Pesadelo do Real

Capítulo 02 - Surpresa


"( ... ) um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse ,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela ."

~ Alberto Caeiro

Capítulo 02 - Surpresa

As imagens do sonho voltam a passar pela mente de Monalisa. O topo de um prédio, uma garota ruiva, um ato de suicídio, o fracasso em impedir a garota de se atirar precipício abaixo. A cena foi forte, um sonho tão impactante que ela poderia jurar que realmente estava ali, ouvindo as últimas palavras daquela mocinha: "eu descobri a verdade".

Virando-se de um lado para o outro, Monalisa tenta retomar o sono, mas ainda não conseguia tirar a imagem da cabeça. Por fim, decide ir ao banheiro e tomar um copo de água, algo que raramente fazia. Após calçar seus chinelos, andar com cuidado até a saída do quarto e usar o banheiro, ela lava as mãos, enquanto observa a sua imagem no espelho. Olhos verdes sem muita vida, os cabelos loiros voltados para o castanho desarrumados e soltos, um corpinho magro e não muito alto dentro de um pijama branco com detalhes azul claro. Então, assim que ela é? A garota fica alguns instantes fitando sua própria imagem, quando, de repente, a imagem da garota ruiva do sonho invade mais uma vez seus pensamentos. Quem era aquela menina? Tinha um olhar tão diferente dela.

Após lavar o rosto e tentar espantar o pesadelo, Monalisa segue para a cozinha, abre a geladeira, pega uma das duas garrafas de água e mistura com a água do filtro em um copo. Enquanto bebia em um gole só, sua mãe surge na cozinha, vestindo seu roupão roxo e de cabelos soltos.

- O que houve? - pergunta a mãe - Não consegue dormir?

Monalisa faz que sim com a cabeça. Ela deixa o copo em cima da pia, tampa a garrafa e a leva para a geladeira.

- Não, não guarde - diz a mãe da garota - Também vim tomar um pouco de água. Tenho um sono leve, você sabe. Está nervosa com alguma coisa?

A menina faz que não com a cabeça, enquanto sua mãe também mistura a água com a natural. Um diálogo com a mãe era um momento raro, mais ainda em plena madrugada.

- Teve algum sonho ruim? - pergunta a mãe, antes de também tomar sua água em um único gole. Monalisa apenas assente com a cabeça, enquanto olha para os bonequinhos de um pai, uma mãe e uma menininha grudados com um ímã na geladeira. Pareciam tão...felizes, com aqueles sorrisos.

- Foi só um sonho. Não tem com o que se preocupar - diz a mãe, dando um sorriso leve enquanto deixava seu copo na pia - Volte a dormir, sim? Amanhã você precisa levantar cedo.

É tudo que a mãe diz antes de retornar ao quarto, não fala mais nenhuma palavra. Claro. A escola. Na mente dos pais, nada é mais importante que a escola. No entanto, Monalisa estava sem o menor ânimo. Seria mais um dia tedioso de aulas, lições e conversas fúteis. Sempre foi assim. Parece que sempre será assim. Mesmo quando o colégio terminar virá a faculdade, depois o trabalho. As pessoas podem até mudar, mas não o cenário. Tudo sempre é o mesmo entediante e cinzento cenário de sempre. Será que só ela achava aquilo?

Após tomar água, Monalisa retorna para a cama. Relembrando as palavras de sua mãe: "teria que acordar cedo". Conformada, ela se cobre, deita e, dessa vez, cai no sono. Não teve mais sonhos ou, pelo menos, não lembrou deles ao acordar. O único sonho que ficou em sua memória foi mesmo aquele: a garota que se lança do topo do edifício. Ela já ouviu falar que sonhamos com pessoas que vemos durante o dia, mas não se lembrava de nenhuma garota ruiva como a do sonho, pelo menos não naquele tom de ruivo, quase voltado para o alaranjado. Talvez seu cérebro tenha misturado diferentes rostos e ideias para criar uma personagem misteriosa. Não sabia. O fato é que, mesmo no dia seguinte, o sonho não sai de sua memória. E o que mais marcava não era o suicídio em si, mas o olhar lançado pela garota misteriosa em seus últimos momentos. Era penetrante e difícil de explicar.

Nos próximos dias, tudo ocorre como a rotina manda. O tédio de Monalisa tinha cada vez mais fundamento. Conseguia pegar os ônibus nos mesmos horários, encontrar as mesmas pessoas no caminho, olhar para as mesmas paisagens. Tudo sempre a mesma coisa, dia após dia. Não teve mais sonhos misteriosos nos últimos três dias. Parece que o único fato misterioso e interessante ocorrido em sua vida não passava mesmo de imagens sem sentido. Um pesadelo sem nexo. Lamentável. No fim, até sonhar é algo sem graça e bobo.

