Perdi a noção do tempo que fiquei de punhos cerrados contra o vidro. A náusea tinha voltado, e mais do que nunca sentia as pernas e o peito a tremer.

— Jay… Posso trazer-te alguma coisa? – Kim. Com toda a sua atenção e generosidade. – Um café, algo para comeres? – Apenas aceno negativamente com a cabeça. Tinha medo de abrir a boca, e que isso fosse uma ajuda para entrar em algum tipo de espiral. – Jay… Tens ali uma cadeira. Senta-te um pouco, estás a tremer. – Arrisco olhar para ela. A Kim seria sempre a Kim. Sempre preocupada com o próximo. Oferece-me um pequeno sorriso de conforto, mas vejo nos olhos vermelhos o quanto está preocupada e destroçada com a situação.

Pondero o que me disse e resolvo aceitar a sugestão. Viro-me e procuro pela cadeira que falou. Excepto o Voight, que está de pé a um canto, toda a equipa está sentada a olhar para mim. Não digo nada. De entre as opções escolho uma cadeira no canto que fica em frente à porta. Sento-me e imediatamente recosto a cabeça na parede e fecho os olhos.

Não posso evitar de pensar o que estaria a acontecer naquele momento. Era certo que havia uma bala para tirar, mas seria apenas aquilo? Ela estava inconsciente desde o primeiro momento. E aquele sangue todo? Quando o Kevin chegou ao pé dela, já não respondia. Pela nossa experiência, já sabíamos que aquilo por norma não era bom. E eu só precisava de saber a gravidade, era tudo o que queria.

Abro os olhos para poder encarar a realidade há minha volta. Todos estão compenetrados nos seus pensamentos, ninguém arrisca falar. O Voight continua no canto dele, junto à parede vidrada. Braços cruzados, toma atenção a tudo o que se passa no corredor, ou pelo menos assim parece. É como um pai para todos nós, e ter um dos seus filhos numa cama de hospital deixa-o doente.

Nas duas cadeiras em frente, estão o Kevin e a Vanessa. O primeiro, com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos a agarrar a cabeça. Estava longe, o olhar distante e um pouco brilhante. Lágrimas. O Kevin era o típico “paz de alma”, todos o adoravam e ele adorava toda a gente. Eu gostava de ver a relação que ele tinha com a Hailey, dois irmãos traquinas. A risada dela com ele era tão feliz. Reparo pela primeira vez a camisola que trazia, tinha um pouco de sangue na zona da barriga, não posso evitar um arrepio por saber de quem era.

Rojas. A surpreendente Vanessa. Se havia alguém que tinha acreditado nela desde o primeiro dia, esse alguém era a Hailey. E como sempre aquela doce pequena estava certa. A Vanessa tinha sido uma grande revelação. Era um pouco como o Kevin, não via maldade em ninguém, gostava de todos e todos gostavam dela. Divertia-me imenso com ela, principalmente quando ia a casa da Hailey. E lá estava ela. Abatida. Não escondia uma ou outra lágrima que volta e meia lhe assaltavam os olhos. Quase deitada na cadeira, o pescoço apoiado no começo do encosto, as mãos sobre a barriga. E tal como o Kevin, o olhar distante a emoldurar o rosto.

Nas duas cadeiras de frente para eles, estavam o Adam e a Kim. Não consigo ver as suas caras, pois estão de costas para mim. Mas um sentimento reconfortante invade-me o coração, pois a Kim tem a cabeça apoiada no ombro do Adam, e ele, apoia a dele na dela. O Adam é como que a criança da equipa. Sempre teve uma boa relação com a Hailey, mesmo depois de terminarem o que quer que seja que eles tiveram. De ambas as partes, não ficou nenhum constrangimento, e a amizade ficou intacta.

A Kim, de todos, sempre foi a mais distante da Hailey. Embora se tenham aproximado, e tenham mantido essa aproximação, depois do término da relação do Adam com a Hailey.

