— Tá bom, pai – bufei e virei os olhos – Eu já entendi.

— Então tudo bem, minha filha – abraçou e beijou-me o topo da cabeça – Se cuide e me ligue assim que chegar, ok?

Assenti e o abracei pesarosa, pela primeira vez quis chorar, porém segurei-me para não fazê-lo.

— Tchau, pai.

— Tchau, Carmen.

E assim foi. Me afastei de meu pai e entrei no portão de embarque. Minha “nova vida” estava prestes a começar, no caso recomeçar.

Eu havia me tornado um pequeno caos nos últimos meses, agora estava sendo mandada morar com meus avós no estado do Tennesse. “Colégio Interno ou ir morar com seus avós”, ainda lembro de meu pai dizendo essas palavras. Claro que não iria para um colégio interno, fala sério, seria o fim definitivo de minha vida.

Me sinto triste por estar deixando Nova York, deixando meus amigos, deixando coisas boas que vivi. Agora só preciso aturar essa situação em que me pus, em breve farei dezoito anos e serei maior de idade… E bom, me mandarei o mais rápido possível daquela cidade.

— Esse é seu quarto, Carmen – disse meu avô, um homem bem aparentado, muito parecido com meu pai – Espero que goste da cor vermelha – ele não era de falar muito, outra coisa qual meu pai também aparentava.

— Ah, eu adoro, muito obrigada – sorri meiga.

Observei o local espaçoso ao meu redor, sim, era um quarto digno de minha pessoa.

— O jantar é às sete – informou meu avô, apenas assenti e ele saiu do quarto. De repente volta – Ah! Esqueci de uma coisa, você já está matriculada no colégio, as aulas começam amanhã às oito.

Soltei um suspiro, parece que meu pai fez um bom trabalho ao se livrar de mim, agilizou tudo tão rápido.

— Ok, entendi. Às oito.

Assim sendo meu avô saiu, o escutei descendo as escadas da grande casa.

Sentei-me em minha nova cama – que por sinal era de casal – e recapitulei toda a merda que passei na última semana.

Meu pai descobrindo os pequenos entorpecentes em meu quarto, descobrindo sobre as bebidas, sobre os amigos traficantes, as más companhias, as festas torpes… Porém quando eu fui presa por causa de ter roubado um carro policial com alguns amigos meus, a coisa ficou séria. Ele pirou. “Sou um homem de negócios, isso não é nada bom para minha imagem”. Sim, ele só pensava no que os outros pensariam e por um lado ele estava certo. Não o culpo por ser assim.

O implorei para que não me mandasse para cá. Não adiantou. Acho que na verdade, ele já queria se livrar de mim, desde a morte de minha mãe a cinco anos atrás nada mais foi o mesmo.

Mas agora preciso encarar a verdade, meu estado atual, o lugar em que me encontro.

Nashville no estado do Tennessee, uma cidade que comparada a Nova York pode ser chamada de “caipira”. Não que se veja vaqueiros por onde meus avós moram, mas digamos que tudo aqui se movimente diferente de lá.

Mas em que merda você foi se meter hein, Carmenzinha?

— Está acordada, querida? – indagou minha vó batendo na porta de meu quarto com sua natural meiguice.

— Sim, vovó – terminei de abotoar minha calça jeans – Pode entrar.

Ela entrou sorrindo.

— O café está pronto – ela encarou-me terna – E seu avô quer lhe fazer uma surpresa antes de você ir pro colégio.

Guardei meu caderno dentro da mochila.

— Ah, é? – franzi o cenho – Qual?

Ela sorriu e suas covinhas apareceram, algo que infelizmente não herdei.

— Oras, é uma surpresa. Venha, vamos tomar o café.

Dei de ombros e a segui.

Logo após tomar meu café, vi que estava quase na hora de ir para o tal novo colégio.

— Vô, acho que temos de ir. Vai me levar no colégio, não?

Ele sorriu e encarou minha vó.

— Siga-me, Carmen.

O fiz de cenho franzido. Ajeitei minha camisa branca e amarrei meu casaco xadrez ao redor da cintura, peguei a mochila e dei um beijo em minha vó, balbuciei um “até mais”.