Na sexta, Monalisa poderia voltar para casa mais cedo. Ela segue o caminho de volta, como sempre, sem a mínima novidade. Bastaria caminhar alguns passos para o mesmo ponto em que descia de manhã e pegar o ônibus de volta. Nada de empolgante. Não podia fazer nada para mudar, ou podia? Antes de continuar em seu caminho ela se lembra da rua que visitou alguns dias atrás. Na ocasião, passara por ali de manhã, onde as casas estavam começando a acordar e onde, se não esrivesse enganada, havia algum estabelecimento comercial fechado com uma porta de metal. Sem ver razões para não prosseguir, Monalisa resolve variar o caminho mais uma vez, dessa vez passando primeiro por essa rua, onde agora a porta metálica já deveria estar aberta. Apesar de tudo, aquela rua era uma das poucas coisas que podia variar em seu caminho diário.

Ela anda calmamente olhando a paisagem sem pressa até, enfim, se aproximar de uma lojinha. Então o local antes fechado era um pequeno bazar que funcionava como papelaria e loja de lembranças. Havia algumas vitrines, mostrando bonecos, brinquedos, cadernos, canetas coloridas, papéis de presente. Nada mais que uma papelaria comum. Monalisa olha as janelas de longe, do outro lado da rua, dá um suspiro e continua andando. Mas o que ela esperava? Algo de extraordinário? Talvez fosse hora de se conformar: nada iria mudar na sua vida. Apenas continue seu caminho, sem reclamar, sem achar que pode mudar. Continue como uma ovelha em seu rebanho, seguindo as outras que apenas pastam sem preocupações. Afinal, no fundo não era isso? Todos só viviam sem preocupação, conformados, sem expectativa alguma. Se não pode vencê-los, junte-se a eles.

A garota chega em casa. Ninguém para recebê-la. Seus pais ainda estavam no trabalho, batalhando seu pão de cada dia. Possuiam um salário fixo, suficiente para manter uma vida relativamente confortável. Tanto a mãe quanto o pai de Monalisa permaneceram no primeiro emprego estável e se conformaram com ele. Sua família era a primeira que mostrava a inutilidade da mudança. Tudo não estava bom do jeito que estava? Era o que parecia.

Monalisa deixa sua mochila em cima da cama, tira seus tênis e se deita de costas na cama, olhando para o teto. Às vezes gostava de fazer isso, deitar-se e olhar para cima, deixando-se levar por qualquer pensamento que viesse à sua mente. Pensava no teto, nas nuvens que ele a impedia de ver, depois imaginava como seria voar, como seria respirar em baixo da água, como seria ser outra coisa que não fosse ela mesma. Algo que a tirasse de si mesma, nem que fosse por algum momento. Impossível, não é? Não importa o que você faça, você sempre é você mesmo. Não daria para mudar isso nunca, não é verdade?

Com os olhos carregados pela preguiça, ela olha para seu rádio-relógio em cima do criado mudo, sem sequer se levantar. Tinha lições para fazer no fim de semana, mas naquele momento não tinha vontade de fazer nada. Só queria ficar ali, deitada preguiçosamente, sentindo o passar do tempo. Poderia ligar o computador, ler alguma coisa engraçada, assistir algum vídeo interessante. Mas não tinha vontade de fazer nada. Às vezes isso acontece, simplesmente não queremos fazer nada. Monalisa estava em um desses momentos. Após deixar mais alguns pensamentos aleatórios passar por sua cabeça, a menina acaba adormecendo e não demora muito para que entrasse em estado de sonho.

Aquele sonho. Parecia familiar. Mais uma vez, o mesmo edifício, o mesmo prédio, o mesmo vestido leve e branco cobrindo seu corpo e, novamente, a mesma menina ruiva à sua frente. Aquela mesma cena se repete. A ruiva se coloca na borda do prédio e lança a mesma frase da outra vez:

- Eu descobri a verdade - e se lança abismo abaixo, jogando-se para a morte certa. E, novamente, Monalisa não conseguiu fazer nada para impedir. O sonho se repete. Mais uma vez.

A loirinha acorda, abrindo e arregalando os olhos verdes. Havia despertado, não havia mais prédio nenhum, apenas o mesmo teto branco de sempre. Tudo que restou foi a lembrança do sonho. Isso era raro. Como ter exatamente o mesmo sonho duas vezes? Com as mesmas cenas e com a mesma garota desconhecida. Estranho...e curioso.

"Nossa", pensa Monalisa passando as mãos pelos longos cabelos e tentando digerir mais uma vez aquela cena. "O mesmo sonho de novo...será que...até os meus sonhos ficarão do mesmo jeito para sempre? Ou, isso quer dizer alguma coisa?"

Difícil. Assim como seus pais, Monalisa era uma garota sem muitas crenças. Para ela, sonhos eram apenas pensamentos que sua mente criava aleatoriamente enquanto estava dormindo. Não acreditava que eles pudessem significar algo de diferente. Mesmo assim, a sensação ruim ao ver aquela menina se jogando do prédio permanecia. Era só uma personagem do sonho, não era? Ou melhor, era só um sonho. Por que se preocupar tanto? No entanto, a cena era tão intensa que ela não conseguia tirá-la da cabeça.

