— Isso é tudo que ainda tem dele — respondeu Lin de braços cruzados quando Katara e Kya foram buscar as coisas de Sokka.

Ela não havia ido no enterro que acontecera no Polo Sul, mas estivera presente na pequena homenagem feita em Cidade República em frente a sua estatua no conselho.

E também havia chorado. Havia chorado mais naquela manhã do que podia se lembrar, sentia suas pernas fracas e corpo sem forças, não tinha certeza se conseguiria se levantar quando recebeu a noticia.

— Você não quer ir para a casa de sua mãe? — perguntou Katara, com as mãos nos ombros da garota — Ela precisa de você agora.

— Me desculpe — respondeu Lin, abraçando a mulher. Ela já havia perdido o marido há alguns anos e agora o irmão que ela amava tanto — Eu tenho trabalho a fazer.

Os olhos azuis da curandeira encontraram os dela e depois seguiram para a cicatriz em sua bochecha e então se detiveram por um instante.

Ela levou os dedos frios a ela e Lin não recuou, era raro que isso acontecesse. Depois de tantos anos era como se ela ainda fosse uma ferida viva, pulsando. Mas Katara a havia curado e por isso não podia fugir do toque da tia.

— Sua mãe só fez o que achava o melhor para vocês — falou com a voz calma — Ela pode ser impulsiva, mas sempre deu prioridade a vocês duas da melhor forma que ela sabia.

Lin não respondeu aquilo. Sabia que a tia falava de coração, mas não conseguia acreditar que sua mãe havia lhes dado prioridade em qualquer momento. Talvez a Suyin, claro, mas não a ela, não naquele caso.

Katara passou pela porta com uma caixa em mãos e Kya saiu logo atrás, dando um tapinha no ombro de Lin ao passar. Uma promessa de que estaria ali mais tarde. Lin havia cuidado dela quando Aang morreu e agora era o momento de retribuir.

Quando já estavam longe pela rua, ela deixou a casa. Ainda era cedo para chegar na estação, mas queria parar em um lugar antes.

Um monumento fora erguido ao lado do túmulo do avatar. Por mais que a família decidisse mante-lo junto da família, a cidade queria pelo menos uma homenagem a ele no cemitério local.

"Manter os amigos juntos" dissera um dos conselheiros, mas Lin sabia que apenas queriam criar um novo ponto turístico. Não era importante, para ela sempre seria o mais próximo que conseguia chegar de tio Sokka agora.

— Eu não pude ir para o polo sul — disse sentada em frente a grande pedra cinzenta com a inscrição do nome e ano de um dos fundadores da cidade — Espero que você entenda.

Nem o vento parecia se mover no momento em que ela acendeu o incenso para Sokka.

— Eu sei que você queria que eu estivesse com mamãe — conseguia sentir os olhos pinicando e colocava a culpa na fumaça, mas sabia que eram as lágrimas que começavam a sair mais uma vez — Mas eu ainda não consigo. Não sei se eu vou conseguir sem você aqui.

Ela suspirou, abraçando as pernas como uma criança pequena, como se isso pudesse aplacar o vazio em seu peito. Não tinha muita noção de quanto tempo havia passado com o queixo entre os joelhos encarando a pedra escura.

— Eu tenho que ir trabalhar — ela secou as lágrimas que continuavam a cair. Precisava chegar antes para lavar o rosto.

Ela se ergueu e colocou a mão sobre a pedra de forma afetuosa, não era tão caloroso como o ombro amigo, mas era mais reconfortante do que nada.

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Suyin não queria levantar naquele dia. Havia recebido o rádio antes de qualquer outra pessoa, da mesma forma que havia acontecido com Aang, mas era diferente agora. Ela caiu na cadeira e teve a impressão de que ficou uma eternidade sentada ali encarando o vazio do próprio escritório.

Agora parecia mais vazio e frio.

Pensou em ir para a primeira viagem direto para o Polo Sul, mas não podia abandonar sua família daquela forma. Esfregou os olhos enquanto se esforçava para levantar.

Voltou para a cama e se enrolou ao lado do marido, envolvendo as costas dele com o braço para se deixar sentir todo o peso da sua descoberta.

