No covil das harpias

Oliver espantou-se com a rapidez e o “profissionalismo” das harpias. Em nada se pareciam com os monstros sem cérebro que atormentavam os semideuses, dos inúmeros relatos que tinha ouvido na sua curta estada no Santuário. Elas vasculharam com rapidez as instalações em busca dos equipamentos e roupas dos meninos. Não demoraram nada para conseguir isso. Tudo foi devolvido: o bracelete de Nathalia, a dracma especial de Eric, o anel de ferro de Jade, e o tablet-torradeira de Oliver. Para o alívio de Lucas, suas roupas foram também devolvidas e ele teve o tempo que precisava para usar o banheiro. Além disso, elas arrancaram e levaram qualquer coisa que julgavam de valor. Dracmas de ouro dividiam espaço nas mochilas com castiçais de prata, torneiras de alumínio e até mesmo restos do lanche enrolado em guardanapos do subway que alguém deixou esquecido numa mesa.

Ocípedes não achou seguro levar o grupo a qualquer lugar que ela não tivesse como garantir a segurança. Ela e suas caçadoras resolveram levar a todos para o seu covil. Ou ninho, como elas gostavam de chamar. Se na mitologia grega ficavam em montanhas inacessíveis, em São Paulo preferiam bairros de periferia, em franca decadência. Quem sabe a presença das aves de rapina não fosse mesmo o motivo da decadência? Quem poderia saber? Cada harpia levou um dos heróis em suas garras, exceto Eric que preferiu ir voando na frente, colocando a conversa com Ocípedes em dia. Saíram do prédio-prisão que os mantinham cativos, uma cobertura de uma torre de apartamentos chiques nas imediações do metrô Ana Rosa e dirigiram-se para a periferia. O destino era tão insólito quanto o fato de heróis semideuses voando amparados pela proteção de suas inimigas mortais: o Brás.

Ocípedes explicou que o ninho ficava numa antiga fábrica de tecidos, desativada desde a década de 70. Ali, abrigadas dos olhares mortais, montavam seus ninhos e sua corte nos andares mais elevados das antigas construções de tijolos vermelhos. Sua sobrevivência se dava especialmente pelo trabalho mercenário que desenvolviam. Afinal, muitos inimigos dos deuses precisavam de soldados e as harpias não se importavam muito para quem iam trabalhar, desde que recebessem bem. Outra de suas funções era de servir de mensageiras para estes mesmos empregadores sinistros. Aliás, pouca coisa acontecia no submundo dos seres míticos sem que elas soubessem. E informação nos dias de hoje valia mais que o seu peso em ouro.

De todos era Isabel que mais se sentia desconfortável em estar sendo levada para onde quer que fosse pelas garras de suas antigas carcereiras. Ela sabia que Ocípedes estava sendo mantida prisioneira por Mormo, assim como ela. Era uma espécie de vingança contra todas as mães, pensou ela ao conversar com Eric dias depois de seu salvamento. Ela sabia que não deveria odiar todas as harpias. Mas estranhamente seus sentimentos lhe diziam o contrário. Não era racional. Era como se uma voz, fina e insistente, sussurrasse sentimentos ruins em seu coração. Parte dela gostaria de estar nos braços de Eric naquele momento. A sensação de segurança lhe faria muito bem. Mas outra parte dela preferia estar só. Era uma semideusa, filha da deusa da magia. Tinha de aprender a se virar sozinha, mais cedo ou mais tarde. Não dava para confiar nos outros sempre para tirá-la das enrascadas que perseguiam os meio-sangues.

O vôo levou cerca de trinta minutos. Lá em baixo São Paulo parecia um mosaico móvel de luzes e cores: uma coroa de luz amarela brilhante, salpicada por outras jóias de cores vibrantes e acesas. O grupo entrou uma a uma no andar mais alto de um galpão de aparência decrépita no Brás, perto da linha do trem.

Se por fora o visual do lugar impressionava por sua decadência, por dentro era quase impossível não se deslumbrar por sua opulência. Paredes de carvalho fino, piso de mármore finamente cortado, ligados entre si por fios de ouro, e montanhas de riquezas jogadas de forma aparentemente aleatória. Cada monte, calculou Eric, deveria ter pelo menos 20-40kg de ouro, jóias e outras coisas preciosas, como armaduras, armas de bronze celestial e até mesmo pequenas obras de arte, como pinturas e esculturas.

Da metade para frente do salão se erguia um brilhante tapete vermelho-carmesim que ia direto até um trono adornado por ouro e prata. Sentada nela estava a rainha Ocípete. Sua visão era ao mesmo tempo assustadora e curiosa. Era a maior de todas as harpias, como se fosse uma modelo plus size no meio de modelos magérrimas. Garras negras, aparentemente afiadas como bisturis, terminavam em mãos fortes. Os antebraços estavam cobertos de pulseiras de ouro, combinando com as dezenas de colares de ouro e platina que ela carregava. O seu vestido era de veludo vermelho e verde, rasgado em várias partes, denunciando a força de seus músculos poderosos.