Por fim, resolve balançar a cabeça e tentar esquecer. Passou o fim de semana do mesmo jeito de sempre, relendo velhos livros que tinha na estante, fazendo alguns desenhos amadores, e, claro, dormindo. Mas não teve mais o sonho do suicídio. Talvez tenha sido apenas coincidência. Sabia que não poderia significar alguma coisa. O que a incomodava era o fato de ter repetido o mesmo sonho, exatamente o mesmo sonho, com os mesmos eventos, o mesmo cenário, as mesmas falas. Não mudou nada. E a cena ficou impressa na mente dela com tanta intensidade que podia se lembrar perfeitamente de tudo, mesmo acordada. Será que não significava mesmo alguma coisa?

Queria ficar mais tempo pensando nisso, mas a rotina era impiedosa. Precisava retornar às suas atividades normais na segunda-feira. Tudo de novo. O mesmo ônibus, no mesmo horário, o mesmo caminho e a mesma escola. Ao passar pelos portões do colégio, procura um local isolado, coloca a mochila no colo e tenta pensar no sonho mais uma vez. Que sentido teria aquela cena? Era só um sonho. Não deveria impressionar tanto, mas ela não conseguia parar de pensar. Duas vezes na mesma semana. Como pode?

Ela lança um olhar para o pátio. Os alunos apenas conversavam e riam sem preocupações. Como eles conseguiam se conformar tanto? Nenhum deles tinha uma vida muito diferente da dela, mas seguiam vivendo sem muitos problemas. Será que ela era exigente demais? Será que só ela achava tudo aquilo um grande tédio?

- Mona? - cumprimenta uma garota de cabelos lisos e pretos, aparentemente da mesma idade que Monalisa.

- Ah. Oi, Cibele - responde a loirinha.

- E aí? Tudo bem?

- Tudo - responde. Essa é a maior mentira que todos contam todos os dias. Nunca está tudo bem. Sempre tem um problema. Mesmo assim, o que poderia dizer? Sabia que seu sonho não interessaria em nada a colega.

- Ei, sabe o Gabriel?

-Gabriel?

- Aquele menino da sétima C. É muito lindo. Uma amiga minha conversou com ele...e sabe o que ele disse?

- O quê? - Monalisa pergunta, embora não estivesse com o mínimo de interesse.

- Ele falou de você. Disse que te achava uma gatinha. E então, amiga? - Cibele falava meio baixo, mas com empolgação.

- E então o quê?

- Como assim? É a sua chance de ficar com ele! Ai, que inveja

Monalisa suspira e continua olhando para o horizonte.

- Não estou interessada - ela responde por fim, sem o mínimo de entusiasmo na voz - Passo

- Quê? Vai dispensar um gato daqueles?

- Ele pode ser bonito...mas o que mais?

- Ah...mas...isso a gente descobre depois - responde a amiga, meio confusa com a pergunta.

- Vou ficar com ele só por ser bonito? Que sentido isso faz?

- Vai dizer que você não tem vontade? Todas as meninas adoram ele!

- Não, não tenho nenhuma vontade - é tudo que Monalisa responde. Cibele ainda não se conforma e fica insistindo até o sinal tocar. A loirinha apenas ouve a amiga pacientemente.

Ficar com um menino popular...isso é tão empolgante assim? Não era bem esse tipo de mudança que ela estava esperando. Aquilo era tão...fútil. As meninas da sua idade adoravam esses assuntos, falar de meninos, fofocar quem ficou com quem, essas coisas. Mas nada disso parecia interessante para Monalisa. Ela ainda se sentia vazia. A única coisa intrigante naquele mar de tédio era seu sonho. O que ele significava? Se é que significava alguma coisa.

Ela chega na sala de aula e procura seu lugar no meio da fileira da janela. Ao menos, poderia olhar para o céu quando a aula estava entediante, o que ocorria na maioria das vezes. Mais uma vez janelas...

"Olhar para o lado de fora...vendo o que não se pode ter do lado de dentro", ela pensa, "Será que a resposta do meu sonho está dentro ou fora de mim?"

A professora entra na sala e pede que os alunos se sentem. Sempre tinha alguém fazendo bagunça ou falando alto. A escola era assim. Monalisa também não suportava esses moleques. Eles não gostavam de ir para o colégio, mas se prendiam a diversões tão ridículas. Também eram cansativos. Tudo era cansativo. Tudo era sem graça. Só lhe restava olhar pela janela de novo. Buscando lá fora, o que não estava dentro.

- Bem - inicia a professora - Antes de começarmos, gostaria de apresentar uma nova aluna

- Nova aluna? - os alunos se interessam - Nessa época do ano?

- Ela é nova na cidade. Quero que todos tratem ela bem, ouviram? - continua a professora - Por favor, entre. Pode entrar, não precisa ter vergonha.

Monalisa vira seu rosto para a porta, esperando apenas que uma nova menina qualquer entrasse em sua sala. Mais uma garota no meio de tantas, nada de novo. Contudo, a reação dela foi bem diferente. Sim, pelo simples motivo da pessoa à frente da sala ter o mesmo tamanho, os mesmos cabelos ruivos, o mesmo olhar que aquela garota do sonho. Era ela. Igual. Idêntica.

"Impossível", pensa Monalisa, com os olhos arregalados. "Essa é...a menina do meu sonho!"