— O que houve? — perguntou Baathar se virando para abraça-la com carinho, beijando sua cabeça.

Su fez uma pausa, deixando a cabeça descansar sob os carinhos do homem.

— Eu recebi uma péssima noticia hoje — murmurou, sabendo que manchava o pijama do marido com as lágrimas.

— Pior do que a morte do avatar?

Ela não respondeu. Apenas assentiu com a cabeça, sem coragem de abrir a boca para responder o que havia de fato acontecido. Baathar admirava Sokka, mas isso nunca seria o suficiente para sofrer como ela estava no momento.

Acabou dormindo, não chegou a notar quando isso aconteceu.

E mesmo no sono parecia que estava sendo engolida por um vazio impossível de explicar. Havia participado do velório de Hakoda quando ainda era criança e era lá que estava agora.

No colo de Sokka enquanto ele segurava o ombro de Lin e Toph enroscava os dedos em seu braço.

A água permeando o couro da pequena canoa funerária e a levando para o fundo do gelo. Su se agarrou ao pescoço do homem e encarou seu rosto, mas não eram mais os olhos azuis que a encaravam e sim o rosto de seu marido.

A sua frente estava sua mãe, com os braços enrolados no de tia Katara e as duas choravam lágrimas congeladas. Lin estava muito distante, quase oculta pelas brumas geladas e por mais que Su tentasse alcançar a família, já estavam longe demais, se dispersando em distantes diferentes enquanto Sokka afundava.

Acordou do pesadelo em um sobressalto, sentia o corpo gelado e úmido de suor para encontrar peso em seus braços e pernas, enquanto a pequena Opal dormia em seu peito com o dedinho gordo entre os lábios.

Não conseguia alcançar qualquer um dos cinco para lhes acariciar.

Apenas pequenos fragmentos de luz entravam pela veneziana, criando raios de claridade em meio ao quarto escuro e, naquela penumbra, ela pode ver o rosto de seus dois meninos mais velhos.

Baathar era tão parecido com o pai que as vezes se perguntava o que aquele garoto havia puxado dele. Na meia luz do quarto, ele até mesmo tinha alguns traços de tio Sokka.

Mas Huan... Huan era assustadoramente parecido com algumas imagens que vira de tio Sokka. Talvez fosse apenas o luto que a fazia procurar o político em seus pequenos, mas isso pareceu acalmar seu coração e preencher um pouco do vazio que estava sentindo.

— Eu achei que isso podia te fazer bem. — sussurrou a voz do marido em algum lugar sobre sua cabeça e então viu a mão grande acariciando os cabelos castanhos de Opal.

— Sim! — respirou fundo, esfregando a cabeça no marido — Fez muito bem.

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Katara não havia pisado em Cidade República por quase 3 anos e agora estava ali, bem no meio de seu apartamento com os olhos voltados para a janela da sala.

Toph sabia o que ela estava olhando, podia sentir a grande estátua de Aang encarando a cidade se tivesse concentração suficiente.

— Seu irmão dizia que era a melhor vista a baia. — Sentiu o coração da amiga pesar com o suspiro.

— É como se ele estivesse aqui — respondeu, sentindo o corpo começar a balançar por soluços. Talvez não fosse a melhor ocasião para voltar — Cuidando da cidade.

Toph a abraçou com carinho. O tipo de coisa que só poderia acontecer naquele dia especifico, naquele momento em que as duas eram viúvas enlutadas.

— Vamos começar isso logo e então você pode voltar para a sua casa.

Kya havia ajudado as duas a trazer as coisas do quarto e a pequena caixa da casa de Lin, a antiga casa de Sokka. Era uma montanha de coisas, coisas demais para alguém que vivia no mar.

Toph parou por um instante, dobrando uma pequena pilha de roupas que ainda tinha aquele cheiro de sal marinho que havia se acostumado. O coração pesado demais para fazer seu corpo continuar.

— Acho que ele guardou tudo da época da guerra — comentou Katara, tinha um álbum de fotos na mão e uma caixa de daguerreótipos ao seu lado, mas não prestava atenção neles.

