– Cale a boca. Só porque eu estou em uma cadeira de rodas não preciso dessa cortesia. O que foi? Esta cansado de beijar os pés da minha mãe que resolveu vir em mim? Procure algo para consertar - disse com desdém.

Fui até meu quarto e me tranquei. Peguei o travesseiro mais próximo e o bati freneticamente em minha cabeça. "Mas que droga, Laura! Será que você não consegue dizer alguma coisa decente pra variar?" O segurei em minhas mãos e apoiei a cabeça nele, frustrada.

Minha mãe entrou no quarto, perguntando como havia se saído.

– Você foi ótima como sempre - respondi sem muita empolgação. Estava grata de minha mãe ter ido bem, mas não queria ter aparecido, muito menos ser grossa com aquele assistente. - Quando posso voltar pra casa?

Ela olhou para mim, como se soubesse que a pior coisa do mundo para mim fosse estar lá com ela. E sinceramente, era.

– Não sei. Até a produção liberar. Acho que eles vão querer você amanha - disse, e eu sabia que estava se divertindo.

– Aposto que foi você que pediu isso - murmurei entre aquele travesseiro branco, que mais cheirava pêssegos a lavanda.

Notei que ele já tinha sido usado, e o joguei na cama.

– Seu pai ligou - disse, tirando seus brincos.

– E...?

– Será que pode demonstra um pouco mais de respeito? Obrigada.

– Que noticia maravilhosa! - tentei mais uma vez, usando algum falso entusiasmo que ainda me sobrava. - Quais são as novidades? Ele esta bem? E sua adorável esposa, melhorou da gripe?

– Parece que ele quer te ver - continuou, aparentemente ignorando meu sarcasmo. "Bom trabalho, mesmo porque ignorar é o que você sabe fazer de melhor."

– Se foi só por isso que veio até aqui, pode sair do meu quarto, por favor? Você já sabe a resposta. Eu não quero ver ele nunca mais.

– Você disse a mesma coisa para mim, mas olhe só para nós. Mesmo que seja forçado, estamos juntas - disse pacientemente, já andando em direção a porta.

– Mãe...

– Você vai vê-lo e pronto - disse, quase me batendo com seu olhar.

– Como queira... - murmurei derrotada.

Depois de mais dois dias longe, voltei a frequentar a escola. Um dos dia foi gasto visitando meu pai, só para ouvir um monte de besteiras. Tentei esquecer a maioria. O outro foi mais uma participação especial no programa em que minha mãe foi convidada. Algo sobre a importância de rampas e a pavimentação das calçadas para deficientes. Mais uma oportunidade de minha mãe ganhar o carisma do publico, e eu treinar minhas técnicas de mentira.

– Eu simplesmente não consigo acreditar que essa é a mesma Laura Laughs que apareceu na Emi's ontem... - escutei alguém cochichar logo atras de mim.

– Sei o que quer dizer. Ela deve ser tão falsa que não consegue controlar suas personalidades.

– Há, muito bom! Ela teve que aparecer na tevê junto com a mãe para suprimir essa sua obsessão por atenção.

Bom, não posso negar. Devo ser a pessoa mais falsa do mundo...

– Qual o problema? A inveja é tão grande que precisam desabafar? Tudo bem, acho que entendo como deve ser ter uma vida tao insignificante como a de vocês - disse me virando para eles. Para minha grande surpresa, eram dois garotos do segundo ano. Pude reconhecer pelo uniforme.

Eles resmungaram alguma coisa e entraram na escola.
Abaixei a cabeça, a apoiei nas mãos e comecei a me xingar mentalmente, dando algumas pancadas eventualmente. "Sua idiota! Idiota, idiota, idiota!"

Minha depressão pós arrogância.

Levantei e entrei na escola, passando pelo pátio e subindo até o segundo andar pela rampa. Escutei mais alguns murmurinhos parecidos com o primeiro, mas os ignorei.

