Pureblood

Dezenove — Dúvidas.


No dia seguinte, Lucy foi trabalhar um tanto sonolenta. Durante o trajeto todo, foi com sua amiga Scarlet em silêncio; até o rádio estava desligado, pela primeira vez na vida.

Ela sabia o quanto Erza queria ficar com Jellal no hospital durante o tempo em que ele ainda ficaria internado, por mais que a ruiva evitasse — numa tentativa falhada — demonstrar que estava preocupada. Erza queria, mas tinha medo de deixá-lo estressado, e isso prejudicaria sua recuperação.

A loira sentia muito por Jellal e sentia muito pela prima de Gray sem sequer saber seu nome; no entanto, ver o sofrimento de Gray em relação a ela tornava tudo ainda pior. E lembrou-se do quão gostoso era brincar com os dedos naqueles cabelos negros... a lembranças da noite anterior no hospital passavam na mente de Lucy como cenas de uma novela.

Corou imediatamente, balançando a cabeça de um lado para o outro como se tentando expulsar pensamentos. De uma ideia constrangedora, fora arrastada para outra: o momento mais vergonhoso do ano, provavelmente. O modo ridículo com o qual quase caíra da BMW, tudo por ter destravado a porta sem perceber! Ah, como sentia vergonha por ser tão desastrada e principalmente por Natsu ter chegado mais perto do que deveria. Francamente...

Certo. Pensar em qualquer coisa do dia anterior seria uma péssima escolha.

Com um suspiro, mal interfonou ao chegar e o portão foi aberto. Lucy avistou Sting retirando algumas folhas secas que acabaram por cair na água da piscina na noite anterior. Corou ao vê-lo e ele também ficou vermelho, sorrindo acanhadamente.

— Bom dia, Sting. — cumprimentou ela timidamente, esfregando as mãos uma na outra.

— Bom dia. — respondeu ele, passando a mão nos cabelos loiros como fazia quando estava nervoso. Reparou que ela parecia um pouco cansada. — Hã... tudo bem?

— Ah, comigo sim... — começou ela, cobrindo a boca com a mão para bocejar brevemente. — Mas algumas coisas aconteceram ontem... tive que ficar com minha amiga no hospital pois o namorado dela fez uma cirurgia de emergência.

E quase quis estapear o próprio rosto por falar demais. O que será que Erza pensaria se soubesse que Lucy saía falando da ruiva e de Jellal como se fossem namorados? Que tipo de amiga era!

O jardineiro arregalou um olhos por um momento.

— S-Sério? Mas agora ele está bem?

— Sim, sim. — a loira assentiu com a cabeça. — Daqui a três dias ele poderá voltar para casa se não acontecer alguma complicação pós-cirúrgica. São raras, mas é importante que ele fique em observação.

— Entendo... — Sting murmurou para depois continuar em tom mais alto e trêmulo. — Hã... digo... você tem planos para o final de semana?

— Oh, creio que... — sua voz foi sumindo conforme ficava corada, percebendo o quão vermelho ele estava. — N-Não...

— E-Eu vou assistir Mad Max na pré-estreia, sexta de noite. — nervoso, o loiro praticamente gritou. — V-Você quer ir comigo?

Direto demais, Sting!

Os dois se encararam até virarem o rosto para o lado quase simultaneamente, um mais constrangido do que o outro.

— O-O que é Mad Max? — perguntou Lucy.

— Ah... é... é um filme de ficção científica... ação, explosões, essas coisas... — balbuciou ele. — D-Desculpa, você não deve gostar dessas coisas. D-Deixa pra lá, sério.

A loira queria enterrar a cabeça num buraco debaixo da terra.

— Bom, se quiser, e-eu... — mal acreditava que realmente estava conseguindo dizer aquilo. — Posso acompanhá-lo...

Sting conseguiu se empolgar apesar de toda a vergonha.

— Você... você quer? — falou com um sorriso nervoso. A garota assentiu levemente com a cabeça, sorrindo também. — C-Certo! E-Eu te ligo de noite.

— T-T-Tudo bem! — a loira se despediu com extrema timidez e apressou o passo até adentrar a casa sem notar, encontrando Mirajane comprimindo os lábios para não rir; a garota não percebera isso.

— Bom dia, Lucy. — disse ela. — Tudo bem?

— T-Tudo sim! — respondeu a criada, escondendo o rosto corado. Então, notou que a sra. Dragneel não estava na mesa tomando seu café da manhã como de costume. Será que ainda estava dormindo?

Ao guardar a bolsa no cabide do início da escada, Lucy tomou um susto ao ver Natsu descendo os degraus quase como se ainda estivesse dormindo, apertando os olhos. Possuía olheiras como se não tivesse dormido bem e além do mais, quando justo ele acordaria antes do meio-dia?

— Bom dia, senhor. — a loira fez uma reverência e ele sequer a olhou. Parecia estar tão cansado... Lucy pensou se teria acontecido alguma coisa.

— Bom dia, bebê... — Mira apertou suas bochechas de leve, também perguntando-se o motivo do rapaz ter acordado tão cedo — ao menos para ele. — Você... dormiu bem?

