Maldito despertador. Seis e meia, no sábado? Tudo bem que quem não o desarmou fui eu, mas, mesmo assim, o barulho me deixava maluca. Coloquei o aparelho depressa debaixo do travesseiro, no entanto, abafar o som não adiantou de nada. Por que mesmo eu achei que adiantaria? Ainda estava com sono depois da canseira que Teri me deu na noite anterior. Então lembrei-me que nós havíamos combinado dela me mostrar a cidade naquele dia, mas, com o porre, eu duvidava que ela estivesse em condições apropriadas. Decidi que ligaria mais tarde para confirmar o desmarque do passeio.

Fiquei na cama mais uma hora, depois levantei, escovei os dentes e fui correr um pouco ao redor do bairro, gostava de fazer isso nos fins de semana. Fiquei o tempo todo de olho no GPS do relógio digital, que ultimamente havia se tornado o meu melhor amigo, pois seria uma lástima me perder ali. Já imaginava ter de ligar para irem me buscar na esquina da minha própria casa. Voltei da corrida em tempo de tomar café da manhã com a minha mãe e Anne ganhou um sorriso de orelha a orelha quando me sentei com ela a mesa. Pelo menos Michael não estava em nenhum lugar visível.

— Então. Como foi a noite? – Ela perguntou.

— Boa.

Eu também estava cansanda destas respostas monossilábicas, mas foi realmente a única coisa que consegui dizer. Ela pareceu um pouco desapontada e cheguei a sentir um resquício de remorso. Apesar de qualquer coisa, ela ainda era a minha mãe.

— Posso convidar minhas amigas para virem aqui um dia desses? – Perguntei, comendo uma fatia de bolo de nozes, meu preferido. Começava a desconfiar de que alguém ali estava tentando me agradar demais.

Anne sorriu e seu rosto se encheu de luz novamente.

— Claro. Por que não as convida para almoçar amanhã? Eu adoraria conhecê-las. – Ela propôs, parecendo sincera.

— Acho que vou fazer isso. Obrigada.

— Pergunte o que elas gostam de comer. Assim, posso pedir que Nancy prepare.

Ela de repente estava muito animada. Apenas assenti, positivamente.

— Estava pensando que poderíamos sair para ver a cidade e fazer compras, como costumávamos fazer.

— Era tudo o que fazíamos, mãe. De qualquer forma, eu já tenho coisas demais. Não gaste seu dinheiro a toa. – Eu disse, tomando um gole de leite morno.

— Não é a toa, querida. Gosto de te comprar coisas. Todas as que quiser. – Ela protestou, um tanto ofendida.

— Eu não preciso de nada agora, de verdade. Além disso, já combinei com uma amiga e ela vai me mostrar a cidade. Á propósito, vou ligar para ela, com licença.– Informei, levantando-me da mesa e subindo para o quarto.

Tomei banho, coloquei um roupão e peguei meu celular, atirando-me na cama. Disquei o número de Teri e, depois de chamar algumas vezes, ela atendeu.

— Alô. – Ela disse com a voz rouca e embargada.

Eu provavelmente a havia acordado com aquela ligação. Não quis nem imaginar o seu estado.

— Oi, Teri, é a Amanda. Liguei para saber como você está. E se ainda está de pé nosso passeio hoje.

— Estou péssima! Minha cabeça dói, minha garganta dói e, com o estado do meu cabelo, eu pareço um cosplay ridículo da Hermione Granger. Acho que minha mãe vai me matar quando perceber que eu finalmente acordei, então, talvez eu não possa mesmo ir. Mas vou tentar dar um jeito, não se preocupe. Você vai conhecer essa porcaria de cidade hoje ou eu não me chamo Terisse Magnólia Lokewood. – Ela disse, convicta.

— Terisse Magnólia? – Perguntei, contendo o riso.

— É a primeira e última vez que me ouve pronunciar meu nome completo. Se alguém souber disso, não se esqueça de que eu saberei quem foi.

Ri com fervor.

— Certo. Beba muita água.

— Acredite, eu vou! Falo com você depois. – Disse ela.

— Tchau. – Desliguei.