Suspiro. Ali a olhar para eles todos, e a relembrar a forma como são, só faltava mesmo a minha parceira. Chegou de fininho, entrou-me no coração e na cabeça. Não posso evitar sorrir, ao início não gostava nada dela. Talvez pelo lugar que ela foi ocupar. Talvez pelo ar intocável que transmitia. Em pouco tempo, passei a confiar a minha vida àquela mulher. Aproveitava as horas que passava a trabalhar com ela para a conhecer. E ela abria-se para mim. E eu, quase que como magia, passei a fazer o mesmo. Criámos laços profundos, começamos a conhecer-nos apenas com o olhar. Nós os dois falamos com o olhar. É intenso, revelador, quente, e gratificante. Contamos histórias no silêncio do nosso olhar. Passei a conhecer aqueles grandes olhos azuis de cor. A intensidade e o brilho que eles transmitiam. E sem dar por ela, apaixonei-me por eles. Já não vivia sem olhar para aqueles grandes olhos azuis todos os dias. Algum tempo depois de reconhecer a relação especial que tinha com a minha parceira, apercebo-me que tinha ganho uma melhor amiga. Partilhávamos tudo, momentos bons e maus, e mesmo quando não queríamos ter alguém por perto, isso não se aplicava a nós os dois. Éramos o pilar um do outro e já não passávamos um sem o outro. Eu amava a minha parceira e melhor amiga. Mas muito tempo depois, é que descobri que para além daquele amor de amigos, eu amava aquela mulher. Não sei ao certo quando me dei conta disso, se quando descobri que ela mantinha uma relação com o Adam. Se foi enquanto nos apoiávamos mutuamente. Se quando a inteligência esteve por um fio por parte do Kelton. Se quando a meti em perigo por causa da epidemia que um louco causou, ou se quando levei um tiro. O que sabia era que quando dei por mim, e me permiti aceitar esses sentimentos, já estava completamente apaixonado pela minha parceira e melhor amiga. O que era certo, é que tinha certeza que desta vez era a pessoa certa. A forma como tudo aconteceu, como nos relacionávamos, e até como a personalidade da Hailey encaixava na minha não me restavam dúvidas. A calmaria que transmitíamos mutuamente era tão genuína que eu queria aquilo para sempre.

E agora ali estava eu, com a mulher da minha vida longe do meu alcance, e algo me dizia que a situação era grave.

Olho para o relógio no momento em que o Sargento Voight paira sobre mim e me estende um café.

— Obrigado Sargento. – Aceito e fico a olhar para o copo na minha mão.

— Queres falar Jay? – Apenas digo que não com a cabeça.

— Só quero saber o que se está a passar. – Olho novamente para o relógio. – Já deviam de ter dito alguma coisa. Esta espera mata-me! – Sussurro.

— A Upton é forte Jay! – Sorri para mim. – Não fosse ela a tua parceira. – Olho para ele enquanto processo aquela informação. – Função que ela desempenha rigorosamente desde o seu primeiro dia nesta unidade. – Faz uma pausa e pousa a mão no meu ombro. – Por isso é que nunca deixou de ser tua parceira Jay, vocês completam-se, e eu soube desde o primeiro dia que aquela detective ia andar contigo em rédea curta. – Faz uma pausa. – E vê bem, não me enganei nem por um segundo. – Olho para ele incrédulo. Em resposta recebo um piscar de olho. Sim, tudo o que ele disse estava certo.

— Porque é que tenho a sensação de que é grave Sargento? – Passo a mão pela cara e suspiro. – Eu não vou suportar perder mais alguém. – Sou sincero nas palavras que lhe dirijo, e olho-o bem fundo nos olhos. – Muito menos ela. A Hailey não Sargento.

— Jay… Primeiro, não tenhas esses pensamentos, tens que acreditar, aliás, todos nós temos que acreditar. – A esta altura já toda a equipa ouvia a conversa. – Não é a primeira vez que passamos por isto, e infelizmente não será a última. – Faz uma pausa. – Por isso, independentemente de quem passar por aquela porta, e de qual seja a informação que nos for dada, nós vamos continuar unidos como sempre fomos e vamos apoiar-nos mutuamente. – Suspira. – E isto inclui a Hailey. – Termina com um olhar sugestivo para todos nós.

