Toph não tinha noção nenhuma de horário. Tinha um relógio em algum lugar da casa, mas - tirando o tique-taque que a enlouquecia - Não lhe servia para nada. Havia servido para as meninas e depois para Sokka, para ela era a mesma coisa que nada.

Sabia que tinha passado muito tempo porque não conseguia evitar o sentimento de que deveria ter ido para o Polo Sul. Havia tentado voltar para a cama, mas ela parecia desconfortável e fria por mais que se enrolasse. O cheiro de Sokka parecia a encontrar a todo o momento e então voltava a circular pela casa, vagando como um espirito.

Bateram em sua porta novamente. Era a segunda vez naquela noite e não poderia ser algo bom.

— Senhorita Bei Fong — chamou o homem que ela reconheceu como um emissário da Tribo da Água.

Um arrepiou passou por sua coluna e ela apertou o roupão contra o corpo, havia se vestido depois que os dois homens partiram, mas sentia tanto frio que não conseguiu se desfazer da roupa.

— Katara pediu para que a escoltasse imediatamente até o Polo Sul — aquilo definitivamente não podia ser bom.

Ela não discutiu, apenas pediu um momento para pegar roupas de inverno que guardava por anos. Ela nem se lembrava quando havia estado no Polo Sul pela última vez. No velório de Hakoda talvez, se lembrava de que as meninas eram pequenas, Su não poderia ter mais que 5 anos na época, lembrava-se que Sokka tentara convence-la a voltar para cidade República para que a bebê não ficasse resfriada, mas ele não fez muito esforço. Estava feliz de tê-las por perto, todas as três.

Tentou se consolar, não podia ser algo tão grave se Katara havia mandado buscá-la para uma viagem que levaria semanas, talvez até meses se evitasse ir de barco e - espiritos! - como ela adoraria evitar barcos. Quer dizer... Se fosse uma notícia tão ruim, teriam sido mais diretos.

— Vamos mais rápido voando — ela reconheceu a voz de Zuko apenas alguns metros a frente, provavelmente montado em seu dragão.

Toph não gostava de voar. Tinha traumas muito grandes quando se tratava de dirigíveis e sempre reclamava de Appa, mas gostava dos bichinhos de estimação de seus amigos, por mais que fizesse que não.

Ela tremeu quando se acomodou atrás do antigo Senhor do Fogo, envolvendo os braços ao redor da cintura dele. Estava frio no céu, mais do que em terra e ficou feliz por estar usando um casaco pesado.

Nenhum dos dois falou qualquer coisa e isso só serviu para preocupa-la mais. Sempre pensara em fazer uma viagem de campo transformadora com Zuko, só não esperava que fosse naquelas condições.

— Como está a menina? — foi tudo o que conseguiu perguntar, mas não era exatamente o que ela queria saber.

— Nós a salvamos — ele respondeu depois de alguns estalos com a língua, sua voz era arrastada como se as escolhesse com calma — Ela estava dormindo quando sai.

Ele não falou sobre Sokka e ela não perguntou.

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— Você não precisa fazer isso mesmo, Katara — ele resmungou, sentindo as mãos frias da irmã percorrendo as costas nuas — Eu estou bem.

Mesmo assim ele parecia lutar para respirar e sua pele empalidecia rapidamente, o calor deixando a pele castanha de forma preocupante.

— A dominadora de água te acertou no peito em algum momento? — perguntou Katara.

— Foi apenas por causa da luta — ele respondeu, erguendo as mãos enrugadas — não precisamos coloca-la na lista negra de Toph por isso.

— Sokka, isso é sério — pela primeira vez ele sentiu que medo no tom da irmã e sentiu que era mesmo hora de parar — Ela pode ter congelado você.

Ele pensou em quando encontraram Aang naquele iceberg, tantos anos atrás. Ele apenas sobreviveu porque entrou em estado avatar, nenhuma pessoa normal viveria a ser congelado.

