Pureblood

Dez — Ódio.


O pequeno Natsu Dragneel fitava o teto de seu quarto, atirado na cama. Na realidade, não estava exatamente enxergando o teto; perdia-se em pensamentos. Por estar tão absorto, tomou um susto ao ouvir batidas na porta. Depois delas, a maçaneta girou lentamente até que uma pequena fresta se abriu e Mirajane apareceu com seu dócil sorriso.

— O jantar está pronto. — disse ela enquanto entrava, utilizando seu tom de voz brincalhão. — E adivinha o que eu fiz? Adivinha!

— Macarrão. — murmurou ele, sem emoção alguma. — Com... molho de tomate.

A cozinheira sentou-se ao lado dele na cama, reparando em sua expressão entristecida.

— Poxa... — fez biquinho. — Não gosta mais do meu macarrão, Natsu?

Natsu sabia que demonstrar indiferença ao macarrão que Mira havia preparado fora uma tremenda falta de educação; e não era como se ele não gostasse mais do prato. Normalmente, a única coisa que faria ao ouvir a primeira sílaba da palavra macarrão seria correr em disparada até a mesa e lá estaria a macarronada mais deliciosa do mundo. E com o molho de tomate mais delicioso do mundo.

— Gosto sim, mas... — o menino virou-se para deitar de barriga para baixo e sentiu grande sonolência ao receber carícias em seus cabelos róseos. — Não quero jantar hoje.

— Mas por que não? — perguntou ela.

— Porque a mamãe não vai descer para jantar comigo. Eu sei que não vai. — respondeu Natsu, encostando a cabeça na perna de Mira, carente. — Ela só fica no quarto...

A moça suspirou.

— Ah, Natsu... A mamãe está muito, mas muito cansada. Por isso está no quarto, para repor as energias.

— Mas já faz muito tempo que ela está cansada. — o rosado disse, frustrado. — Eu sinto saudade dela. Por quanto tempo mais ela vai ficar repondo essas energias?

Mirajane engoliu em seco e pensou um pouco antes de responder.

— Logo logo ela ficará bem descansada. — depositou um beijo em sua cabeça. — E vai voltar a comer com você, ok?

O pequeno ficou novamente de barriga para cima e olhou fixamente para aqueles olhos de diamante. Mirajane pôde jurar que por um momento, sentiu um frio lhe percorrer a espinha.

— Você também não sabe quando ela vai sair do quarto, né, Mira?

Mira o havia colocado para dormir contando-lhe uma história que dissera que seu pai costumava contar a si quando era criança. Natsu dormira como um anjinho, ou ao menos era como imaginava; beijou sua testa como boa-noite e tinha de correr se não quisesse perder o ônibus para ir para casa.

A criança esperou que absolutamente toda a casa estivesse em silêncio total antes de começar a andar pelo quarto na ponta dos pés; não havia ninguém na mansão além dele e da mãe no quarto ao lado, mas ainda assim sentia necessidade de fazer tudo na maior discrição. Afinal, sabia que estava fazendo algo errado: não perturbe a mamãe, era o que lhe fora dito. E o que executaria a seguir era o contrário de “não perturbá-la”, se “perturbar” significasse procurar saber o real motivo pelo qual ela estava tão cansada nos últimos dias. Amava sua mãe mais do que tudo e sentia a necessidade de saber o que estava acontecendo com ela.

Saiu do quarto e andou silenciosamente pelo corredor até o quarto dos pais. Sem delongas, bateu na porta e esperou uma resposta. Provavelmente não havia ficado ali por muito tempo, mas a impaciência o fizera acreditar que longos minutos já teriam se passado. Frustrado, girou a maçaneta e abriu a porta lentamente.

A única iluminação do cômodo era do abajur do criado-mudo; Olívia estava de pijamas debruçada na cama olhando para algo que parecia ser um álbum de fotos. Estava distraída, movendo os olhos cuidadosamente sobre cada fotografia.

— Mamãe. — chamou Natsu, fazendo-a voltar à realidade.

— Querido. — a mãe fungou e esfregou os olhos. Estava chorando. — O que foi?

Desconfortável por vê-la chorar, timidamente fechou a porta atrás de si.

— Mira disse que eu não devia... perturbá-la. — a palavra soava realmente engraçada de se dizer para o menino de cinco anos de idade. — Mas, mamãe, eu queria muito falar com a senhora!

A mulher deu um sorriso fraco e fez sinal para que ele se deitasse ali.

— O que você quer falar, filho? — perguntou com a voz falhada, de frente para o filho. Mexia em seus cabelos, fazendo-o sentir tanto sono...

