176 A. g.

— Lin, você tentou separar os meus pais? — acusou Su, mas seu tom era mais divertido do que acusador.

Lin nem sequer havia se movido, ainda tinha as mãos nos olhos. Finalmente havia tirado a imagem dos dois de sua cabeça, nunca havia sido a intenção dificultar as coisas, só estava irritada e preocupada. Talvez esse fosse "todo o lixo" que a mãe havia se referido da primeira vez que se encontraram.

— Desculpa, mãe — ela falou, depois do longo silencio.

Lin virou os olhos para encontrar os olhos brancos de sua mãe abaixados sobre as mãos enrugadas. Havia uma expressão triste que apareceu levemente pelo rosto frágil da idosa. Nunca havia pensado que escutaria a filha se desculpando, mas em sua defesa nunca acreditara que contaria a ela sobre aquela conversa.

Claro que tinha ficado ressentida na época, sabia que Lin estava fragilizada e machucada de várias formas, mas isso não dava o direito de ela tentar fazer o mesmo com a mãe e ela demorou para perdoa-la, por muitos anos pensara que nunca faria. Mas uma vez Katara lhe dissera que coração de mãe sabia perdoar tudo e, como sempre, a rainha da doçura estava certa.

— Esqueça isso — respondeu, balançando as mãos a sua frente, mesmo que ainda tivesse um aperto no peio — Eu e seu pai já superamos isso há muito tempo.

"Seu pai". Lin parou, deixando que aquelas duas palavras caíssem em seu peito. Havia chegado aquela conclusão com o tempo também, mas nunca tinha dito para ninguém. Levara muito tempo para aceitar que não traia a memória de seu pai biológico se aceitasse que outro homem havia estado lá por ela desde sempre.

O clima ficou pesado naquele momento. As três Bei Fong pareciam embaladas demais em seus próprios pensamentos. Davam goles curtos no chá, apenas o barulho ressoando por um longo momento antes que Toph tentasse voltar para a história e o porque levara tantos anos para contar a Su.

— Já falamos sobre o trauma da sua irmã — disse Toph de repente, as mãos cruzadas no colo enquanto a xícara de chá ficava esquecida na mesa de centro — Podemos falar sobre o dia que você decidiu não voltar para casa?

Su suspirou. Era a sua vez de passar pela parte de enfrentar a velha Toph e não estava ansiosa por isso, mas sabia que isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde, a mãe nunca havia tocado nesse assunto em mais de 20 anos.

— Seu pai tinha planos para quando você voltasse — ela completou.

Mais uma vez, Suyin se viu inclinada a se esconder no fundo da poltrona e evitar o olhar, mas isso não funcionaria com sua mãe de qualquer forma.

Não foi sem dificuldade que ela levantou de seu lugar, as pernas se arrastando contra a vontade, querendo ficar fora dos holofotes a maior quantidade de tempo possível, mas mesmo assim ela se obrigou a ir até a mesa e abriu uma gaveta para tirar um pedaço de papel.

— Mais um pedaço de papel — resmungou Toph, enviando sua franja branca para o ar com uma lufada de ar — Você é bem filha do seu pai mesmo.

Su nem se preocupou em responder, todos já sabiam dos lapsos de memória que Aang e Sokka tinha sobre a falta de visão da dominadora de terra, a ponto de que isso virara implicância entre as crianças na infância. E Suyin, ela mesma admitia, que também esquecia as vezes.

Ela estendeu os papéis pela mesa. Eram desenhos que tinha feito na infância, a maioria não era grande coisa artística ou da engenharia, mas haviam sido o motivo dela ter decidido não voltar.

— Vocês me mandaram isso quando faltava pouco tempo para eu voltar — ela respondeu, parada em frente aos rabiscos, com as duas mãos na cintura.

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143 Ag.

Estava sentada na grande mesa de jantar da tradicional casa da família Bei Fong. Era a imensa casa em que sua mãe havia crescido, ao menos até os doze anos.