Ao sair pela porta frontal da casa, quase dei um pulo.

— É lindo! – exclamei – Um Chevrolet Chevelle 1965! – tampei minha boca com as mãos – O senhor tem um ótimo gosto, vô.

— Era de seu pai. Ele ganhou de aniversário de dezoito anos na época.

— Sério? Meu Deus, mas como assim? Ele foi embora pra Nova York sem esse carro?

— Ele parecia não apreciar muito os clássicos.

Balancei a cabeça indignada. Me aproximei do carro e passei a mão na lataria. Eu adorava a cor vermelha.

— Eu amei.

— Sabia que adoraria. É seu.

Me virei para encará-lo. O quê? Será que ouvi bem isso? Meu?

— Meu? Não acredito! – logo entrei no carro.

— Seu pai me disse que você tem carteira de motorista – assenti ainda deslumbrada com o carro.

Acariciei o assento e depois o volante. Era perfeito.

— É perfeito. Vô, eu não sei se o senhor percebeu, mas não estou em posição de ganhar muitos presentes. Papai vai pirar se souber. – disse sorrindo sapeca.

— Estou te dando um voto de confiança, ok? Vamos manter isso em segredo por enquanto.

Saí do carro e abracei meu vô.

— Obrigada.

— Bom, acho que já está na hora de você ir, não?

Verifiquei o horário em meu celular e bosta! Já estou atrasada.

— Caramba, verdade! – entrei no carro e o liguei – Até mais, vô.

Tá bom, até agora parece surreal demais, meus avôs estão agindo tão carinhosamente comigo. Eu esperava hostilidade ou algo do tipo, mas não veio – e não estou reclamando disso.

Com certeza meu pai contou-lhes tudo que fiz, mas eles estão agindo… Amavelmente. Bom, hoje é o primeiro dia aqui, então, vamos esperar pra ver. Suspirei.

Até agora tudo está ótimo, algumas aulas já se foram, os professores são a mesma coisa e os alunos… Bom, parece que todos tem a mesma cara. Só preciso lidar um pouco com esse sotaque estranho deles.

Ouvi o sinal do intervalo ser tocado, uma grande movimentação e vozes foram imediatamente ouvidas pelo colégio. Esperei todos da sala saírem para depois me retirar, não que eu fosse o tipo anti-social ou coisa do tipo, somente ainda não conheço ninguém.

Me dirigi até o refeitório, andei pelo local extremamente lotado e fui em direção a cantina. Lá comprei um lanche e me sentei numa mesa próxima, sozinha.

— Carmen? – ouvi uma voz chamar-me, mirei a garota ao meu lado que chamava-me. Franzi o cenho, a conhecia, claro que a conhecia. Cabelos negros, pele bronzeada, olhos âmbar; Marina.

— Marina?

— Oh, meu Deus! Quanto tempo, Carmen! Senti sua falta, priminha – brincou ela me abraçando.

Fazia mais ou menos uns cinco anos que não a via, depois da morte de minha mãe, meu pai parou de visitar meus avós, – quais eram os pais dele – foi como se ele tivesse se fechado.

— Pois é! Como andam as coisas por aqui?

Ela deu de ombros.

— Ah, nada de diferente mas diga-me, verdade que se mudou para cá? Ouvi meus pais falando sobre isso a uma semana atrás – agora ela já se encontrava sentada ao meu lado.

— Sim, estou.

Ela sorriu empolgada. Marina sempre foi assim, bem diferente de mim.

— Isso é ótimo, Carmen! Vai ser demais. Imagine!

Assenti sorrindo amarelo. Se ela soubesse que a minha verdadeira vontade era sumir desse lugar.

— Mas relaxe, te mostrarei o colégio e todo o resto. Venha, sente-se conosco – ela puxou-me pela mão e assim foi.

Sentei-me com Marina e seus amigos. Conheci o namorado da bronzeada e mais dois amigos da mesma. Todos eram simpáticos.

Tentava focar-me no assunto deles, mas minha mente estava voando longe, só de pensar que dias atrás estava em Nova York e agora estou aqui, nessa cidade onde todos parecem ouvir Alan Jackson¹ faz-me querer enraivecer.