Natsu balançou a cabeça negativamente em resposta. Murmurou algo incompreensível e sentou-se na mesa para tomar café da manhã numa ação quase automática, já que estava sem um pingo de fome.

Comeu sem sentir o gosto e quis voltar para o quarto novamente. Mal pensava enquanto subia as escadas, apenas lembrando do sonho que o incomodara e não o deixara dormir por fazê-lo pensar a respeito dele, tentar entender como parecia tão real. E compreender o motivo de estar tão preocupado, se sonhos são teoricamente resultados de uma produção feita pelo próprio cérebro enquanto adormecemos; ficar procurando algum significado mais profundo era um sinal de que contradizia no que acreditava. Muito mais pensar que era uma mensagem de alguém. Esse tipo de coisa não existe, pensou.

Esbarrou com Lucy no corredor.

— D-Desculpe, senhor! — disse ela, e ele a olhou diretamente. Sua cabeça latejou e Natsu viu o rosto de Lucy como o daquela cena projetada por sua imaginação. A dor durou pouco, mas o suficiente para fazê-lo cair de joelhos sobre o piso.

De olhos arregalados, a loira acabou ajoelhando-se junto com ele por tentar segurá-lo por instinto quando ele parecia perder os sentidos.

— S-Sr. Natsu! — seus braços estavam ao redor de seu pescoço. — O que está havendo? Sente-se mal?

O rapaz respirou fundo.

— Não. — respondeu. — Não foi nada.

Ao perceber a maneira como o tocava, a criada recuou, vermelha de vergonha.

— A-Ah, mesmo?

Natsu cravou o olhar em seu braço direito, coberto totalmente pela manga do casaquinho; num ato súbito, segurou-o e remangou a jaqueta, expondo um antebraço com marca alguma. Nem um arranhão.

Assustada, Lucy o ouviu dizer que não havia nada...?

— Mas... — falou ele parecendo confuso por um momento.

— S-Senhor. — a loira conseguiu dizer, fazendo-o soltar seu braço. — O senhor parece estar precisando descansar.

Natsu se levantou e foi até o quarto, fechando a porta atrás de si. Precisava de um tempo sozinho para parar de sentir aquela confusão mental causada por um maldito sonho.

Estava em um quarto pequeno e com as luzes apagadas, pouco iluminado por uma fresta na cortina que revelava a luz da Lua. Em um canto, havia uma pessoa encolhida e pelos sons que emitia estava chorando. Chegando mais perto, ela parecia pequena como uma garota de doze anos de idade, ou treze.

Seu corpo frágil estremecia e Natsu sentiu a tremedeira assim que agachou-se em sua frente e lhe pôs a mão no ombro. Ouvir seu choro de certa forma era agoniante.

— Ei. — disse ele com uma voz baixa, como a qual usamos para consolar uma criança. — O que aconteceu com você?

A menina ergueu a cabeça e o rapaz pôde ver seu rosto, estremecendo. Apesar das olheiras profundas, era impossível estar enganado. Por mais que parecesse menor, aquela era Lucy. Um pouco do cabelo loiro aparecia sob o capuz preto.

Com os olhos castanhos banhados por lágrimas, a loirinha respirou fundo como se estivesse aliviada e por um breve momento, sorriu. Naquele momento, o rapaz não teve mais dúvidas de que realmente era Lucy.

— Irmãozinho... — disse ela, jogando-se em seus braços. — Eu esperei por você, mas você não apareceu. P-Pensei que tivesse ido embora.

Sem palavras, Natsu a abraçou de volta sentindo suas lágrimas molharem sua camisa.

— Me desculpe, irmãozinho...

— Te desculpar?

Lucy fungou e se afastou, de cabeça baixa, envergonhada.

— Fiz aquelas coisas ruins de novo. — respondeu ela aos prantos. — Você me disse para não fazer, mas ele continua me perseguindo. Eu... eu o vejo até aonde ele não está.

O rosado franziu a testa.

— Ele quem?

A loira não respondeu e remangou a jaqueta no braço direito, expondo seu antebraço. Natsu arregalou os olhos com a quantidade de cicatrizes que viu, incluindo uma porção de feridas abertas e alguns arranhões. Lucy tremia mais do que antes.

— Me desculpe, me desculpe! — começou a gritar, descontrolada. — Eu prometi que não faria mais isso, mas eu não consegui! Por que você não estava lá para me proteger? Por que me deixa sozinha quando ele está por perto, irmãozinho? Eu preciso de você! Eu preciso!

Sua cabeça girou enquanto ele tentava responder, sentindo-se tonto pela gritaria. Ouvindo a palavra "irmãozinho" sendo repetida inúmeras vezes, viu tudo ficar escuro e perdeu Lucy de vista.

Acordou encarando o teto do próprio quarto com o corpo banhado em suor.

Lucy olhou para seu antebraço exposto e antes de perceber, lágrimas escorreram por seu rosto. Puxou a manga para baixo e fechou os olhos, forçando a si mesma a parar.

Ele sabia?