Havia estado na mansão tão poucas vezes que mal se lembrava que toda ela era coberta em tons de verde, marrom e dourado, mas o último ano havia gravado cada detalhe daqueles corredores em sua mente. Às vezes ela se perguntava se a mãe havia passado tempo o suficiente para saber distinguir as cores. Era um pensamento idiota, sabia que Toph havia nascido cega, mas tinha tantas habilidades e passou tanto tempo trancada naquele lugar.

Su correu os olhos pela sala, encontrando os rostos frágeis e amassados de Lao e Poppy. Uma vez Toph havia contado que a família passara por muitos problemas, haviam se separado por um longo tempo e o avô chegara mesmo a fingir que nunca tivera uma família e menos ainda uma filha.

Levaram alguns anos até que tudo fosse resolvido de vez, levara muito tempo até que os três aprendessem a dosar seus pontos de vista.

A mais jovem suspirou, baixando os olhos para o seu jantar. Não conseguia imaginar que seus avós podiam ser mais rigorosos, afinal os dois sempre mimaram ela e Lin. Claro que os amava, eram sua família e provavelmente haviam subido o tom a pedido da própria Toph, mas nos primeiros dias já começava a acreditar que estavam exagerando.

Ela não podia nem ao menos andar pelo jardim sem ser constantemente observada pelos guardas e isso que era da linhagem da maior dobradora de terra viva. Uma vez ela tentara chamar alguns deles para um combate de dobradores, mas nem isso eles tinham permissão de fazer, então ela apenas se atirava na grama e encarava o sol.

Estar ali só a fazia sentir mais falta da liberdade que Toph lhe dava. Quase sentia falta de Lin e suas chatices cotidianas também, quase.

— Correspondência para a senhorita Suyin — disse um dos guardas entrando pelas grandes portas duplas.

Ela se adiantou e então parou de repente sob o olhar severo de Lao.

— Me desculpe vovô — ela disse, se curvando levemente e maneirando o tom de empolgação — Vovó — ela acrescentou antes de pedir a permissão — Eu poderia me levantar.

Ninguém respondeu ela, em vez disso, Poppy se virou para o homem que havia interrompido o jantar.

— Quem é o rementente?

— O conselheiro Sokka, senhora — disse o homem.

Su voltou a se remexer da cadeira, nos últimos anos havia trocado muitas cartas com seu tio Sokka, cartas sobre sua família e Cidade República e ela retrucava pedindo que ele implorasse para que Toph a levasse de volta.

— Vó, vô! — a voz era quase um choro baixo quando ela pediu pela segunda vez.

— Termine seu jantar, Suyin — disse Lao.

— Depois pode responder o conselheiro — completou Poppy.

Su voltou a se sentar sobre as pernas, bufando para terminar a comida. Havia até recebido um xingo do avô por estar comendo rápido demais.

Naqueles momentos ela se perguntava se os avós ainda guardavam algum rancor de sua família por ter levado Toph deles ou se "tudo resolvido" significava de fato "tudo". Parte da desconfiança vinha pelo rosto que Poppy fazia toda vez que o nome de tio Sokka era citado em uma conversa.

Ela terminou o prato e então ficou parada, esperando que seus avós a liberassem. Não foi mais do que um aceno de cabeça entre eles e então ela se levantou em um salto.

— Não corra, mocinha — repreendeu Poppy.

— Sim, vovó! — ela se desculpou.

Diminuiu a velocidade dos passos até alcançar o guarda que esperava para lhe entregar a carta recheada e embalada. Ela esperou que a porta se fechasse antes de correr para o quarto em que estava hospedada.

A primeira coisa que ela fizera foi retirar os papéis que recheavam o pacote, uma série de desenhos que ela havia feito durante a infância, todos nas tardes que havia passado com o tio e todos sobre as aventuras que ela queria ter em sua vida.

Ela sorriu lembrando de cada uma delas, das histórias que o tio Sokka contava. Haviam histórias com piratas, bibliotecas subterrâneas, destruição de propriedade privada, invasão de prisões de segurança máxima, isso sem contar o fim da guerra. Sua família havia feito de tudo e o maior feito dela tinha sido ser presa por dirigir um veiculo de fuga.

