Por momentos tenho a sensação de que o tempo parou, os segundos que demoram para começar a falar parecem uma eternidade. Do nada sinto uma dor aguda no peito e começo novamente a hiperventilar. Suplico, com o olhar, para alguém falar.

— Boa tarde pessoal. – Começa o Doutor Marcel. – Âhh… Como sabem eu e o Doutor Halstead fizemos a primeira triagem na Detective Upton. – Faz uma pequena pausa. – À chegada conseguimos parar a hemorragia no ombro. Embora com colete a bala perfurou, mas ficou superficial, qualquer das formas foi necessário cirurgia para a sua remoção. – Olha em volta para se certificar de que todos estávamos a acompanhar. – Não ficará com qualquer mazela no ombro, apenas será necessário algumas semanas de repouso e conforme a recuperação, fisioterapia. – Faz novamente uma pausa e olha para mim antes de continuar. – Agora, assim que entrámos com a Detective Utpon para a triagem ela teve uma convulsão. – Naquele momento senti novamente o Mundo a desabar, era ali que ia começar a parte difícil, eu sabia. – Felizmente com a medicação conseguimos controlar a situação mas devido à hemorragia na cabeça, ela estava a perder muito sangue e foi necessário fazer uma primeira transfusão de sangue. – Aponta para o outro médico. – Aqui o Doutor Abrams que é neurocirurgião, foi chamado e encontrou-se connosco na sala onde foi realizada uma tomografia computorizada à cabeça da Detective Upton. – E é ao largar mais uma bomba que o Doutor Marcel passa a palavra ao outro médico.

— Após a realização do exame conseguimos detectar a extensão da lesão da Detective Upton. – Fala na sua habitual voz fria. – Ela tem um traumatismo cranioencefálico com alguma gravidade. – Faz uma pausa. Noto que é para nos dar tempo de absorver toda a informação.

Choque. Perplexidade. São as expressões dos membros da equipa que consigo ver. Algures atrás de mim ouço um “Não” angustiado por parte da Vanessa.

Muito lentamente tiro o olhar do médico que tinha acabado de falar e olho para o meu irmão. Olhava fixamente para mim. Aceno negativamente com a cabeça na esperança que ele dissesse que não era assim tão grave, mas em resposta apenas recebo um demorado e ligeiro aceno positivo de cabeça e fecha os olhos transtornado. Conhecia o meu irmão. É através daquele movimento que sei que ainda não tínhamos ouvido tudo. Viro-me novamente para o neurocirurgião.

— Pode continuar por favor… - Não tenho certeza de como aquela frase suou. Se como uma pergunta ou como um pedido. A única certeza que tenho naquele momento era a de que estava completamente perdido. A voz fraca e os olhos a arder devido à força que fazia para não chorar.

— Então, já na sala de operações foi necessária uma segunda transfusão de sangue e devido à gravidade da situação e à impossibilidade de conter o inchaço do cérebro naquele momento, tivemos que colocar a Detective Upton em coma induzido. – Lança a bomba final enquanto olha para mim. – As próximas 24h serão muito importantes para sabermos se será necessário fazer alguma intervenção cirúrgica.

O silêncio naquela pequena sala ficou sufocante. Eu sentia-me a sufocar. A dor aguda no meu peito tinha intensificado. Precisava de sair dali. Não queria que a minha equipa visse o que se estava prestes a passar, eu iria perder o controlo. Deixo de ver e sinto os meus ouvidos como se tivesse de baixo de água no momento em que o Doutor Abrams conclui e diz que ela estava na unidade de cuidados intensivos (UCI). Não espero nem mais um segundo, abro caminho por entre os médicos há minha frente e saio daquela sala.