Passei o resto da manhã lendo e falando com Lucy. Contei a ela um resumo do que aconteceu no dia anterior e ela me chamou de vaca filha-da-mãe, reclamando de como a minha vida estava mais interessante em um dia do que a dela havia sido no último ano. Como eu suspeitara, Lucy não estranhou nem um pouco que eu tivesse me identificado tão depressa com Teri, mas avisou que se ela tentasse roubar a sua melhor amiga, não haveria lugar onde a garota pudesse se esconder. Quase chorei ao ter que me despedir dela novamente.

Depois do almoço, com Anne e o robô que eu chamava de pai, subi de novo para o quarto e recebi uma mensagem de Teri, pedindo meu endereço. Concluí que ela estava melhor e que íamos realmente fazer o tour que ela prometera. Enviei o endereço e ela logo respondeu.

"Arrume-se. Você vai conhecer os melhores pontos desta cidade!"

Coloquei uma roupa e aprontei-me. Esperei algum tempo, até ouvir a campainha tocar, e desci as escadas, correndo e gritando que era para mim. Corri para o portão, esperando ver a expressão pálida e desanimada de Teri, mas qual não foi a minha surpresa quando vi o rosto mais lindo do mundo sorrindo para mim.

— Adam? – Indaguei, surpresa.

— Oi. Caramba, você mora mesmo aqui? – Ele indagou com uma mistura de choque, admiração e constrangimento. – Enfim, minha irmã cachaceira está em casa, em coma alcóolico forjado, tentando se livrar da bronca da nossa mãe. Então, eu serei o seu guia hoje!

— Não precisa fazer isso. – Comecei.

— Não mesmo. Mas eu quero! Vamos?

— Amanda? – Minha mãe chamou de dentro da casa.

— Vou sair! – Gritei de volta. – Vamos! – Falei, saindo pelo portão o mais depressa possível.

Entrei no carro com Adam e saímos.

No caminho ele me perguntou sobre o que eu fazia onde morava antes, o porquê de ter me mudado e muitas outras coisas. Foi uma conversa agradável, apesar da curiosidade insaciável de Adam. Teri e ele eram bem parecidos nesse aspecto. Passeamos por alguns minutos e então paramos em uma avenida, caminhando por ela. Adam explicou que aquela era a principal avenida comercial da cidade e me apontou alguns pontos, como a, segundo ele, melhor pizzaria de Baton Rouge, um cinema, e também um bar de música ao vivo. Entramos em alguns lugares, como uma livraria charmosa, onde comprei um livro, e um Pet Shop, onde Adam comprou comida para o gato que tinham em casa enquanto eu acariciava os animaizinhos da loja. Levamos cerca de uma hora nisso. Voltamos ao carro e ele me mostrou onde ficavam o shopping e outras lojas populares, daí rodamos e rodamos por horas á fio, pelos mais diversos lugares, até que, no fim da tarde, ele me levou a uma lanchonete perto do centro, contando-me que a maioria dos alunos do nosso colégio costumava se encontrar ali.

Quando entramos o lugar estava realmente cheio, em maior parte por adolescentes. Jocelynn estava lá, com o mesmo cara com o qual desaparecera na festa, e lembrei de tê-lo visto na escola, acho que era do último ano. Ela me viu e abriu um largo sorriso, parecendo estranhar entretanto minha companhia. Pedi a Adam que fosse pegando uma mesa e fui cumprimentar a ruiva, explicando, um pouco encabulada, o porquê de eu estar ali com o irmão de Teri. Jocelynn contou que ligara para a amiga mais cedo e que ela parecia uma alma penada no telefone, depois, não menos encabulada que eu, apresentou o garoto que comia batatas fritas a seu lado, Jason. Os olhos dela brilhavam ao falar o nome dele. Tratei de sair rápido, para não atrapalhá-los mais, e localizei Adam, para então pedirmos algo para comer. Ele disfarçadamente me indicava pessoas e contava histórias sobre elas, como a de Matt, um rapaz de óculos e sapatos sociais, e sua coleção de fios de cabelo, e de Carol, a atendente do caixa que fora flagrada se agarrando com a namorada do pai no depósito dos fundos e agora tinha um relacionamento com a moça com todo o apoio do terceiro. Cheguei a conclusão de que aquela cidade era mesmo bastante animada.

O pedido mal chegou e fomos interrompidos por Dave e Ryan, que tinham acabado de entrar. Achei engraçado pois os dois de alguma forma realmente pareciam dois irmãos siameses, com as mesmas expressões faciais e jeito de andar. Será que eles se desgrudavam pelo menos para tomar banho?