Na hora do jantar, Heartfilia aproveitou para preparar um bom omelete para comer com Scarlet. A ruiva aguardava na sala com expressão distante, a mesma expressão com a qual estava assim que levara Lucy até o trabalho. A expressão que talvez permaneceria pelo resto da semana.

Não bastasse sofrer por saber que não podia ficar com Jellal no hospital, agora pensava que talvez Kagura pudesse estar com ele. E a ideia fazia seu estômago revirar, por mais que evitasse pensar naquele síndico estúpido daquele jeito. Depois de tudo o que passara no hospital, seus sentimentos estavam ainda mais incontroláveis.

— Como foi seu dia, Lucy? — perguntou Erza, segurando um de seus inúmeros pincéis. Não havia inspiração para hoje, portanto, sem distrações. Ouvir a amiga contar como fora seu dia no trabalho, — por mais banal que fosse — poderia fazê-la esquecer de toda aquela merda ao menos um pouquinho.

— O sr. Natsu parecia estar bastante cansado. Acho que ele não dormiu bem noite passada... — começou a loira, engolindo em seco antes de falar. Não queria entrar em detalhes. — Vi a sra. Dragneel sair para fazer compras no shopping, e ela estava muito bonita e elegante com aquele moletom todo feito de tricô. E Sting e eu...

Lucy interrompeu a si mesma ao enrusbecer, mais uma vez pensando que não deveria falar tanto!

— Sting e você... — como num passe de mágica, Scarlet surgiu a seu lado, fazendo-a quase derrubar o omelete da frigideira. A loira pôs uma mão sobre o peito, apavorada. Fitou o omelete, remexendo os ombros timidamente.

— É-É... h-hum...

— Fala logo! — berrou Erza, entusiasmada. Seus olhos brilhavam. — Vocês estão namorando?

Lucy ficou boquiaberta, ainda mais corada.

— N-Não é isso! — respondeu, vendo a ruiva começar a fazer uma expressão maliciosa. — M-Mal nos conhecemos, bem...

— Ah... — ela disse, pondo as mãos sobre seus ombros. — Não me diga que vocês...

A garota estremeceu.

— ...vão num encontro? — Scarlet terminou a frase, dando pulinhos histéricos.

— N-Não! — Lucy desligou o fogão, trêmula. — N-Nós só... a-ah, vamos sair...

A ruiva beijou sua bochecha incessantemente, apertando-a em um abraço com força maior do que a necessária.

— Eu sabia, eu sabia! — dizia ela, feliz. — Que lindos! Quando? Que horas? Em que lugar? Que horas voltam? Quero a ficha completa desse cara. Qual a placa do carro?

A loira riu, tonta com as perguntas feitas rapidamente. Estava prestes a abrir a boca para responder alguma coisa quando o telefone fixo tocou e ela se lembrou que Sting ligaria para ela à noite.

— A-Alô. — disse Lucy, baixinho, ainda mais acanhada por Scarlet estar ouvindo tudo a seu lado.

— O-Oi. — Sting pigarreou. — D-Digo, boa noite. Você está ocupada com alguma coisa?

— Não, não estou. — respondeu ela. — É-É... e-então...

— N-Nós ainda vamos ao cinema s-sexta?

A loira enrusbeceu.

— Sim, claro... — e rezou para que Erza não emitisse nenhum gritinho, seria tão constrangedor ele saber que havia alguém escutando o que conversavam!

— B-Bom, o cinema fica no Shopping de Magnolia. — disse ele, baixinho. — V-Você pode me passar seu endereço? D-Digo, posso te buscar em casa se quiser.

Scarlet se contorcia na frente da amiga achando tudo aquilo fofo demais.

— S-Seria gentil de sua parte. — respondeu Lucy, pensando se ele ia realmente buscá-la de bicicleta. Ele não ficaria cansado de tanto pedalar? — Moro na rua Kousaka Honoka, prédio número 226...

— Entendo... — murmurou Sting do outro lado da linha. — É bem no centro, né? O-Ótimo lugar...

— Sim...

— Eu posso passar aí às oito? O filme é mais tarde, mas sabe como é o t-trânsito...

— Pode sim. — disse a loira. — A-Ah, é sempre demorado.

— Sim.

— Combinado, então... — sussurrou.

— C-Combinado.

Se despediram e assim que Lucy desligou o telefone, Erza começou a berrar de empolgação.

— Ah, que lindos, que lindos! Que filme vão assistir?

— U-Um tal de Mad Max.

A ruiva franziu a testa.

— Sério que ele vai te levar pra assistir Mad Max?

A loira deu de ombros, corada. Estava tão envergonhada que não queria mais tocar naquele assunto, então disse que deveriam comer o omelete antes que esfriasse.

Apesar de feliz por sair com Sting na sexta-feira, não conseguia excluir o pensamento do que Natsu fizera naquela manhã. Por que ele queria ver algo justo no antebraço direito?

Talvez ela não fosse a única pessoa que pudesse ver o passado de outras pessoas sem que fosse de seus consentimentos graças às intervenções espirituais. O que Cana estaria planejando agora?