Alguns se contentam com uma dupla-personalidade. Já eu tenho três e não me orgulho nem um pouco. Não as tenho de propósito. Elas simplesmente surgiram.

Minha primeira veio assim que meus pais se divorciaram. A pobre garotinha que enfrentava toda situação difícil bravamente e com um belo sorriso no rosto. "Talvez ela não entenda a real gravidade do problema". Eles diziam. Apesar de tudo, tentei transparecer que estava tudo bem. Eu não estava abalada. Ou pelo menos era isso que o publicitário do meu pai queria que eu pensasse. "Você não quer colocar seu pai em risco, quer?"

Minha segunda personalidade surgiu quando houve um acidente de carro. Minha mãe havia se esquecido de me buscar na escola e meu pai mandou um motorista. Não estava chovendo muito, mas o suficiente para atrapalhar outro cara e nos acertar, nos atingindo de lado.

O motorista sofreu muito mais danos, mas quem acabou em uma cadeira de rodas fui eu.

A terceira uso apenas para uma única pessoa, mas mesmo assim penso que é minha personalidade mais verdadeira. A minha personalidade real. A uso com meu único amigo. E eu nem sei seu nome. Conversamos em um chat na internet. Faz quase um ano.

– Ah, desculpa - uma garota da minha sala disse depois de se esbarrar em mim, deixando cair a água do vaso de flores que estava na sala.

Logo em seguida apareceu um professor preocupado, perguntado se eu estava bem.

– Não estou machucada, se é isso que esta perguntando. Pode voltar para sua sala, não tem necessidade de todo esse escândalo.

– Mas a senhorita esta molhada...

– Não sou feita de açúcar. Tchau, tenha um ótimo dia - disse, tentando evitar qualquer tipo de frustração. Se tudo aquilo fosse para frente, ligariam para os meus pais. Tudo por causa de um pouco de água.

– Você - o professor disse se virando para a garota que já estava andando de volta para a sala - venha comigo.

Ela me olhou feio e o seguiu mesmo assim, como se fosse culpa minha.

Bom, talvez fosse. Quem sabe se eu não tivesse nascido de duas celebridades e estivesse andando sobre minhas próprias pernas essa muvuca não acontecesse toda hora.

Fui até o painel de recados, para conferir minha classificação nas ultimas provas finais.

Estava em segunda. De novo.

–Não é justo! Como você conseguiu ficar em primeiro de novo? - gritou um garoto a alguns metros de distancia, do meu lado.

– Não sei. Sorte, talvez - respondeu. Ele era um pouco mais alto que o garoto do meu lado, mas não muito. Seus cabelos eram pretos, meio bagunçados. Tinha olhos verdes escuros e vestia o uniforme do primeiro ano, como eu.

Ele olhou pra mim e eu logo fechei a cara. Como ele podia dizer que conseguiu o primeiro lugar com sorte? Isso é quase o mesmo que dizer que eu sou uma fracassada.

O seu amigo se virou para mim e resmungou alguma coisa tipo, "Ah, é ela..."

– Parabéns pelo segundo lugar - disse Bruno.

– Parabéns pelo primeiro lugar - devolvi contrariada.

– Como se sente sendo derrotada de novo? Quero dizer, você não deve estar acostumada a não ter o que quer - cuspiu o garoto do meu lado.

– Quem é você mesmo? - perguntei depois de uma pequena pausa olhando para ele.

Ele ficou irritado, como se não esperasse uma resposta assim. "Será que eu deveria ter sido mais grossa?"

– Você viu isso? - perguntou a Bruno - Como ela consegue fazer esse tipo de coisa?

– Vamos - respondeu, já andando.

– E você ainda não acredita nos boatos? - gritou enquanto o seguia, olhando para mim.

Dei um suspiro longo. Por mais que eu quisesse, não conseguia ficar muito brava com ele. Bruno era o único que não me incomodava.

Virei para entrar na sala, antes que o sinal tocasse, mas lembrei que estava toda molhada.