Pretty

InConsequências.


Sabe quando você está em um momento crítico e dizem que passa um filme da sua vida inteira na sua cabeça? Acho que eu estava exatamente em um desses momentos agora, ou pelo menos era como eu me sentia, já que Michael sabia melhor do que ninguém como fazer uma boa expressão de fúria.

— O quê acha que está fazendo, menina? – Ele perguntou, tentando comedir o próprio tom de voz.

— O que você quer ouvir? – Retruquei. Sem querer, desafiando-o.

— Escute, Amanda. Você não precisa nos agradecer por nada. Nem mesmo nos amar. Mas tem que nos respeitar! – Ele vociferou as últimas palavras.

Ri com escárnio.

— Agradecer pelo que? Pelos anos que me deixaram trancada e abandonada naquele colégio? Sinto muito, mas não posso fazer isso! Nem demonstrar uma afeição fabricada por pessoas que mal reconheço. No entanto, se eu os desrespeitei, me desculpe. Não foi mesmo a minha intenção. – Ditei, sincera quanto a isso. – Posso subir agora?

— Você entenderá quando tiver os seus filhos e tiver que trabalhar para sustentá-los e lhes garantir uma vida prospera.

Eu jamais negligenciaria meus filhos como eles haviam feito comigo.

— Vocês trabalham tanto. Pensei que fosse o bastante para sustentar pelo menos quatro gerações.

— Acha que vai viver para sempre do nosso sacrifício sendo assim tão ingrata?

— Eu não ligo para o seu dinheiro. Por mim pode pegá-lo e ir para o inferno.

Michael então ficou vermelho, o sangue borbulhando através da pele, e o peso de minhas palavras caiu imediatamente sobre mim quando ele se descontrolou e me acertou em cheio com uma bofetada no lado esquerdo do rosto. Seus olhos tremularam e os meus se encheram d'água.

— Pode não ligar para o meu dinheiro, mas é graças a ele que você tem o seu futuro garantido. – Ele se virou para a parede, resignado. – Vá para o seu quarto e não saia de lá até que eu diga. Você está de castigo.

Andei devagar escadas a cima, segurando as lágrimas como se fossem me matar, mas no quarto chorei tudo o que estava engasgado. Também chorei durante a noite e a madrugada praticamente toda. Cada gota pelos sete anos de negação e desesperança que eu passei e que simplesmente não podia esquecer ou perdoar.

* * *

No dia seguinte, vivenciei uma verdadeira experiência de cárcere e não saí do quarto para nada durante o dia todo. Eu poderia, provavelmente, mas não queria. Ainda não havia digerido a bofetada que Michael me dera e tinha receio de causar uma briga ainda maior. A cozinheira, Nancy, trazia-me as refeições, como em uma verdadeira prisão, mas eu também mal tocava na comida. Em um momento cheguei a me pegar rindo daquela situação. Teria realmente sido tão mais simples se eu tivesse apenas dito onde estive e o que estava fazendo, mas meu orgulho venceu a minha sensatez. E olha só para as consequências.

Mais tarde, já definhando em tédio, recebi um telefonema de Teri.

— Alô. – Atendi.

— Oi. Tudo bem? – Ela disse e sua voz soou bem melhor que da última vez. Normal, na verdade.

Olhei para os lados e refleti sobre o que falar.

— Sim. – Respondi, por fim.

— E aí? Como foi o passeio? – Ela perguntou e ouvi barulhos de panela. Deduzi que ela estava cozinhando.

— Seu irmão não contou? – Questionei-a.

— Não. Ele não fez nada idiota, fez? Ele pode ser um cretino quando quer.

— Não. Ele foi muito legal. Agradeça a ele por mim e obrigada a você também, por não me deixar na mão.

— Não podia fazer isso depois de ontem. Eu não me lembro de muitas coisas, mas lembro que você foi muito boa comigo. Obrigada.

— Não por isso. E está melhor?

— Muito. Minha cabeça ainda está doendo um pouco, mas vai passar logo. A parte ruim é que minha mãe continuará falando nos meus ouvidos até que eu me forme, provavelmente.

