Pretty

De volta a normalidade. Ou quase.


No meio da semana, Teri e eu já estávamos de volta a escola. Ela não se lembrava de quase nada do dia do acidente. E eu ainda estava em minha interminável busca por respostas. Sobre Adam, Dave, e todo o mistério entorno do passado deles, claro. Tentei discretamente tocar no assunto com Adam algumas vezes, mas ele era sempre tão evasivo. Com certeza algo sério havia acontecido, mas havia, quando meus pais sequer pensavam em pisar naquela cidade. Será que eu estava agindo corretamente ao procurar saber o que não era da minha conta? Mesmo que fosse por autopreservação? Bem, eu não sei.

— Oi. – Adam disse, sorrindo ao passar por nós no refeitório, indo se sentar na “mesa dos atletas” com Kyle, Dave, Ryan e outros garotos do time.

Teri levantou a colher deixando o purê cair de volta na bandeja. Seus olhos demonstravam um tédio contagiante. Acho que ela se sentia frustrada por não ter conseguido aproveitar o tempo a sós com Kyle quando teve a chance. Seus pontos estavam bem pouco evidentes no alto da têmpora direita, também porque ela os cobria estrategicamente com o cabelo. Já o meu ferimento ainda doía um pouco, quando eu me mexia bruscamente, mas pelo menos estava cicatrizando rápido.

— O que foi? – Lynn perguntou a Teri, quebrando o silêncio absoluto.

— Quero tirar esses pontos! São ridículos. – Ela disse, sem mudar a expressão tediosa.

— Quer um garfo? – Ofereceu Lynn irônica.

— Grossa. – Teri replicou, enfiando um pedaço de brócolis na boca.

— Tá, foi mal. – Suspirou. – Só estou cansada dessas caras de enterro. Ninguém morreu! E ninguém matou ninguém! – Lynn acrescentou, olhando especialmente para Crystal, que ainda estava melancólica. A loira apenas virou o rosto.

Continuamos em silêncio. Acho que ninguém queria admitir que, talvez, estivéssemos mesmo arrastando aquilo mais que o necessário. Aproveitando para esconder outras frustrações pessoais.

— Já sei! – Lynn começou novamente. – Nesse final de semana, vamos todas ao lago!

O lago?”. Pensei comigo mesma.

— Ótima ideia. E Amanda e eu podemos fazer curativos de plástico, o que acham? – Teri disse com evidente sarcasmo.

Lynn balançou a cabeça negativamente, consternada.

— Não disse que temos que entrar na água. Só vamos curtir. Conversar.

Teri rolou os olhos, desanimada demais para protestar.

— Eu não vou conseguir ir. – Disse logo.

— Por que? – Lynn perguntou com semblante descontente.

— Vou ter que... – “Pensa rápido!” – Fazer compras com a minha mãe! – Menti.

O que eu não queria contar era que meu pai tinha dado outro chilique depois do acidente com o bisturi e dito um monte de bobagens sobre eu ter conseguido me envolver em duas situações traumáticas em pouco mais de uma semana. Culpando minha mãe e a escola pública. Eu duvidava que ele me deixasse ir a qualquer lugar no fim de semana.

Senti-me uma estúpida quando todas me encararam, chocadas.

— O que? – Teri disse, atônita. – Desculpa, mas você já esteve na sua casa? Tem coisas suficientes naquele seu closet para todas as gerações que a minha família possa chegar a ter. Você e a sua mãe não fazem outra coisa além de comprar?

Na verdade, não.

Dei de ombros, pois não havia muita coisa que eu pudesse dizer.

Janice e Hanna passaram de braços cruzados por nós, e eu soube que se de seus olhos pudessem sair lazeres de calor, eu seria a primeira a morrer naquele mesmo minuto. Hanna agora estava sempre de tocaia quando Kyle se atrevia a conversar comigo e havia, com certeza, se juntado com méritos ao clube “Odiamos Amanda Rees!”. Agora eu tinha que lidar com mais essa. Até os outros alunos estavam me olhando engraçado. Cheguei a ouvir que algumas pessoas comentavam que eu era um imã de problemas. A questão era: Será?

— Amanda? – Teri chamava impaciente.

— Que? – Respondi sobressaltada.

— Perguntei se vamos juntas tirar os pontos amanhã. Lembra?

— Ah. Claro! Vamos depois da aula.

— Eu vou é para a droga de química. Vejo vocês depois. – Crystal disse se levantando da mesa.

— Também vou indo. – Lynn emendou, pegando a bolsa. – Vocês! Feridas e deprimidas. Espero que abram pelo menos um sorriso na próxima vez em que nos virmos. Ou não vão ter outra chance para mostrar os dentes. – Ameaçou.

Obviamente era uma brincadeira, mas ela pareceu bem séria. Teri lhe mostrou a língua, enquanto eu me encolhi na cadeira. Sei lá, de repente lembrei de que não a conhecia tanto assim.