— Bem. — começou ele, olhando diretamente em seus olhos verdes que tanto achava bonitos. Eram como esmeraldas, mas esmeraldas sem brilho. — Eu estou com saudade, mamãe. A senhora não sai do quarto nem para jantar comigo... E eu fico muito triste porque queria que estivesse comigo.

Os olhos de Olívia marejaram; seu coração estava frágil naquele momento. Era como se fosse feito de vidro.

— A Mira disse que a senhora está cansada. Mas mamãe, por que está tão cansada?

Lágrimas escorreram por sua face e ela mordeu o lábio.

— É, a mamãe está... um pouco triste. — fungou mais uma vez. — Mas não é nada que você deveria se preocupar, querido.

— Mas a senhora é minha mãe. — protestou. — E eu a amo, por isso estou preocupado.

A única coisa que a mulher desejava era abraçá-lo fortemente e chorar até que não pudesse mais, mas se conteve. Natsu era só uma criança.

Encostou sua testa com a do filho, engolindo o choro.

— Por favor, mamãe. Me diga o que está te deixando triste. — implorou ele, também triste e frustrado por pensar que a mãe queria esconder algo dele. — Por favor.

— A mamãe está triste por causa do papai, vidinha. — em seguida tratou de corrigir a frase, pois soava um tanto errada. — Digo, não é culpa do papai. Mas me entristece mesmo assim.

— Por que o papai? — perguntou ele com sua inocência infantil. — Ele não volta para casa amanhã?

Olívia balançou a cabeça negativamente.

— Mas... Mas... O que aconteceu com o papai?

— A empresa quer que ele fique mais um tempo na cidade. — ela ainda acariciava seus cabelos róseos. — O papai não queria, mas vai ter que ficar lá. E a mamãe está triste porque está com saudades e vai demorar mais um pouquinho até que o vejamos de novo...

Natsu sentiu-se decepcionado. Igneel, o pai, lhe fazia falta ainda que não o visse com muita frequência; tal fato devido ao trabalho que exigia que estivesse viajando o tempo todo. Era uma pequena criança mas, pensando bem, já havia se acostumado com a ausência de Igneel.

Mas Igneel estava fazendo com que sua mãe ficasse cansada daquela maneira, trancafiada naquele quarto por vários dias; fazer a mulher da qual mais amava no mundo, sua grande heroína, era algo imperdoável. E em seu coração, começava a desenvolver-se um sentimento um tanto prematuro para uma criança de cinco anos de idade.

Ódio. E somente isto.

Igneel e Olívia Dragneel aproveitavam um banho de banheira com tudo ao que possuíam direito: velas, sais de banho, incensos, uma música relaxante em volume reduzido ao fundo e muito, mas muito amor. Sentada no colo do marido, Olívia suspirava de prazer tendo as costas suavemente massageadas. Igneel beijava seu pescoço apaixonadamente, fazendo-a se sentir absolutamente nas nuvens. Era como estar em um sonho bom do qual jamais gostaria de acordar.

— Eu amo tanto... você... — arfou e virou a cabeça para beijá-lo mais uma vez naquela noite, passando as unhas afiadas em sua nuca. Iniciaram uma série de beijos cada vez mais longos, somente interrompidos por declarações de amor.

Um tempo depois, pararam e ficaram abraçados apenas sentindo o aroma delicioso proveniente dos incensos. Aroma de rosas, as flores favoritas da sra. Dragneel.

— Estou tão feliz que você ficará mais esses dias todos aqui... Comigo... — sussurrou de olhos fechados enquanto relaxava os músculos ainda mais, se é que isto era possível.

— É.

Aquele tom de voz.

Aquela resposta monossilábica.

Aquele modo repentino de endireitar o corpo.

— Igneel. — ela se desvilhenciou de seus braços e ficou de frente para ele, olhando-o fixamente. Como previsto, o marido desviou o olhar. Olívia levantou bruscamente, incrédula.

— Não fale.

— Olívia, eu...

— Não! — cortou, não querendo ouvir o que lhe seria dito. Sabia o que estava prestes a acontecer; sempre, toda a vez que finalmente sentia que podia realmente acalmar a mente. — Que merda, Igneel!

A empresa queria que ele viajasse de novo. Claro. Negócios.

— Amor. — o homem saiu de dentro da banheira e amarrou uma toalha branca ao redor da cintura para segui-la pelo quarto. A esposa já vestia o pijama, franzindo a testa. Sua expressão demonstrava exatamente o que queria dizer: não quero conversa com você.

— Olívia, por favor...

— Não me toque. — rosnou, fazendo um movimento brusco para desviar da mão de Igneel. Utilizou uma toalha para retirar o excesso de água dos cabelos negros; seus olhos de esmeralda nunca mostravam tanta raiva como antes. — Daqui a quantos dias eles querem que você vá? Hoje mesmo? Ou amanhã?