Pensei por um instante em chamá-la para almoçar, mas como o clima naquela casa não estava muito ameno, achei melhor deixar o convite para outro dia.

— Bem, sempre há um preço. Certo? – Disse a ela, divertida.

— É, só podia ser mais barato. – Ela resmungou. – Preciso desligar. As panelas estão queimando. Ai! Óleo quente idiota!

— Certo. Até amanhã.

— Até. – Despediu-se.

Agora meu quarto estava finalmente em perfeita ordem. Eu havia colocado todas as roupas e sapatos no closet, meus objetos pessoais em seus devidos lugares, e meu porta retrato prateado na cabeceira, com uma foto minha e de Lucy no quinto ano e sorrindo. Na realidade, aquele dia fora ironicamente o mais produtivo para mim desde que eu cheguei.

Depois da arrumação eu, morta de cansaço, decidi dormir, já que não tinha mesmo nada melhor para fazer. Mas meu sono, geralmente tranquilo, foi logo acometido por diversos sonhos confusos, com Adam, a imensidão de um lago e discussões infernais. Acho que, aos poucos, eu ia sendo esmagada pela natureza acumuladora da minha própria mente.

* * *

Na manhã do outro dia acordei um pouco atrasada, tomei um banho rápido e me vesti para a escola. Desci as escadas pronta para partir, mas, muito cedo para fingir normalidade, minha mãe me surpreendeu esperando por mim na sala de estar.

— Victor não poderá levar você hoje. – Ela disse de pronto. – E, como não o estou usando, pensei que poderia ficar com o meu carro até o seu aniversário. Assim não vai mais precisar que Victor te leve e te traga de volta de toda parte.

— Mesmo? – Perguntei, estupefata.

— Sim. Confio em você.

Franzi o cenho olhando para o chão. Aquilo era um claro pedido de desculpas, mas uma desculpa que não cabia à ela pedir.

— Bem, obrigada. E não se preocupe, irei cuidar dele. – Comprometi-me.

Ela assentiu e passou uma das mãos na lateral do meu rosto. Não me afastei apenas por consideração ao seu ato de confiança.

— Boa aula, querida. – Ela desejou.

Olhei para o relógio e vi que estava novamente atrasada, então corri para o carro - um Camaro Coupê preto que minha mãe adquirirá a cerca de cinco meses -, no entanto, não sei se fiquei mais feliz ou receosa em dirigi-lo. O veículo era muito veloz, com certeza, por isso fui capaz de chegar na escola bem em tempo, mas as vantagens para mim terminavam aí. O carro era muito chamativo, por isso todos os olhos se voltaram para mim quando estacionei e a sensação não foi nada boa. Ter um meio de locomoção era ótimo, mas a atenção que isso atraia era definitivamente desnecessária. No corredor, já dentro do prédio escolar, encontrei Teri, Jocelynn e Crystal conversando, e a primeira logo veio saltitando como um filhote de cervo na minha direção.

— Mandy! – Ela me abraçou.

Olhei-a, acanhada. Seria mesmo difícil me acostumar com aquela personalidade, ela sempre me pegava de surpresa.

— O quê foi? Não gosta de apelidos? – Ela perguntou, um pouco decepcionada.

— Tudo bem. Meus amigos de Nova York me chamavam assim também.

— Sente falta deles, não é? – Jocelynn murmurou.

— Sinto. Mas vocês são ótimas e estão se tornando boas amigas para mim. Isso ameniza bastante a falta. – Constatei.

— Own. – Crystal murmurou, comovida. – Abraço coletivo!

Ela envolveu-nos com seus braços e todas nos abraçamos, rindo como palhaças.

— Abraço coletivo! – Alguém disse, próximo a nós, e também nos abraçou.

Quando vi quem era, fiquei um pouco envergonhada, mas as outras apenas riram mais. Encerramos o abraço e encaramos finalmente o "intruso". Adam.

— O quê? – Ele deu de ombros. – Eu gosto de abraços.

