas, a época mais tempestuosa de sua vida. Uma época que havia aprendido a “bloquear” da mente, mas aparentemente seus esforços de anos foram destruídos assim que descobrira algo novo sobre o filho de seus patrões.

Não esperava voltar a segurar drogas ilícitas com as mãos tão cedo; ao menos, não na Mansão Dragneel, enquanto realizava seus serviços no quarto de Natsu. Natsu Dragneel escondia cocaína no quarto, tal frase preenchia sua mente de modo que não conseguia pensar em mais nada. Em um misto de preocupação e tristeza por relembrar de seu passado, a garota não conseguiu mais adormecer naquela noite. Revirava-se de um lado para o outro na cama até olhar para o relógio e perceber que estava na hora de levantar para trabalhar.

Apenas uma noite mal dormida fizera com que tivesse dificuldades para manter-se em pé. Não estava acostumada a não dormir bem.

— Você parece cansada, Lucy. — disse Scarlet assim que terminou de beber iorgurte de morango diretamente da garrafa. Era até engraçado que dissesse isso, já que sua aparência deixava sua insônia muito mais evidente. Apesar de aparentemente estar sempre ligada na tomada de 220 volts, possuía olheiras que ficavam cada vez mais profundas.

— Não consegui dormir esta noite. — respondeu a loira, passando manteiga no pão.

A ruiva arqueou a sobrancelha.

— Por quê? Aconteceu algo no seu encontro de ontem?

Heartfilia sentiu o rosto esquentar ao ouvir a palavra encontro. Havia saído com Sting para almoçar em uma lanchonete, mas não fora um encontro. Apenas um passeio de amigos. Da mesma forma que o beijo na bochecha. Um beijo de amizade.

— N-Não. — disse ela, envergonhada, por um momento esquecendo de suas preocupações. — N-Não fomos a um encontro…

Mas talvez a amiga estivesse certa em fazer aquela pergunta, se algo havia acontecido. No dia anterior, Lucy permaneceu calada dentro do carro até chegarem na porta do apartamento. O jantar era, como de hábito, pizza do Pizza Hut. Provavelmente estava tão deliciosa quanto nos outros dias, mas a loira não conseguiu sentir o gosto de nada; enjoada, deu apenas duas ou três mordidas e largou a pizza em seu prato. E após trocar algumas palavras com Erza, a garota trancou-se no quarto. Então, deixou óbvio que alguma coisa definitivamente estava acontecendo!

Não sentia vontade alguma de comer o pão à sua frente, mas não queria tornar tudo ainda mais suspeito. Com o estômago a se revirar, Lucy conseguiu comer grande parte de seu café da manhã.

Scarlet sabia que ela estava estranha e a ansiedade para descobrir o motivo era tanta que mal conseguia parar de dar pulos no mesmo lugar. Mesmo tremendo, conseguiu levar a amiga até a Mansão Dragneel em segurança.

— Lucy. — chamou ela assim que a loira desceu do carro.

— Sim?

— Sei lá, você está estranha. — disse a ruiva. — Se quiser me contar qualquer coisa, saiba que eu vou te ouvir. Porque somos amigas.

Sensível, a jovem sentiu os olhos marejarem. Sorriu e agradeceu, sabendo que não deveria manter aquela conversa por muito mais tempo. Caso contrário, começaria a chorar sem poder dizer a razão por estar agindo de modo tão estranho. Ainda não tinha ideia do que fazer, para onde correr; sentia-se dentro de um labirinto tão confuso quanto seus pensamentos.

A sra. Dragneel abriu o portão com o controle remoto e, saltitante, praticamente correu como uma criança ao encontro da criada.

— Lucy, querida! — Olívia a abraçou carinhosamente, dando um largo sorriso. — Bom dia!

— Bom dia, sra. Dragneel. — respondeu Lucy, perguntando-se se o Spa havia lhe lançando um feitiço mágico; não parecia a mesma pessoa triste de poucos dias atrás, melancólica pela falta do marido. De qualquer forma, sentia-se estranha ao ter que fingir para Olívia que tudo estava bem; o quão devastada ficaria quando soubesse o que a loira sabia? — Eu senti a falta da senhora.