Estava concentrada nas lágrimas reprimidas que pintavam os olhos embranquecidos de vermelho vivo.

— Eu acho que ele guardou tudo da vida inteira. — ela podia sentir os leques de Suki no meio da bagunça, só não tinham chegado neles ainda.

Conversa fiada. Nunca fora disso, mas agora estava ajudando. Ela havia terminado aquela camiseta e passado para a próxima quando a cunhada deslizou uma pequena caixa para junto dela.

— Você lembra disso? — perguntou.

Era uma caixa de madeira, pequena e pesada, com um fecho tipo trinco de metal. Toph a abriu com cuidado e logo percebeu que eram pequenas e finas placas de metal.

— Isso era um inferno — respondeu com uma risada escapando da garganta — 10 minutos na mesma posição.

Katara riu com gosto enquanto observava Toph segurar as laminas finas, imagens de muitos anos no passado, de antes de pensarem em ter crianças ou fundarem cidades.

— Mas você conseguia enxergar.

— Não valia a pena — respondeu, mas o sorriso aberto e meio de canto mostrava o quanto ela estava feliz em poder "enxergar" as fotos e então ele começou a oscilar.

— O que você achou ai? — Katara deslizou para junto dela, olhando por sobre os ombros.

— São as meninas — Katara não tinha certeza se era uma afirmação ou uma pergunta, mas quando se inclinou realmente ficou em choque.

Sokka não deveria ter aquela foto gravada no metal, mas ela estava ali, reproduzida a perfeição com Su ainda careca e só dois dentes pontudos na parte debaixo da boca no vestido que Poppy havia dado para o primeiro ano, os dedinhos gordos firmemente seguros ao redor dos indicadores de uma Lin sorridente que guiava a irmã caçula até os braços da mãe, sentada no chão de braços abertos, o vestido puxado até sobre os joelhos para ter o máximo contato possível com a pedra, para ver o máximo possível.

— Ele amava essa foto — foi tudo que a irmã conseguiu dizer — Eu nem sei como ele fez isso.

Então seu olho foi atraído para um ponto brilhante no fundo da caixa. As superfícies espelhadas pareciam flutuar por causa das divisões na caixa que não as deixavam tocar o fundo e lá, por baixo de todas as fotos.

Katara esticou a mão para pegar o que parecia ser outra foto, mas redonda e muito menor que as demais. Tinha o tamanho de uma moeda e era metal refinado com um claro entalhe de javali alado.

— Mas talvez eu saiba porque ele fez isso — a castanha segurou as mãos pálidas contra as suas e depositou o pequeno objeto na palma de Toph que pareceu congelar — Ele ia pedir você em casamento, quando contassem a Su.

A dobradora de terra brincou com o metal em seus dedos por um instante. Admirando o entalhe e a escolha, ele podia ter usado um meteorito, mas meteoritos eram fáceis de talhar e moldar ou pelo menos mais do que o metal puro e refinado. Enroscou os dedos na seda macia antes de responder.

— Acho que ele nunca se deu conta do quanto nós estávamos velhos — respondeu com o coração pesando em seu peito mais uma vez e dessa vez não haveria conversa que amenizasse.

Katara percebeu que seu coração havia acelerado. Estava curiosa sobre a resposta que Top daria, mesmo que isso não fizesse qualquer diferença agora. Sabia que a mulher podia sentir isso e então tentou disfarçar.

— Você quer ficar alguma coisa? — perguntou para a consciência distante da amiga.

— Eu vou ficar com isso — respondeu, envolvendo a caixa com os braços e o colar com os dedos.

— Eu vou pedir para as crianças me ajudarem a levar o resto para o Polo Sul — disse se levantando e esticando as costas ruins pelo frio e pela umidade. Chegou a caminhar até a porta, mas algo a fez se deter e voltar para Toph — O que você responderia para ele?

— Que diferença isso faz? — a pergunta soou mais seca do que ela queria, a voz voltando a falha, seus dedos ainda traçavam o entalhe delicado — Katara! — ela chamou, antes que os passos estivessem distantes demais — Eu teria aceitado, independente de quando ou onde.