— Adam! Já trocando a Janice pela novata? – Dave insinuou, presunçoso.

— Não seja panaca, Dave. Você sabe muito bem que Janice e eu não temos nada.

— Sei? Ela está bem convencida de que vocês dois têm algo um com o outro. Mas quem sou eu para saber? Só o cara que ela chutou por sua causa. – O rapaz disse, sorrindo sem humor algum. – Mas, quer saber? Dane-se a Janice. Eu sempre disse que aquela garota era maluca. – Ele, sem cerimônia, puxou uma cadeira e sentou. – Podemos sentar aqui? O lugar está cheio.

— Claro. – Adam disse, dando de ombros, e Ryan sentou também. – Já estavamos saindo de qualquer forma.

— Sério? Que pena. E agora? Sorvetinho na praça? – Ele perguntou, olhando de Adam para mim.

— Dá um tempo, Dave. – Reclamou Adam com um tom rude e se levantou. O outro fez o mesmo.

— O que foi, Adam? Não seja um idiota egoísta. Quer a atenção dela só para você? Não garante a conquista se tiver um pouco de competição? – Ele olhou fixamente para mim e sorriu.

Adam deu um passo a frente, cerrando os punhos, e fiquei assustada com o rumo que aquilo estava tomando. Eles não eram amigos? Não eram? Adam o encarava duramente e os dois pareciam prontos para sair no braço, então levantei e me coloquei ao lado do meu acompanhante.

— Adam. Já é tarde. – Eu disse, vendo sua expressão suavizar.

Adam olhou para mim e de volta para Dave, tirando uma nota do bolso.

— Vamos! – Ele concordou.

Segui-o.

— Ei, Amanda. – Dave me chamou e virei-me automaticamente, com medo de ter esquecido algo. – Te vejo por aí. – Ele piscou.

Franzi o cenho e continuei atrás de Adam, que colocou o dinheiro sobre o balcão e irrompeu pela porta. Antes de sair acenei para Jocelynn, que assistia a cena toda com o semblante sério.

De volta ao carro, fiquei um tempo encarando meus próprios pés e então tomei coragem para finalmente me pronunciar.

— Pensei que fossem amigos. Você e Dave. – Falei, fitando-o.

— Nós somos. Quer dizer, nós éramos. Não sei mais. – Ele disse, pensativo. – Tivemos uma briga, feia, mas parecia que ele tinha superado. – Ele mesmo parecia confuso com suas palavras.

— Ele pareceu bem magoado lá atrás. – Constatei.

Adam riu, com escárnio.

— Ele tem as razões dele. Mas ainda tem um lugar que quero te mostrar. – Ele pediu, sorrindo amarelo.

Olhei pela janela e o céu estava negro e estrelado. Acabei estreitando as sobrancelhas, receosa.

— Eu sei que já está ficando tarde, mas é rápido. Prometo. – Afirmou, olhando de mim para a estrada com expectativa.

— Tá, tudo bem. Vamos nessa. – Concordei e o rapaz sorriu, parecendo animado.

O que diabos ele ia me mostrar?

Em poucos minutos fomos parar em uma pequena estrada de terra. Adam parou o carro e me chamou para descer. Confesso que fiquei um tanto alarmada com o escuro e as muitas árvores em volta, mas desci, e ele, com o auxílio de uma lanterna, me guiou pelo caminho íngreme. Conforme fomos andando, ouvi o vento nas folhas e o som bastante nítido do que parecia ser água corrente, e, com apenas alguns passos mais, paramos. Olhei diretamente para a superfície brilhante e espelhada na minha frente e percebi que ali já não precisávamos da lanterna, pois a luz da lua iluminava suficientemente tudo.

— Nossa. – Exclamei, admirada.

Estávamos agora contemplando um lago e meus olhos começaram a checar as características do terreno. O solo era um pouco mais elevado do que a água no ponto em que estávamos, formando ali um baixo penhasco, e o chão em volta quase todo coberto por grama. Também havia muitas árvores de todos os tipos e tamanhos ali e o meio ambiente parecia extremamente conservado. Adam se sentou no limite da extremidade de terra e ficou observando a água em silêncio.

— Isso é... – Eu estava sem palavras.

— Perfeito. Não é? – Ele disse.

— Mais do que isso. Nunca vi, em toda a minha vida, algo tão bonito quanto isso. – Sorri fascinada, sentando-me ao seu lado.