Olhou para as próprias mãos, ainda pareciam normais. Mais pálidas do que se lembrava, mais enrugadas do que gostaria, mas ainda eram suas mãos. Não pareciam congeladas, só frias. Como uma hipotermia, já havia tido algumas vivendo no polo sul e apesar de graves, nunca o mataram.

— Vai ficar tudo bem, mana.

Outra pontada acertou em cheio enquanto ele segurava o ombro da irmã e, por instinto, o apertou mais forte.

— Sokka, você não está bem — ela respondeu, voltando a senta-lo na maca de madeira — E o seu corpo já está fraco demais, eu não sei se posso... — ela parou a frase, mas ele sabia o que ela queria dizer.

Durante todo o momento ela continuava trabalhando em suas costas, tentando convencer o gelo a derreter. Havia feito isso várias vezes com muitas pessoas, mas dessa vez não parecia querer funcionar.

Ela começava a ficar desesperada quando sentiu os dedos gelados do irmão tomarem as suas mãos.

Ele queria não entender o que a irmã havia lhe dito. Sokka se virou de repente para encarar os olhos azuis, já cheios de lágrimas com o medo de perder outra pessoa querida em tão pouco tempo. Ainda não havia superado a morte de Aang e provavelmente nunca faria.

— Katara — ele falou, o tom um pouco acima de um murmúrio, segurando o rosto da irmã entre suas mãos — Eu não vou morrer. Ainda tenho muitas coisas a fazer aqui. — abraçou-a apertado enquanto dizia aquelas palavras, não acreditando completamente no que dizia — Eu tenho que ver a minha filha, conhecer meus netos. — Ele fez uma pausa, deixando a irmã se acalmar um pouco antes de completar — E não posso deixar que a última lembrança da minha esposa comigo seja uma noite interrompida pelo Senhor do Fogo.

— Espiritos, Sokka! — respondeu a idosa, o empurrando para longe. Quase podia ver aquela garota de 14 anos novamente — Eu sou uma viúva idosa, não preciso desses detalhes.

Ele ainda ria quando outra parte da frase chamara a atenção de sua irmã caçula.

— Esposa? — ela voltou a se aproximar do homem — Vocês dois?

Já não era como se os dois estivessem falando de morte. Sokka quase podia sentir seu coração esquentando de novo, como se ele não estivesse tendo as pontadas no coração.

— Não! — ele corrigiu rapidamente, erguendo as mãos para segurar as da irmã — Não ainda pelo menos.

— Mas você já...? — a pergunta nem teve tempo de ficar no ar antes que o irmão explicasse.

— Eu tenho tentado, mas sem Suyin parece errado. — admitiu com sinceridade dolorida — Mas na primeira vez Su decidiu que não viria para casa, depois teve... — ele não completou, mesmo assim Katara conseguia ouvir o nome de seu marido enchendo o ar.

Faziam três anos e ele ainda estava em todo lugar, havia saído da Ilha do Templo do Ar para não pensar nele o tempo inteiro, para não ver a enorme estátua na entrada de Cidade República, mas não podia se afastar do ar.

— Entende porque eu não vou morrer?

Katara o envolveu em um abraço carinhoso. Tinha lágrimas nos olhos, já não tinha certeza se eram de de tristeza ou de alegria.

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Toph tremeu quando entrou no quarto quente. Mais até do que havia tremido no caminho, agarrada ao braço de Zuko. Katara a havia alertado que ele não estava bem, estava resistindo nos últimos dias, mas era difícil ter uma certeza de por quanto tempo e a dobradora de terra ignorou cada palavra.

Sokka não iria morrer, não sem conhecer os netos, não sem ver a filha.

Mesmo com essa certeza ela sentiu o coração pesar no peito quando entrou no quarto e não sentiu o coração dele. Só depois se lembrou de que ela não podia sentir quase nada sobre aquele gelo, com os pés metidos naquelas botas peludas.