Primeiro que tudo, precisava de ar. Não conseguia respirar fundo, as narinas queimavam e se não fosse a situação diria que estava a ter um ataque cardíaco. Passo por algumas pessoas mas não as vejo, apenas os contornos. Chego à rua no preciso momento em que não aguento mais e tenho que levar a mão ao peito. Queria gritar. Oh se queria. Todas as palavras ditas por aquele médico a ecoarem dentro da minha cabeça, enquanto mais uma vez tentava respirar e não conseguia. Tentava distanciar-me daquele sítio a qualquer custo. Com a mão que não tinha sobre o peito apalpava a parede ao meu lado até encontrar o fim daquele edifício. Assim que o encontro embrenho-me pelo beco solitário. A dada altura sinto-me patético. A mulher que amava estava entre a vida e a morte e eu estava literalmente a sentir que ia morrer ali.

— Jay… - Ouço a voz do meu irmão mesmo ao meu lado. Sinto uma mão no meu ombro.

— Estou a morrer Will. – Concluo enquanto lentamente fico de joelhos na rua. Deixo o corpo vergar para a frente e apoio-me com uma mão no chão. A outra ainda no peito.

— Respira Jay! – Ordena. – Olha para mim. OLHA PARA MIM JAY. – Grita quando vê que não o faço da primeira vez.

Sinto-me ainda pior quando olho para ele. Se é que era possível. Eu estava a chorar. As lágrimas saíam dos meus olhos como cascatas. Compaixão estava estampado no semblante carregado do meu irmão. Sussurro o nome dele no momento em que me lanço nos seus braços e deixo que me abrace. É então ali, nos braços da minha única família de sangue que choro ainda mais e deixo sair o grito que estava preso na minha garganta.

— Jay… - Sussurra novamente. – Estás a ter um ataque de pânico. Tens que tentar respirar por favor. – Tira a minha cabeça do seu ombro e olha-me nos olhos. – Eu percebo tudo o que estás a sentir, mas por favor acalma-te está bem? – Aceno positivamente.

— Ela vai morrer? – É a única coisa que consigo dizer quando sinto maior controlo na minha voz.

— Não te vou mentir Jay, a situação é complicada, temos que esperar estas primeiras 24h passarem para sabermos mais detalhes. – Suspira e dá-me um aperto no ombro. – Qualquer das formas o coma induzido quer dizer que fomos nós que a colocamos assim. Logo ela só irá acordar quando nós quisermos e for seguro. Vamos desta forma tentar controlar o inchaço no cérebro através da medicação. – Termina.

— Quanto tempo? – Pergunto.

— Isso é difícil dizer. Vai depender de muita coisa, mas principalmente o corpo dela é que manda, será o tempo que ela precisar. – Suspiro com aquela observação. - Mas temos que ter pensamento positivo, e já deu para perceber que ela é uma lutadora. – Dá aquilo que penso ser a tentativa de um sorriso fraco. – Ela não se vai deixar vencer. E tu faz-me o favor, mas principalmente a ela, de não te ires a baixo. – Levanta as sobrancelhas. – Quando a Hailey acordar vai precisar de ti. – Finaliza.

— Não vou suportar ficar sem ela. – Exalo audivelmente quando um vislumbre daqueles grandes olhos azuis me visita os pensamentos. – Não a Hailey. – Sussurro mais para mim, embora saiba que ele ouviu.

— Faz é um favor a ti mesmo e assim que aquela mulher acordar diz que a amas está bem? – Mais algumas lágrimas descem pela minha cara sem a minha permissão.

— Não penso noutra coisa desde que soube do tiro. – Confesso. – Como pude ser tão cobarde? Como pude deixar de dizer que a amo? E agora nem sei se isso vai ser possível!

— Juro que se não lhe disseres assim que ela acordar eu vou-te bater Jay Halstead. – Olho confuso para ele. – Vou-te bater mesmo.

Fico alguns segundos a analisar a expressão que ele mantém. Juro que às vezes acho que ele se esquece que sou detective. Acabo por me endireitar um pouco da posição em que estávamos. Agora sentados no chão, lado a lado, pernas encolhidas até ao peito, tenho um melhor deslumbre da expressão do meu irmão. Confirmo a minha suspeita de segundos atrás. Suspiro, fecho os olhos e encosto a cabeça na parede que nos dá apoio.