— Vamos embora. – Ela falou, puxando-me pela mão. Voltou com a sua mania. – Os seus pontos coçam? – Perguntou ao passarmos pelas portas do refeitório, rumo a aula seguinte.

No horário de saída, depois de me despedir das garotas, fui interceptada por um sorridente Adam. Seus olhos azuis estavam especialmente bonitos naquele dia. Como era chato ficar tendo aqueles pensamentos. Sobre como tudo era ridiculamente atrativo nele. Quando, na realidade, eu me esforçava para fazer cara de paisagem sempre que ele falava comigo, a fim de não parecer que eu estava flertando ou algo do tipo.

— Ei, Mandy. – Cumprimentou-me ele.

Ri involuntariamente.

— O que? – Ele perguntou, com uma expressão cômica de confusão.

— É estranho você me chamar de Mandy. – Apontei.

— Por que? Teri te chama assim, ás vezes.

— É que dela soa mais... natural, acho.

Agora ele é quem riu.

— Eu sou mesmo péssimo em quebrar o gelo. – Disse frustrado. – É que, particularmente, prefiro Amanda. Mas pensei que Mandy fosse o ideal para o que preciso agora.

Ergui uma sobrancelha.

— E do que você precisa?

— As garotas disseram que você não vai ao lago no domingo. Mas eu gostaria muito de você fosse. – Disse firme.

— Por que? – Questionei-o intrigada.

— Não tem um motivo em especial. Nós só sentiremos a sua falta se você não for.

— Nós quem? Janice, a princesa das trevas? Ou Hanna, a rainha do baile do inferno? Ou, já sei, Matt! Ele ainda não tem um fio do meu cabelo, acho. – Brinquei. – Qual é Adam? Eu sou o novo amuleto de catástrofes, lembra? Ninguém vai sentir de verdade. – Continuei, rindo de mim mesma.

— Acredite em mim. Você, em pouco tempo, já conseguiu um lugar importante nessa escola e no nosso grupo. Com certeza faria falta para muita gente. – Falou com uma expressão incógnita e, durante um instante, seu olhar mudou de direção, ficando consternado. – Gente até demais. – Terminou olhando para baixo, com a mandíbula semicerrada.

— Eu... – Comecei. Mas fui cortada por ele.

— Prometa que você vai.

Se eu aceitasse, teria que fugir dos meus pais.

— Vou fazer o possível. Eu prometo.

Droga. Não consegui mesmo dizer que não.

— Legal. – Comemorou. – Amanhã vou levar Teri para tirar os pontos e voltar direto para o jogo.

É mesmo. Na sexta teríamos um importante jogo. E Adam, assim como Kyle, Ryan e Dave, eram as estrelas do time.

À proposito, Dave havia me dado uma camiseta personalizada com o logotipo oficial do time, os Spacecrafts, e disse que contava especialmente com a minha presença. Bem, naquela semana havia ficado bem óbvio que Crystal e ele não tinham nada além de uma boa amizade. Por isso, voltei a ficar receosa que tivéssemos um contato maior. Exatamente como com Adam, eu não tinha cem por cento de certeza que podia confiar nele. E não queria, sem querer, acabar dando a entender que eu queria qualquer coisa com qualquer um deles. Mas, sobre o jogo, achei que não custava nada ir e gritar “Vai lá time!” de vez em quando. Nunca estive em um jogo de futebol antes daquilo e achei que era meu dever torcer pela minha nova escola.

— Acho que estou um pouco ansioso com isso. Vai ser um jogo importante. Os adversários são uns babacas metidos de Nova York. – Ele disse, um pouco exasperado.

Abaixei os olhos por um instante, constrangida. E ele percebeu o fora que tinha dado.

— Foi mal. – Disse atrapalhado. – Não quis dizer que são babacas e metidos por serem de Nova York. Só por serem mesmo babacas e metidos. Você entende? Eu... Foi mal mesmo.

— Tá tudo bem. Relaxa. – Falei rindo. – Escuta, se você quiser eu posso ir sozinha com a Teri ao hospital. Vamos tirar os pontos e voltamos para cá. Assim você não tem que se preocupar com isso também. – Propus.

— Obrigado por ser tão legal. Mas prefiro estar com a minha irmã que... está acenando feito uma louca, lá do carro!

Olhei para trás e vi Teri agitando os braços impaciente. Ri com Adam.

— Até amanhã então. – Disse ele, me dando um beijo na bochecha e andando depressa para o carro.

— Até. – Respondi baixo, com um sorrisinho torpe. Mas o desmanchei depressa, olhando para os lados e certificando-me de que ninguém havia percebido minha breve euforia.

Enquanto eu ligava o carro para ir embora, me veio de novo aquela sensação incomoda de desassossego. A cada dia, eu sentia crescer minha afeição por Adam, mas o que Dave me disse no hospital sobre ele, martelava na minha cabeça dia e noite. E eu não conseguia me livrar disso, mesmo que a minha intuição me dissesse seguramente para confiar nele. A sua intuição algum dia já te enganou? Porque eu estava com muito medo de que a minha fizesse isso comigo. De um jeito ou de outro.