— Toph — a voz dele era um sussurro no meio da escuridão.

Ela ergueu as mãos ao seu redor, tentando sentir as paredes e o lugar ao seu redor pelo contato, tateando como uma inválida.

— Você precisa de ajuda? — ele tentou se levantar, mas outra pontada lhe acertou o coração. Estavam mais frequentes agora.

O resmungo do homem a guiou para a cama e ela logo se sentou ao lado dele, apertando as mãos frias nas suas.

— Não faça esforço seu idiota — Toph implicou, tentando bater nele, mas sem esforço e animo.

Ele podia ver as lágrimas se formando em seus olhos e soube que ela podia sentir seu coração perdendo força a cada segundo que passava.

Sokka se esforçou para poder sorrir, mas mesmo isso doía em seu rosto semi-congelado. Toph se deitou em seu peito e se aninhou junto a ele.

— Foi bom que você veio — ele disse, enroscando os dedos nos cabelos dela.

— Ah, você sabe... Eu não resisto a uma viagem ao polo sul! — havia algum humor em sua fala, mas era apenas na superfície enquanto tentava inutilmente esquenta-lo.

— A sim, eu sei como você adora o frio e as botas — ele respondeu no mesmo tom melancólico. — Principalmente as botas.

Eles ficaram em silêncio. Haviam tantas coisas para dizer, mas eram coisas que as palavras não podiam cobrir. Ela podia sentir os dedos dele brincando com os dela, segurando-os como se tivesse medo de deixa-la ir, como se isso fosse a última coisa que o prendia a esse mundo.

— Me desculpa — ele sentiu quando ela respirou fundo e Sokka afundou o nariz contra os cabelos pálidos como a neve.

— Te desculpar porque? — ela perguntou com a voz embargada — Por ter sido um herói?

— Por não cumprir nossas promessas, por não falar com Su uma última vez — ele respondeu a envolvendo com mais força. Aquilo a machucava, não era culpa dele que Suyin jamais conheceria o pai como pai — Por não ficar do seu lado até o fim.

Toph não respondeu de imediato, sabia que se falasse novamente começaria a chorar, então apenas enroscou os lábios nos dele. Era o último beijo e ela sabia disso mesmo antes de abraça-lo.

— Obrigada por estar aqui — ele disse quando se soltaram.

— Eu achei que você estranharia se eu não tivesse aqui depois de todo esse tempo enfrentando a morte juntos. — ele riu baixo, a cabeça encostada na dela enquanto o coração seguia diminuindo. — Eu vou morrer de saudade de você.

Ele a soltou, virando-se de barriga para cima, mas ainda encarava o rosto pálido, acariciando-o com a ponta dos dedos.

— Eu vou esperar você, todos os dias.

Ele sorriu para ela pela última vez, sabendo que ela não iria poder vê-lo, mas que sentiria a última batida de seu coração.

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Katara estava do lado de fora quando Toph saiu da cabana cambaleando. Seu coração apertou ao ver o rosto riscado pelas lágrimas recentes, ela não precisava perguntar.

Apenas se aproximou e envolveu a menor em seus braços, como havia feito com seus filhos e com a própria Toph muitas vezes no passado.

Escovou os cabelos para fora do rosto enquanto tentava guia-la para dentro da própria casa, onde estaria mais quente e seria mais privado para que a amiga pudesse se sentir mais a vontade para chorar.

— Katara... — ela sussurrou, deixando o braços envolverem o corpo da mulher.

Tinha certeza da imagem estranha que faziam, duas idosas andando abraçadas pela neve. Um reflexo estranho das jovens enérgicas, prontas para a guerra que cruzavam as ruas de Ba Sing Se há quase 50 anos.

— Eu sei, querida — respondeu Katara, a dor em seu peito ainda não havia se fechado desde a morte de Aang, mesmo com Korra por perto, sempre parecia que lhe faltava o ar — Eu sei.