— Não precisas de fazer isso, a sério. – Hesito. – Mas obrigado. – Mantenho-me da mesma forma que estava quando falei, mas sei que olha para mim.

— Fazer o quê?

— Will, não precisas de fingir que está tudo bem, ou que ficará tudo bem. – Olho finalmente para ele. – Eu sei o que vi! Vi como chegou, como a levaram para o bloco e também acabei de ouvir tudo o que aqueles dois médicos acabaram de dizer. – Faço uma pausa. – Portanto agradeço que queiras fazer com que me sinta melhor, mas isso só irá mascarar a dor que sinto, e neste momento, embora queira manter a fé, também preciso manter a mente aberta para o pior que possa acontecer. – Começo a fazer uma força tremenda para não voltar a chorar. – Ahhhh Will, não vou suportar perdê-la compreendes? Não a ela! Não depois de tudo o que ela fez por mim. – Sussurro.

— Realmente quem diria, Hailey Upton iria colocar Jay Halstead em sentido. – Graceja o Will.

— E o pior é que o fez, e fez bem. E sem qualquer esforço. – Sorrio ligeiramente no fim.

— Estás completamente apaixonado irmão. – Conclui. – E eu aprecio isso, ela fez-te um bem tremendo. – Coloca a mão no meu joelho. – E como já te disse, gosto dela! – Sorri. – É baixinha mas tem uma boa energia que dá para sentir ao longe. – Era importante para mim saber o quanto ele gostava dela.

— Posso vê-la? – Pergunto por fim.

— Posso tentar que a vejas pelo vidro.

— Não. Preciso mesmo de ir ao pé dela, por favor Will. – Suplico. Iria fazer-me um bem tremendo.

— Os pacientes dos cuidados intensivos não podem receber visitas. – Explica.

— Compreendo. Mas por favor Will, peço-te como irmão e como homem desesperado, deixa-me ir junto a ela. – Olho-o profundamente.

— Está bem, vou ver o que posso fazer. – Apenas aceno com a cabeça em forma de agradecimento.

Ficamos daquela forma durante mais alguns minutos. De certa forma aquela conversa com o meu irmão tinha ajudado a acalmar-me. Mas nem de longe me tinha acalmado o coração, e muito menos a cabeça.

Assim que ele toma a iniciativa de se levantar, imito-o. Coloca o braço em volta dos meus ombros e incentiva que o siga.

— Posso pedir-te que não comentes com a Inteligência a forma como me viste? – Não precisava que eles soubessem a forma como me descontrolei.

— Podes ficar descansado.

Fazemos o caminho de volta. Passamos na sala onde eu e o resto da equipa esperámos desde manhã por notícias, mas já se encontrava vazia. Continuamos pelo corredor e atravessamos as portas onde só os médicos podem entrar. Percorremos um longo corredor, onde ao fundo já conseguia ler uma placa com uma seta que dizia “UCI”. Ao virarmos nessa esquina avisto toda a equipa da Inteligência colada a um vidro. Automaticamente sinto os olhos a ficarem turvos com as lágrimas teimosas. A primeira a sentir a minha presença é a Kim, corre para mim e dá-me um abraço longo e desajeitado. Nada diz, eu também não, fica apenas o sentimento e o olhar profundo que trocamos. Quando estou perto de chegar ao vidro reduzo o passo. Estava com medo. Do que ia ver, mas principalmente do que ia sentir.

— Espera aqui Jay. – Ouço a voz do Will. Certamente ia pedir para eu entrar.

Toda a equipa se afasta da parte central do vidro para me dar espaço. Aos poucos vou andando até avistar uma cama mesmo de frente. É então que a vejo. Deixo escapar um pequeno grunhido quando percebo toda a situação dentro daquele quarto. Naquele momento posso sentir alguns pares de mãos em cima dos meus ombros. Sim, éramos uma família para o bem e para o mal.