* * *

Em casa, Victor caminhava de um lado para o outro na varanda quando eu cheguei. Ia acabar abrindo um buraco no chão dali a pouco. Sorrimos cordialmente um para o outro, enquanto eu subia alguns degraus até a porta da frente. No meu caso foi mais um risinho combinado com uma expressão de confusão.

— Victor? – Dirigi-me a ele. – Algo errado?

Ele sorriu embaraçado, olhando algo na agenda eletrônica.

— Temos uma reunião. E seu pai não consegue escolher a gravata!

Rolei os olhos.

— Você já pensou em tirar umas férias, Victor?

— Seus pais morreriam. –Disse enfático.

— Eles ficariam bem. – Observei sua expressão compenetrada olhando a agenda. – Na verdade, acho que o problema é que é você quem não consegue mais imaginar a sua vida sem essa agitação, não é? Sem ser o solucionador de todos os problemas. – Afirmei. – Mas cuidado pra isso não acabar com você.

Ele me olhou como se de repente estivéssemos na mesma sintonia. Mas não disse nada. Acho que ele precisava de mais do que férias. Precisava de terapia, urgente.

— Bom dia, Amanda. – Cumprimentou-me meu pai ao sair pela porta.

— Bom dia, pai. – Cumprimentei de volta, observando-o alinhar o fino terno feito sob medida. Michael era mesmo um homem muito vistoso. Até o seu hálito exalava poder e autoestima.

— O que acha da gravata? – Ele perguntou, ajeitando a peça de seda azul.

Olhei para Victor atrás dele. Ele balançava a cabeça de um lado para o outro, quase rindo.

— Ficou bem. – Expressei, um pouco surpresa por ele ter pedido a minha opinião.

Ele sorriu e observou o céu. Inspirou lentamente e voltou-se novamente para mim.

— Como está o ferimento? Ainda dói? – Perguntou, olhando fixamente para o meu rosto.

— Está bem melhor. Quase não sinto nada. – Respondi tocando o curativo sobre os pontos.

Ele assentiu e voltou a sorrir. O que diabos tinha acontecido para o humor dele estar tão bom? Isso era tão raro. Não que eu realmente me importasse com o motivo. Quero dizer, pelo menos não estávamos brigando. E acho que era isso o que realmente importava. Certo?

— Michael? Melhor nós irmos ou vamos nos atrasar, mais.

— Victor. Eu não sou o dono daquela empresa? – Ele perguntou, olhando propositalmente presunçoso para o outro. – Não sou? Então acho que eles podem esperar um pouco enquanto eu escolho uma porcaria de gravata, ou converso com a minha filha. Certo?

Meu pai usando palavreado chulo? Aquele era um dia muito atípico, com certeza.

— Vou esperar no carro. – Victor saiu, jogando os braços para cima.

Eu sabia que a relação entre Victor e meus pais ia bem além da profissional. Eles eram também amigos, há muitos anos. Anos bastante para que ele pudesse demonstrar estas reações irritadiças, sem que meu pai sequer se importasse.

— Eu soube que os garotos do seu colégio vão jogar amanhã. – Disse Michael, levando as mãos aos bolsos.

Como ele soube é que era o mistério.

— É, e dai? – Inquiri, despretensiosa.

— Eu estava pensando em ir assistir.

— O que? O jogo? – Soltei embasbacada.

— Sim. Faz tanto tempo que não vou a um jogo desses. Acho que essa é uma boa oportunidade.

— Eu não sabia que você gostava desse tipo de coisas. – Exprimi, ainda surpresa.

— Eu era um bom jogador na escola. Até ganhei uma bolsa para jogar na universidade. Mas o seu avô queria muito que eu fosse um executivo, então eu deixei para lá. – Ele pareceu um pouco nostálgico por um momento, e até magoado. Estreitei as sobrancelhas, encarando o chão.

As lembranças que eu mantinha do pai de meu pai eram um tanto utópicas, acredito. Sei que ele era um avô bastante atencioso e até carinhoso comigo. Mas, como homem, era muito austero e controlador. E, se não estava equivocada, ele também tinha uma relação complicada com o filho. Acho até que aquilo devia ser um mal de família. Meu avô morreu, infelizmente, em decorrência do vicio em cigarros, quando eu tinha acabado de entrar no colégio interno. Meus pais não me levaram ao enterro, provavelmente para me poupar de carregar a imagem dele morto.

— Bem, é um jogo aberto ao publico. Se quiser ir, vá. – Dei de ombros simplesmente.

— Victor também vai. – Ele disse, casual. – Então, depois que você for ao hospital, volte para cá e vamos todos juntos.

— Tá... – Concordei vacilante.

Ele abriu outro sorriso satisfeito.

— Vai ser um dia maravilhoso! – Exclamou.

"É. Ou o pior da minha vida!"