Aquilo pareceu pessoal quando ele me olhou de soslaio. Lembrei-me do nosso abraço no carro e meu rosto começou a queimar. Eu devia estar vermelha como uma cereja agora.

— Vamos para a aula, antes que nos atrasemos. – Jocelynn falou, puxando Teri e Crystal pelos braços.

Senti como se aquilo fosse de propósito, então fiquei ali, parada, sem saber ao certo como agir. Adam também ficou parado e me olhando, como se esperasse algo.

— Oi. – Cumprimentou-me de repente. – Então. Fui um bom guia no fim de semana? – Ele perguntou, tímido e segurando as alças da mochila.

— O melhor! Obrigada mesmo.

— Me desculpe por aquela cena no carro. É que você é estranha.

— Estranha? – Ri, surpresa. – Sério? Acho que eu estava esperando algo um pouco diferente. Algo como gente boa, linda e inteligente. Sei lá.

Foi a vez dele rir.

— Por isso é estranha. Garotas como você geralmente se comportam diferente. Muitas vezes são esnobes e não se misturam, mas você não. – Ele sorriu. Um sorriso lindo. – Estava pensando. A cidade é grande e ainda tem muitos lugares que você não viu. Podemos chamar as garotas para ir, se quiser. Já que elas iriam mesmo de qualquer jeito. Teri tem medo de te deixar sozinha comigo. Acho que teme que você possa me atacar ou algo assim.

Gargalhei.

— Se esses lugares forem tão incríveis como aquele lago, o convite está super aceito!

— Não, não há nada realmente parecido com aquilo por aqui. Mas são lugares legais, você vai gostar. – Concluiu.

— Certo. Podemos combinar com as garotas então. – E repentinamente uma idéia me surgiu. – E você pode chamar algum amigo também, para não ser o único garoto no meio das garotas. O... – Fingi não lembrar o nome. – Kyle, talvez. Vocês parecem bem próximos.

Ou será que eu estava enganada? Como com Dave. Tive medo de ter cometido uma gafe, mas segui com o plano.

Ele sorriu.

— Kyle é o meu melhor amigo. Vou chamá-lo sim, mas desde que ele não traga Hanna a tira colo. Aquela garota é muito, muito estranha. E não no bom sentido como você. – Ele disse, com uma expressão engraçada.

Perfeito! Já podia imaginar a cara de Teri.

— Vou para a aula de espanhol agora. – Falei, hesitante.

— Então vamos. Também é a minha aula. – Ele sorriu.

Quando chegamos a sala, todos nos encararam como se estivéssemos vestidos de noivos. Vi-me especialmente desconfortável com os olhares de Ryan e Janice. Cheguei a pensar que a morena de olhar ferino fosse se levantar e partir para cima de mim. No decorrer das lições, Adam ficava lançando-me sorrisinhos divertidos e eu acabava retribuindo, sem perceber. Sentia-me um tanto estranha com relação a ele. Obviamente não estava apaixonada, nem nada do tipo, pois o conhecia há pouquissimo tempo, mas era tão bom estar perto dele. No final da aula, Adam tentou me seguir para fora, mas foi interceptado pela caçadora, Janice.

— Podemos conversar? – Ela inquiriu. – Sozinhos? – Me encarou significativamente.

— Com licença. – Pedi, afastando-me deles.

Ela o conhecia antes de mim e estava com ciúmes, acho que eu tinha o dever de deixá-los conversar a sós. Segui tranquilamente para a próxima aula, até que alguém me chamou.

— Amanda! – Dave gritou, correndo até mim. – Oi.

Pensei em fingir que não o havia visto, mas seria muita falta de educação.

— Oi, Dave. – Cumprimentei-o.

— Me desculpe pelo meu comportamento na lanchonete. – Ele falou, com uma expressão pesarosa. – Não sei se Adam te contou, mas nós tivemos umas desavenças e, ás vezes, eu gosto de provocá-lo.

Ele pareceu sincero.

— Eu entendo. Não tem problema.

— Só quis ter certeza de que não ficou chateada pelo que eu disse.