Na hora em que o sinal de saída bateu quase chorei de alegria, eu não aguentava mais o sotaque desses professores.

Despedi-me de Marina e de seus colegas polidamente, afastei-me e entrei em meu mais novo carro, todos pareciam observá-lo, sorri internamente.

Quando vi já estava longe do colégio, estava numa estrada longa e vazia, era a oportunidade de eu testar meu novo carro, estar dentro dele era um desafio, sempre gostei do perigo, o errado sempre me atraiu, se era errado, eu sentia-me certa em fazê-lo. Pisei no acelerador.

Sorri ao sentir o vento entrar pelas janelas, o barulho do motor a toda potência, o sentimento de liberdade. Já havia estado em corridas, como acompanhante, claro, nunca havia competido, mas adoraria fazê-lo um dia, porém minha sensação momentânea de liberdade e selvageria foi interrompida por uma sirene policial. Merda! Era só o que me faltava.

Olhei pelo retrovisor e lá estava o carro policial, não parecia estar escondido em algum local, talvez estivesse vindo de algum lugar ou fazendo uma ronda. Acho que foi uma péssima hora para eu testar meu Chavelle. Maldição! Uma multa era tudo que eu não precisava.

Diminuí a velocidade, parei no acostamento, logo vi um policial sair do carro e pude distinguir; não era um mero policial mas sim um Sheriff, sua estrela de cinco pontas reluzia no uniforme marrom. Bosta! Logo hoje, em meu primeiro dia aqui, sou a pessoa mais azarada desse mundo, só pode ser.

O homem aproximou-se em passos lentos, minhas mãos suavam, mordi o lábio inferior. Ele apareceu em minha janela, usava óculos aviadores, o sol ainda brilhava forte atrás de suas costas, comprimi meus olhos.

— Carteira de motorista, por favor – foi a voz sonora do Sheriff que soou.

Estiquei-me até minha mochila e de lá tirei o cartão que provava minha capacidade de conduzir um automóvel. Contive o tremelique de meus dedos quando entreguei-o o cartão.

O Sheriff retirou os óculos e leu com atenção minha carteira, pude ver o quão atraente ele era, imediatamente tentei arrumar meu cabelo, mesmo que disfarçadamente.

— O máximo nessa pista é de 80 km/h – soou sério.

Agora ele encarava-me, me fazendo parecer pequena, seus olhos azuis perscrutavam toda minha face.

— É-é que sou nova aqui – limpei a garganta – Cheguei ontem, eu… ganhei o carro hoje e… – merda, me atrapalhei toda – Eu nunca faço isso, foi imprudência mesmo… eu não…

Soltei o ar de meu pulmão e ri sem graça para o belo Sheriff. O que foi isso? Eu nunca agi assim, ninguém nunca me intimidou.

— Poderia ter causado algum acidente – devolveu-me minha carteira e só consegui pensar em quão horrorosa eu estava naquela foto – Cautela nunca é pouco.

— Sim, eu entendo, não acontecerá novamente. Eu juro.

— Assim espero. Srta. Grant – ele encarou-me novamente – Deixarei passar dessa vez, espero que não haja próxima vez – sua voz pôs-me um tipo de apreensão.

Assenti comprimindo os lábios, tentei sorrir, mas não saiu.

— Sim… Sr. Sheriff Gyllenhaal – falei tentando ler seu sobrenome no pequeno e retangular broche dourado em seu uniforme.

— E boas vindas à cidade – ele meneou a cabeça sorrindo de canto e com um aceno de dedos saiu.

Só então soltei o ar que prendia nos pulmões, o vi entrar no carro e dar partida. Eu ainda continuava parada ali, pensando em que merda foi essa. Aquele policial e essa minha cena ridícula, meu Deus! Passei a mão por sobre meu rosto.

Encarei-me no retrovisor interno e vi que não estava tão mal assim, a maquiagem que passei pela manhã ainda se mantinha um tanto intacta e meus cabelos ruivos compridos até que não estavam um desastre total. Mas por que deveria eu estar me importando com a aparência agora?

Chacoalhei a cabeça e dei partida no carro.

O caminho todo de volta para casa aqueles olhos azuis não saíram de minha cabeça.