— Nós costumamos vir aqui, principalmente aos domingos, mas é raro alguém vir a noite. Então eu venho sempre que quero relaxar ou só pensar. – Contou, com o olhar distante. – Mas, o quê? Uma menina de Nova York, que tem motorista e mora naquela casa, nunca viu algo melhor que isso? Não posso acreditar.

Ele me encarou com uma sobrancelha arqueada e um sorriso zombeteiro. Ri, embaraçada.

— Victor não é meu motorista. É um assessor, mas meu pai o escraviza.

Ele sorriu.

— Bem, mas você poderia ter um se quisesse. Certo?

— Acho que sim. Não sei.

— Ainda não acredito. Você já deve ter viajado muito, para esses lugares paradisíacos que vemos na internet. Isso aqui não é nada!

Balancei a cabeça negativamente e foi a minha vez de adotar um olhar distante.

— Eu vivi muito tempo em um colégio interno, então, as únicas viagens que eu fazia eram as do internato para a casa dos meus pais e às vezes pra uma casa de campo. Eles é que viajavam muito.

Fiquei receosa em deixar transparecer minha tristeza, então o evitei, olhando para outra direção.

— De verdade? – Ele perguntou, abismado.

Voltei-me para ele novamente, dando de ombros.

— Não pode ser. Uma garota como você presa em um colégio interno? Isso é tão estúpido. – Ele exclamou, parecendo indignado.

— Uma garota como eu? – Pedi, curiosa.

— É, sabe? Gente boa, inteligente e, ainda por cima, linda. Quer dizer, foi mal, isso não foi uma cantada. – Adam respirou pesado e olhou para o lado, como que embaraçado. Ri de seu jeito e ele ficou sério de repente. – Mas, se fosse, seria sincera. – Concluiu, olhando-me nos olhos e desviei os meus envergonhada.

Olhei o horizonte mais uma vez, pois queria decorar cada ponto daquela paisagem. Peguei o celular e vi espantada que já eram quase nove horas. Havíamos passado o dia todo na rua e, agora que estavam bancando os bons e preocupados pais, talvez eles dessem um chilique por isso.

— Preciso ir. – Eu disse.

— Certo. Vou te levar para casa.

Ele levantou e me ajudou a levantar também. Voltamos rindo e brincando para o carro e ele me levou para casa.

Quando estacionamos, na frente da entrada, fiquei sem saber como me despedir e senti-me aflita. Nunca tinha tido um encontro. Mas aquilo nem era um de qualquer forma, era? Não, não era.

— Obrigada por tudo. Foi muito divertido! – Falei, meio nervosa. – Te vejo na escola.

"Ok. Saída estratégica!"

— Amanda? – Ele chamou, antes que eu pudesse sair. – Posso te dar um abraço? – Pediu, encarando-me com firmeza.

Fiquei estática quando ele não disse “brincadeirinha”.

— Tem certeza de que não está me cantando? – Questionei-o, divertida.

— Pode ser. Mas quero mesmo te abraçar. Não agradeci por você ter ajudado a minha irmã ontem a noite, mesmo não a conhecendo direito, e Teri confia em você agora, pelo que fez por ela, então eu também confio. – Ele disse, e fiquei comovida com o carinho que ele demonstrava pela irmã mais nova.

Inclinei-me para a frente, jogando meus braços por cima dos ombros de Adam, enquanto ele passava os seus em torno de mim, e senti-me quente e acolhida. Estranha também, mas ao mesmo tempo confortável. Havia todo um clima de romantismo, mas eu não sentia nenhuma malícia por parte do garoto, ele apenas retribuía o abraço ternamente como se fosse realmente importante para ele. Separei nossos corpos cuidadosamente e me despedi, saindo do carro.

Vê-lo se distanciar me trouxe imediatamente uma sensação de alívio, como quando você vai para casa depois de um dia cansativo, mas também trouxe uma incômoda sensação de falta, como se algo que eu tivesse ganho naquele dia estivesse indo embora junto com ele.

Entrei em casa, sorrindo, mas o sorriso logo se foi, quando encontrei meu pai, mumificado e sentado em uma poltrona, parecendo até o personagem de Marlon Brando em "O Poderoso Chefão". Naquele instante tive a absoluta certeza de que aquilo iria render. Com certeza, iria render um bocado.