A dada altura deixo de consultar o relógio e tudo o que faço e vejo passa a ser automático. Tento persuadir a Maggie a recolher alguma informação que me acalmasse o coração, mas a única resposta que tivemos foi que tínhamos que esperar.

Perco a conta das vezes que me levanto, que passeio pela sala, que me sento, que vou até à parede vidrada, que me recosto em qualquer sítio e fecho os olhos, que suspiro, que amaldiçoo-o internamente tudo há minha volta. E volto a fazer tudo novamente. Como eu, o Kevin e o Adam partilham dos meus mantras. A Kim tenta chegar a todos para dar conforto, mas sei que está a tentar ficar sã no meio daquilo tudo. A Vanessa nem se mexe na cadeira que ocupa. E o Voight suspira de ansiedade no canto dele.

Em meio a tanta hora já tínhamos sido contactados pela Trudy, algum do pessoal do Med já nos tinha “visitado” e as paramédicas que tinham transportado a Hailey já só queriam saber respostas.

Assim que tive um pequeno deslumbre da cabeleira loura da Sylvie Brett lancei-me a ela na procura de respostas. Afinal o primeiro socorro tinha sido prestado por ela.

— Não te posso adiantar muito Jay. – Responde com a sua típica voz serena. – Quando chegámos ela já estava inconsciente. – Quase que sussurra. – A minha primeira triagem indica-me que o tiro não era grave mas que o ferimento na cabeça inspirava alguns cuidados. – Diz ainda mais baixo. – Não te posso dizer mais do que isto Jay. – Termina quase inaudivelmente.

Fico mais uma vez enjoado ao tentar digerir o que acabo de ouvir. O Kevin já tinha mencionado que ela certamente tinha ficado inconsciente ao bater com a cabeça no chão. Mas aquela afirmação da Sylvie tinha sido quase a confirmação. O que tinha deixado o meu coração mais inquieto.

Mais uma vez analisava o movimento no corredor. Absorto nos meus próprios pensamentos. Ao virar da esquina vejo surgirem três figuras masculinas. Instintivamente começo a levantar-me, e ao fazer esse movimento tenho a confirmação de quem são ao ver a figura ruiva ao meio. Ainda antes de os três homens chegarem à porta eu já lá estava.

Fico parado enquanto espero que abram a porta. Com os braços estendidos ao longo do corpo. Deixo a minha experiência de detective analisar os homens há minha frente. O primeiro impacto visual deixo para o meu irmão. Está cansado. Tenso. E não tira os olhos de mim. Do seu lado direito o Dr. Marcel deixa o olhar divagar por toda a equipa, que entretanto já se juntou a mim. Tem os braços cruzados, mas algumas veias dilatadas nas mãos mostram que está a fazer força a mais. Deixo o meu olhar lentamente pousar no homem ao lado esquerdo do meu irmão. Não me é estranho, sei que já me cruzei com ele, talvez por ser mais velho que os outros dois, e ter mais anos daquilo, tem um olhar imperscrutável. Mas é quando abre a boca para dizer “boa tarde” que um pequeno flashback surge na minha mente, e juntamente um nome: Dr. Samuel Abrams, neurocirurgião do Chicago Med.

Neurocirurgião. Neurocirurgião. Tenho a palavra às voltas dentro da minha cabeça. Arregalo os olhos quando me apercebo quem é o homem há minha frente. Automaticamente dirijo o olhar para o meu irmão. Novamente para o médico há minha frente e por último para o meu irmão. O Will sustenta o meu olhar até ver que estou prestes a explodir por querer explicações. Arregalo ainda mais os olhos e sinto-me a empalidecer à medida que penso qual é o trabalho de um neurocirurgião. Olho novamente para o Dr. Abrams e depois para o meu irmão, aceno negativamente com a cabeça quando começo a sentir os olhos molhados.

— Jay… - Sussurra com um olhar triste. Desconfio que apenas eu o ouvi.

Não… e agora?