— Não. Tudo bem. – Afirmei.

— Legal. Então, te vejo por aí? – Ele perguntou, sorrindo.

— É. Claro. – Respondi, incerta.

Ele assentiu, com um sorrisinho bobo no rosto, e juro que cheguei a achar bonitinho. Fui para a aula e tentei me concentrar ao máximo até o fim. No intervalo, encontrei Teri, Crystal e Jocelynn, e elas e eu nos sentamos para comer.

— Então, Jocelynn. – Comecei, como quem não quer nada. – E o carinha da lanchonete? Ele é seu namorado?

— Ei. – Ela protestou, levantando as mãos, e fiquei com medo dela ter pensado que eu era alguma enxerida. – Pare de me chamar de Jocelynn, eu pareço uma velha. Me chame apenas de Lynn, tá legal? – Sorri para ela, assentindo. – E Jason e eu estamos nos conhecendo, suas curiosas. Ele é bonito e divertido, e estou gostando de ficar com ele.

— Que bom. Pelo menos uma de nós vai desencalhar. – Teri disse, colocando, sem ânimo, uma cenourinha na boca.

— Ei. Eu não estou encalhada. Só estou esperando a pessoa certa. — Defendeu-se Crystal.

— Tipo o príncipe da Branca de Neve? Caras perfeitos não existem, Crystal. Conforme-se de que são todos uns safados. – Verbalizou Lynn.

— Uau. Já disse isso tudo para o seu namoradinho? Ah não, espera, ele sairia correndo. – Teri brincou.

— É a realidade. Por mais que eu goste dele, vou continuar pensando assim. – Ela manteve, cem por cento convicta.

Admirei sua atitude de não ficar cega só por gostar de um cara. Apesar do pouco tempo de convivência com as três garotas, eu já conseguia distingui-las muito bem em personalidade, e, ainda assim, imaginá-las como um corpo só. Lynn era o lado racional, a que sempre pensava duas vezes, Teri o lado banal, a impulsiva, e Crystal o emocional, a que seguia o coração antes de tudo. Pensei onde poderia me encaixar nesse quadro tão perfeito.

— Querem ir jantar na minha casa? – Perguntei a elas.

— Claro. – Elas disseram, em uníssono.

— Tenho que fazer lição de casa e comprar comida para o Ches. – Teri disse. – Mas estarei lá!

— Ches? – Questionei.

— O gato preguiçoso dela. – Esclareceu Crystal.

— Cuidado com o que diz. – Teri pediu.

— Voce é obcecada por aquele bicho! – Lynn resmungou.

Não estava entendendo nada, mas lembrei que Adam tinha mencionado algo sobre aquilo quando paramos na loja de animais para comprar comida para gatos.

— Ele é a coisa mais adorável do mundo. Você vai amar Cheshire! – Teri falou, orgulhosa.

— Cheshire? Tipo o de "Alice no país das maravilhas"? – Perguntei.

— Não sei por qual dos dois ela é mais apaixonada. – Expressou Lynn.

— E se Kyle for alérgico a gatos. Já pensou nisso? – Crystal disse, aérea.

— Eu não sei porque somos amigas, sabia? – Teri murmurou, zangada, e rimos do quão ofendida ela pareceu.

Acho que ela não podia mesmo pensar nessa possibilidade.

No caminho de volta as salas me separei das outras, já que não tinha aula com nenhuma delas, e, perto da porta da sala onde entraria, senti um forte empurrão, batendo com as costas na parede. Encarei assustada a pessoa que me empurrou.

— Vê se fica longe do Adam. – Vociferou Janice, apontando um dedo para o meu rosto. – Não vou te avisar de novo! – Seu tom era tão feroz que quase pude sentir o ferro e a brasa queimando a minha pele. E então ela simplesmente saiu, pisando firme, e como se nada tivesse acontecido.

Fiquei parada por um instante, processando aquilo tudo, e depois entrei na sala, ainda pasma. Provavelmente Dave tinha razão quando disse que aquela garota era maluca e eu, com certeza, ficaria bem mais esperta com ela dali por diante.