O rosto da sra. Dragneel possuía a cor do mais intenso vermelho, como se estivesse prestes a explodir.

— Depois... Depois de amanhã. — murmurou ele, sem saber como se portar ou que expressão fazer.

— Ótimo, Igneel. Ótimo. — Olívia marchou até a porta, no entanto, sua passagem fora impossibilitada. Havia um muro colocado bem em sua frente.

— Não aja como se fosse minha culpa. — disse o homem, segurando o rosto da amada com ambas as mãos. — Você sabe que não sou eu quem decide esse tipo de coisa, meu amor. Por favor...

O aborrecimento da sra. Dragneel não diminuíra em absolutamente nada.

— Com licença. — pediu, empurrando-o para que abrisse caminho. Não queria ouvir mais uma palavra do que o marido tinha a dizer; estava triste e furiosa, prestes a iniciar uma crise de choro. Sem olhar para trás, saiu do quarto e o deixou conversando com as paredes. Andou no corredor até chegar no quarto do filho. Com os pensamentos embaralhados, mal bateu na porta e entrou no cômodo.

Natsu tomou um susto com a entrada repentina, deixando o controle do videogame não escapar de suas mãos por pouco. Não deveria estar tão surpreso assim, já que havia ouvido alguns gritos; no entanto, por estar tão concentrado no jogo, não os realmente escutara.

— Mãe? — a única fonte de iluminação do quarto era a televisão, de modo que não conseguia enxergar o rosto da mãe muito bem.

— Desculpe por não ter batido antes de entrar, querido. — disse ao fechar a porta atrás de si com a voz trêmula. Sentou-se no chão ao lado do rapaz e percorreu os dedos em um controle largado ali por perto.

O rosado parou de jogar na hora que ela se aproximou; agora ele podia ver claramente que ela estava chorando.

— Mãe. — Natsu tocou seu ombro desconsertadamente. Nunca sabia como reagir diante das lágrimas da mãe; era como se uma força invisível o dilacerasse pouco a pouco. — O que...

Olívia atirou-se em seus braços.

— Seu pai. — respondeu quase num sussurro. — Seu pai.

Imediatamente sentiu o sangue ferver; seu coração fora preenchido com a total fúria. Não era preciso que lhe fosse explicado o que estava acontecendo: então, Igneel estava prestes a fazer as malas e viajar mais uma vez a pedido da empresa.

Para si, era um alívio não respirar o mesmo ar, na mesma casa que aquele homem putrefato, mas tinha consciência do que aquilo significaria para o bem-estar mental de sua mãe; brigar com ele ao receber a notícia queria dizer que surtaria no tempo em que o empresário ficasse fora. Ou depressiva debruçada sobre a cama olhando álbuns de fotos velhos ou depressiva fazendo compras de valores absurdos. E chamaria o spa de novo lar mais uma vez.

— Eu vou ter lá conversar com ele. — sua voz soou mais rouca do que pensava e fez menção de se levantar.

— Filho, não. — suplicou ela, arregalando os olhos. Seu corpo tremia por inteiro. — Fique aqui. Fique aqui comigo, por favor.

A única coisa que pôde conter Natsu de se levantar e dar um belo soco no rosto do pai foi a expressão de desespero da mãe. E no fim, socar aquele filho da puta não mudaria coisa alguma.

O filho abraçou fortemente, permitindo que derramasse lágrimas sobre sua camisa e falasse o que precisava.

— Eu estava tão feliz. — sussurrou Olívia. — Eu pensei que... pensei que ele fosse ficar mais tempo conosco. Mas... Mas ele vai embora depois de amanhã. Depois de amanhã, querido. Seu pai me pede para entender. Mas as vezes eu não consigo. Não consigo.

— Eu sei, eu sei. — o rosado passava os dedos naqueles cabelos negros. — Mãe, esse cara te faz sofrer. E eu não sei porque você ainda está com ele...

— Eu o amo. — respondeu ela com a voz chorosa. — Eu amo o seu pai, Natsu. Ele é o homem da minha vida.

Natsu engoliu em seco, incrédulo de que a mãe realmente estava falando sério. Quem amaria um homem como aquele? De qualquer forma, resolveu não fazer mais perguntas do gênero. Ouvi-la dizer que o amava lhe dava ânsia.

— Você devia secar o cabelo, mãe. — mudou de assunto, mantendo o tom de voz gentil. — Vai ficar resfriada.

— Meu secador está no outro quarto. — a sra. Dragneel fungou. — Não é como se eu quisesse buscá-lo. Não quero voltar para lá, pelo menos não esta noite.