"Eu estava ajudando sua mãe a arrumar algumas coisas no quarto de vocês..."

Aquilo havia chamado a atenção dela. Toph estava limpando o quarto dela e de Lin, Lin havia saído de casa há quase um ano, mas ela ia voltar, não ia? Sua mãe ainda a queria em casa, não?

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Toph estava concentrada enquanto a filha falava, uma pontada fraca em seu coração enquanto se lembrava daquele dia. Eles não estavam esvaziando o quarto das meninas. Bem, ao menos não com a intenção que Su havia suposto.

Era um fim de semana, um daqueles dias que Toph conseguia a sua tão almejada folga. Estava cansada de ser a chefe de policia, desde o incidente com Su, ela havia deixado completamente de fazer as coisas do seu jeito para jogar o jogo político que tanto odiava.

Ela havia enrolado para acordar naquela manhã, não queria sair da cama, mas sentia que tinha algo errado. A cama ainda estava quente ao seu lado, o que significava que ele não tinha saído a muito tempo, no entanto o corpo ao qual costumava se agarrar não estava mais ali.

Ela podia sentir a presença dele por perto assim que colocou os pés no chão. Estava tão acostumada que era quase como os pequenos pedaços de terra no metal que sempre se destacavam e lhe chamavam a atenção.

— O que está fazendo ai? — perguntou, se ajoelhando atrás dele e colocando os braços ao redor de seu pescoço e depositando um beijo na nuca nua.

Ele estava sentado de pernas cruzadas no meio do quarto das meninas folhando algumas folhas antigas que havia encontrado nas gavetas. Era fácil diferenciar os desenhos de uma e de outra porque Su sempre fazia uma assinatura rebuscada no canto da página, enquanto Lin quase nunca assinava seus desenhos.

— Lin me pediu para arrumar umas coisas dela — ele respondeu, apoiando a cabeça contra da amada, que apenas ajeitou os braços ao redor dele — Alguma coisa de errado? — perguntou com uma insinuação de sorriso, segurando o rosto chateado entre as mãos grandes.

Ele sabia que havia uma pontada de ciúmes sem que ela precisasse falar. Conhecia Toph por mais de 40 anos agora e sabia das coisas que a incomodavam e uma delas era quando suas filhas davam preferencia para outra pessoas. Quando mais nova ela ainda tentava disfarçar, mas com ele isso era inútil.

— Eu não entendo porque ela passou o dia inteiro comigo na delegacia e não falou nada — respondeu, recebendo de bom grado o beijo casto que ele lhe depositava nos lábios, para logo em seguida aninha-la em seus braços.

Ficaram um longo tempo abraçados, ele olhando para os papeis enquanto ela apenas os escutava cortar o ar com um som característico.

— Você sabe que eu não sei nada do que está ai, certo?

Eram 40 anos, ele lembrou em sua cabeça, 40 anos que esquecia que ela era cega. Estava tão acostumado com a independência dela que os olhos pareciam um detalhe desnecessário.

— São desenhos delas — ele fez uma pausa, puxando-a para mais perto — Da Lin e da Su, elas gostavam de desenhar aventuras.

Ele percebeu a mão de dedos pequenos pela face pintada de giz de cera, como se assim pudesse absorver todas as cores e formas que estavam contidas naquela folha.

Sokka envolveu a mão dela e então a puxou para o seu colo, beijando primeiro a bochecha e então descendo pelos ombros, derrubando o tecido atoalhado do roupão que ela usava.

— Elas vão voltar — ele sussurrou contra o ouvido de Toph — As duas e nós vamos ser uma família.

— Você pode descrever o que elas desenharam? — perguntou, prendendo os dedos largos nos céus, admirando a sensação de como sua mãos parecia pequena contra a dele.

— Sempre que você quiser — respondeu, beijando os dedos da mão delicada.