— Eu também! Senti muitas saudades, muitas! — a sra. Dragneel a conduziu pela mão até dentro da casa; antes de entrar, a garota viu seu amigo limpando a piscina. Corados, ambos sorriram timidamente um para o outro. — Oh, eu estou tão feliz!

— Por quê a senhora está feliz? — perguntou a criada.

— Igneel chegará na hora do almoço! — aquilo pegou Lucy desprevinida; não fazia ideia de que seu patrão chegaria naquele dia. Mais um problema: ter que esconder o que sabia do sr. Dragneel também. Saber que teria de mentir enquanto não decidia o que fazer a respeito de Natsu causava-lhe um peso enorme na consciência. Olívia simplesmente não parava de sorrir. — Não é maravilhoso?

— Que legal! — a loira fingiu entusiasmo, mas não era por mal; não estava com cabeça para se animar com tal coisa naquele momento. — Estou me sentindo muito feliz pela senhora.

— Obrigada, querida. — a patroa já começava a subir as escadas para decidir que roupa usaria, mesmo faltando quatro horas para a ocasião. Antes de dar uma piscadela para a criada, disse:

— Acorde o Natsu daqui a umas duas horinhas, tudo bem? Igneel ficará muito irritado se souber que ele dormiu até tarde.

— Sim, senhora. — Lucy fez uma reverência e começou a trabalhar, sentindo que estava prestes a cair de sono a qualquer momento. Piscava repetidamente, tentando deixar aquilo para lá. Precisava se concentrar apenas em organizar algumas coisas para deixar com que a casa ficasse impecável para a chegada do sr. Dragneel.

Porra. — essa foi a primeira palavra de Natsu ao acordar de seu sono profundo. O rosado esfregava os olhos, sensíveis com a luz que iluminava o quarto através da janela. Seu ótimo humor era sempre contagiante.

— D-Desculpe, sr. Natsu. — as palmas das mãos de Lucy suavam frio ao falar diretamente com ele. — A sra. Dragneel me pediu para acordá-lo antes da hora do almoço pois seu pai está retornando de viagem…

— Quem liga? — cortou o rapaz, usando o travesseiro para cobrir o rosto.

Ao sentir os dedos da loira começando a fazer cócegas em seus pés, deu um pulo na cama e a encarou de olhos bem abertos. Não estava a fim de dar gargalhadas patéticas logo ao acordar por sua irritante sensibilidade nos pés. Soltando algo como um grunhido, arrastou-se até o banheiro para lavar o rosto.

Heartfilia fitava o armário onde a jaqueta do dia anterior havia sido guardada e não notou quando Natsu voltou para o cômodo e chegou bem perto de seu ouvido.

— Que é que você tanto olha? — seu tom de voz era rouco e estranho, causando-lhe arrepios. Era como se ele, de alguma forma, soubesse que ela sabia. Apesar de ter colocado o saco plástico exatamente no mesmo bolso de onde caíra.

— Sr. Natsu, eu… — por uma fração de segundo, a garota sentiu coragem para falar com o rapaz sobre a descoberta recentemente feita. Mas ao olhar no fundo daqueles olhos verde-escuros, sentiu-se completamente desprotegida como uma criança pequena.

— Você o que?

— Eu… Eu… — uma gota de suor escorreu por sua testa. Ela riu nervosamente e caminhou em direção à porta. — Eu me lembrei que Mira queria ajuda com…

Natsu colocou-se na frente da porta e a fechou, ainda de frente para ela. E antes que ele abrisse a boca para dizer algo, Lucy repetia para si mesma: ele sabe que você sabe.

— Sabe, Lucy… Meu pai está voltando de viagem. — começou o rosado, fazendo-a tremer. — Não seria uma pena se algo ou alguém estragasse… tanta alegria? — ele deu ênfase na palavra alegria, ironicamente.

Boquiaberta, a garota não movia um músculo sequer.

— Responda. — Dragneel elevou o tom de voz.

— S-Seria, senhor. — respondeu Lucy depois de um tempo tentando desfazer o nó em sua garganta.

— Realmente seria. Mas é ótimo que não tenha nada que possa estragar isso, não é mesmo?

— C-Certamente não, senhor.

Natsu assustadoramente sorriu de canto por alguns segundos e a dispensou.