— Se você quiser eu tenho um secador no banh...

Olívia fitava o console do PS4. Secou as lágrimas com a manga do pijama e dando um sorriso fraco, perguntou:

— Como é que funciona esse jogo, filho?

Olívia e Igneel fizeram as pazes algumas horas antes de ele viajar; menos mal, pensou Natsu. Assim a depressão-pós-ida-do-filho-da-puta seria menos intensa. Ao menos, era o que o rapaz esperava.

Observou Lucy fechar o porta-malas do carro que levaria o cara até o aeroporto, sorridente.

— Tenha uma boa viagem, sr. Dragneel. — ela curvou-se timidamente em frente a janela e Igneel assentiu com a cabeça em resposta, sério. Todos acenaram enquanto o automóvel ia embora, exceto Natsu. Se pudesse, teria gritado para o mundo o quão aliviado estava. Não aguentava mais olhar para a cara do pai durante as refeições.

Se agora o “problema Igneel” havia sido resolvido por ora, o rosado possuía mais uma coisa para, digamos, saber que porra estava acontecendo. Não aguentava mais ficar observando de braços cruzados.

Lucy sabia de um segredo que ninguém mais podia saber; uma palavra e sua vida iria pelos ares como fora uma outra vez. A criada estava sendo chantageada com um vídeo que poderia fazê-la perder o emprego. Mesmo com a gravidade dos fatos, a loira continuava a mesma: sorria timidamente e não havia um sentimento de repulsa em seu olhar. Que plano diabólico estaria armando enquanto sorria sem demonstrar indiferença perante a ele, raiva ou o medo desesperador? Pensar nisto o fazia dormir mal à noite também. Mas aquilo acabaria hoje.

Após o almoço, o rapaz a esperava enquanto mexia no celular, deitado na cama. Aquele dia era o dia de aspirar seu quarto; perfeito. Assim não seria necessário chamá-la com uma desculpa do tipo “não consigo encontrar meus fones”. Não levantaria suspeitas.

Heartfilia bateu na porta um tempo depois, carregando o aspirador de pó consigo. Surpreendeu-se quando a porta abriu quase de imediato. Natsu a recebeu com um sorriso maldoso e a arrastou pelo braço para dentro, fazendo-a largar o aspirador na hora.

Pressionada contra a parede, a garota arregalou os olhos, momentaneamente assustada.

— É o seguinte. — disse ele, a obrigando a olhá-lo diretamente. — Seja qual for a merda do seu plano, não vai funcionar. Você não vai me passar a perna.

Lucy sentiu-se confusa.

— Plano?

Aquela expressão de inocência enfureceu Natsu ainda mais, apertando-a com mais força.

— Senhor, por favor...

— Eu não vou deixar você contar pra ninguém sobre o que você viu, tá entendendo? — Dragneel franziu a testa, intimidador. — Uma palavra e eu acabo com a sua raça.

Os olhos da jovem marejaram; ela queria chorar. Sentia medo, mas o fato de estar sendo pressionada contra a parede daquela forma era o de menos. O medo estava ao ver seus olhos verde-escuros, agora quase negros. Negros como a escuridão que preenchia seu coração e agora, mais do que nunca, ela sabia disso.

Você pode ser a luz, ecoou uma voz doce e familiar em sua cabeça. A voz que acabara com sua insônia. A voz que jamais pensou que ouviria de novo...

— O que faz o senhor pensar que eu contaria para alguém? — agora ela realmente estava chorando. — Eu disse ao senhor, não disse? Seu segredo está a salvo comigo.

Por algum motivo, aquele choro fez com que seus olhos voltassem à cor habitual. Natsu a soltou de repente, percebendo o quão alterado estava. Momentos antes, desejou derrubá-la e a agredir, mesmo que não fosse uma atitude nem um pouco racional. Como pôde pensar em bater em uma mulher?

— Você tem que me odiar! — praticamente gritou. — Você deveria sentir raiva de mim! Eu sou aquele que pode te fazer perder o emprego e mesmo assim, você continua sorrindo pra mim, porra! Que é que você tá planejando? Por que você continua sendo gentil comigo?

Boquiaberta por alguns instantes, Lucy se aproximou dele. Corada, ficou na ponta dos pés e tocou seu rosto macio. Apesar da timidez, esforçava-se para realmente olhá-lo diretamente.

Porque eu não o odeio, sr. Natsu.

A resposta o pegou desprevenido. Sem reação, lhe deu as costas e saiu andando, ouvindo a voz da garota falando em sua cabeça. Como? Como a resposta para a pergunta que tanto se fazia poderia ser a mais imbecil possível?

Como Lucy podia não odiá-lo pelo o que estava fazendo?