É então que me foco naquilo que posso ver atrás daquele vidro. A minha parceira estava deitada naquela cama, completamente imóvel. Quase que nem se percebia ser ela. Não fosse o pouco que se via daquele inconfundível cabelo louro pois uma grande faixa de ligadura branca cobria grande parte da cabeça. Da boca saía um grande tubo que estava ligado a uma das muitas máquinas que a rodeavam.

— Jay? Podes vir comigo? – Will? Ah ele conseguiu!

Não penso duas vezes e sigo-o. Entramos numa sala mesmo ao lado do quarto da Hailey. Só aí é que vejo a porta de acesso ao mesmo. Entrega-me uma bata, uma protecção para o calçado, uma touca para a cabeça e uma máscara, tudo descartável. Coloco tudo ao mesmo tempo em que o meu irmão faz o mesmo, ele iria entrar comigo.

— Pronto? – Respondo que sim, e imediatamente antes de entrarmos tenho que passar as mãos por uma solução desinfectante.

Sigo-o para dentro do quarto onde fica apenas uma cama. A cama onde a Hailey descansa. Quase que não me consigo movimentar de tal forma que tremo, é então que percebo que prendia a respiração. Percebo do meu lado direito o vidro por onde anteriormente espreitava, e onde ainda se mantém toda a equipa. Lentamente vou seguindo para junto da cama. O quarto estaria em pleno silêncio não fosse um pequeno barulho que alguma máquina faz e os “bips” do batimento cardíaco. Demoro alguns segundos no ecrã que mostra as linhas a subir e descer, as linhas que me mostram que ela está viva. Por fim quando chego ao lado direito da cama olho para ela.

Parecia que estava simplesmente a dormir de tal forma que estava serena. Demoro-me nos olhos fechados. Daria tudo para ver aquele azul profundo e perder-me neles. O quanto os amo. Lentamente estico a mão e agarro um pedaço de cabelo. Fico a brincar com ele por entre os dedos enquanto mais uma vez olho para ela.

— Está a sofrer? – Quase que não tenho voz quando faço a pergunta.

— Não. – Responde o Will.

— Tem um ar tão sereno. – Digo em voz alta aquilo que não me saía da cabeça. – Se não fosse esta faixa na cabeça dizia que não tem nada. – E era verdade, não tinha qualquer arranhão visível.

Fecho os olhos e inspiro profundamente. Imagino o cheiro dela, o perfume, o odor corporal. O cheiro a Hailey. O cheiro que tantas vezes me deixava entorpecido quando estávamos fechados durante horas no meu carro. Dava tudo para a cheirar naquele momento. Ainda de olhos fechados imagino a risada mágica daquela mulher. Sorrio ligeiramente, ouviria aquele som durante horas seguidas. Levo a mão que tenho disponível à mão esquerda dela. Está pousada ao lado do corpo por cima do lençol. Está fria. Acaricio gentilmente como tantas vezes sonhei fazer e não tive coragem.

— Prometo que quando acordares as coisas vão ser diferentes. – Sussurro enquanto me inclino mais para ela. Não me interessava que não me tivesse a ouvir. Naquele momento a força que fazia para não chorar já era insuportável.

— Jay temos que voltar. – Ouço claramente a informação que me é dada mas não olho para ele. Queria olhar para ela o máximo tempo possível, mesmo com aquela ligadura e um grande tubo a sair da boca.

Queria tanto dar-lhe um beijo na testa para me despedir, mas quase que não se via por causa da ligadura. Assim aproveitando a mão que já segurava levo-a aos lábios e beijo-a.

— Preciso que sejas forte e voltes para mim. – Deixo por fim uma lágrima cair. – Que voltes para nós. – Por fim largo-lhe a mão e sem olhar para trás desapareço pela porta.