Um caríssimo carro da empresa onde Igneel Dragneel trabalhava possuía um motorista que havia estacionado na garagem da Mansão e no momento, descarregava o porta-malas.

— Meu amor! — Olívia correu em sua direção e lhe deu um beijo apaixonado. Estava linda com aquele vestido branco envolto por uma fita azul de cetim na cintura; a peça realçava suas belas curvas. O casal trocou beijos e abraços por um momento na frente da casa como se não houvesse mais ninguém por ali.

Depois de cumprimentar o filho com um tapa nas costas consideravelmente forte, apertou a mão dos empregados ali presentes.

— Sr. Igneel, preparei comida mexicana especialmente para o senhor. — disse Mirajane, sorrindo docemente.

— Puxa, Mira. Obrigado. — ele sorriu para a cozinheira por um momento, comprovando que empresários sérios e aparentemente emburrados também sorriam de vez em quando.

— Seja bem-vindo de volta, sr. Dragneel. — Lucy fez uma reverência, sentindo o olhar de Natsu logo atrás alfinetar sua alma, se é que tal coisa era possível. A criada fez menção de segurar as malas para levá-las até o andar de cima, mas falhou miseravelmente em sua tentativa. Eram tão pesadas para seus braços magros!

— Eu te ajudo. — Sting sorriu e carregou uma das malas sem dificuldade alguma, tendo em consideração que era realmente musculoso. Com o rosto esquentando, acompanhou-a na subida de escada.

A loira ofegou assim que soltou a mala em um canto do quarto do casal Dragneel.

— Obrigada, Sting. — disse ela, desviando o olhar.

— N-Não há de quê! — as bochechas dele estavam vermelhas. — Hã… Bem…

Um silêncio constrangedor pairava. Céus, como estavam envergonhados!

— A-Acho que deveríamos voltar para o andar de baixo. — Lucy sussurrou, tímida.

— Sim. — o loiro assentiu com a cabeça. — Vamos fazer isso.

Heartfilia passou o resto do dia sem prestar atenção ao que estava fazendo; simplesmente realizava a faxina como se fosse uma máquina automática. Sua expressão era preocupada e um tanto horrorizada, mas a sra. Dragneel mal notara; tinha apenas olhos para o marido, fazendo-lhe um carinho no sofá da sala enquanto assistiam televisão. Seus olhos esmeraldas brilhavam como nunca e Lucy sentiu-se feliz pela patroa. Enquanto todos estavam felizes, ela vivia um verdadeiro pesadelo. E temia demorar a acordar…

Seu coração acelerava quando seu olhar encontrava-se com o de Natsu. No entanto, ele não demonstrava emoção alguma e isso apenas a assustava ainda mais. Se o rosado sabia de alguma forma que ela havia descoberto seu segredo, poderia estar tramando algum plano terrível para prejudicá-la? A sra. Dragneel era uma pessoa boa e, no fundo, o sr. Igneel também. Então, Lucy apenas rezava para que Natsu fosse um homem bom e não desejasse destrui-la por algo que acontecera ao acaso.

Mais uma noite mal dormida estava prevista.

Enquanto Heartfilia se remexia na cama durante a madrugada sem conseguir dormir, Dragneel também mantinha-se muitíssimo acordado. Sentia-se nervoso pelo fato de a criada ter encontrado em suas coisas algo que não devia, algo que ninguém possuía conhecimento de que estava acontecendo com ele mais uma vez.

Era um completo imbecil por ter cometido um descuido como o de largar a jaqueta com a cocaína em qualquer lugar. Entretanto, talvez seria ainda mais imbecil se não tivesse instalado uma câmera muito bem escondida para monitorar o que acontecia em seu quarto enquanto estava fora, e finalmente aquela porcaria havia servido para alguma coisa.

Um plano, era disso que ele precisava. Um plano para ter certeza de que Lucy não abriria a boca. Ninguém precisava saber o tipo de coisas que carregava no bolso da jaqueta.

Pagá-la com dinheiro era uma ideia consideravelmente boa, mas não o suficiente para o rosado. Precisava de algo ainda maior, uma garantia verdadeira de que seu segredo não seria revelado de jeito algum.

Natsu levantou-se da cama de súbito, tendo uma grande ideia. Como não pensara naquilo antes? Sabia exatamente o que fazer.