– Puxa, vocês poderiam ensinar uma coisa ou duas para o pessoal do funk ostentação – comentou despretensiosamente Eric enquanto caminhava ao lado de Ocípedes. Seus amigos estavam também deslumbrados, caminhando dois passos atrás como uma pequena comitiva. Por fim, chegaram até a rainha. Eric fez uma mesura exagerada, copiada com certeza de algum vídeo que tinha visto em filmes ou seriados e foi seguido pelos outros meninos. Isabel por sua vez tratou de fazer a sua reverência: bem menos exagerada, muito mais cheia de charme e sem dúvida bastante respeitosa.

– Quem de vocês é o filho de Hermes que salvou a minha filha? – perguntou a rainha das harpias com um tom solene. Ela perscrutava os meninos como se buscasse, além da pessoa que devia gratidão, um inimigo.

– Sou eu – adiantou-se Eric, estendendo a mão em direção à rainha. Isabel pôs a mão na boca suprimindo um grito pela quebra do protocolo e Nathalia cobriu os olhos com a palma da mão, corada de vergonha.

Se a quebra de protocolo irritou ou ofendeu a rainha, ela não demonstrou. Ela ficou olhando para a mão estendida de Eric por cerca de dois segundos antes de apertá-la. Depois sorriu, revelando a boca cheia de dentes pontiagudos, ligados entre si por um aparelho ortodôntico. Eric se segurou para não rir.

– Eu lhe devo mais do que posso pagar, jovem. Você fez um favor para mim, que nenhum herói ou deus jamais tinha feito. Você demonstrou misericórdia e empatia. Escolha o que quiser da minha sala de tesouro e será teu como pagamento por tuas boas ações.

– Ah valeu. – disse o menino ainda despretensioso – mas eu não quero tesouros. Oh não me leve a mal... seus tesouros são desejáveis... muito desejáveis. Mas não salvei sua filha por pagamento. Se pudermos ser amigos eu já fico feliz. Além do que a senhora e sua filha me salvaram. A mim e a meus amigos. Posso até dizer que estamos quites.

Ocípedes olhou para o seu salvador de forma ainda mais especial. Nas semanas depois de sua libertação tinha seguido discretamente o grupo de Eric com a ajuda de sua rede de informações. Ela estava deslumbrada pelo charme do menino. Seus olhos brilharam.

– Você me intriga, mortal – comentou a rainha – eu lhe ofereço riquezas e você diz que minha dívida contigo já foi paga. Você diz que o salvamos, mas pelos relatos de minhas caçadoras vocês já estavam em vias de se salvarem sozinhos. Eu vou aceitar sua proposta de amizade. A primeira vez desde sempre que uma harpia forjará uma amizade com um mortal.

– Fico feliz, nossa majestade. – disse Eric – agora, se permite, eu e meus amigos precisamos de um lugar para estirar as pernas. Sabe como é. Estamos cansados pra burro. E amanha cedo temos de ir em busca de nossa missão.

– Que seja. São meus convidados por hoje. Acomodações estão sendo preparadas e comida já foi providenciada. – a rainha os levou até um salão inferior onde sacos de dormir estavam alinhados ao lado de um tapete persa enorme, coberto com caixas de sanduíches da Fry’s hamburgueria e mais algumas garrafas de 600 ml de refrigerante. – Hoje vocês comem, bebem e dormem. E amanha, fazem o que os semideuses fazem, seja lá o que for isso.

Os meninos atacaram os sanduíches. Era uma variedade impressionante e saborosa. Entre uma e outra caixa conversavam amenidades, evitando discutir assuntos importantes. Lá pelas tantas Isabel comentou em voz baixa:

– Dá mesmo para confiar nelas?

– Por que não? – respondeu Nathalia, atacando um shitake gourmet com muito molho agridoce. – Se elas quisessem nos fazer mal bastava que nos soltassem quando nos trouxeram para cá. A queda nos mataria. É bom ter aliados para variar.

– Eu também acho – comentou Lucas, que apesar de ser majoritariamente natureba e vegetariano, rendeu-se aos encantos de um sanduíche parmegiano. Lambia com sofreguidão o molho de tomate que melecava os dedos – Amanhã temos que estar com a cabeça.

Jade acordou no meio da noite. Os colegas jaziam dormindo pesadamente em volta. Mesmo Nathalia parecia ter baixado a guarda e ressonava num canto, usando a mochila como travesseiro. Ela viu Isabel deitada ao lado de Eric, cada um em seu saco de dormir. Era interessante como apesar de brincalhão e carismático, Eric era absolutamente respeitador. Noutro canto viu Lucas dormir. Ele estava agarrado a um unicórnio de chifre colorido de pelúcia. Olhou em volta e não viu Oliver. Mais adiante viu o menino sentado ao lado da janela. Ela olhava para fora, com o olhar perdido, como se o peso do mundo passasse diante de seus olhos.

Ela caminhou descalça até ele, sentindo a brisa fria da noite paulista acariciar suas pernas nuas. Tinha desenvolvido o habito de dormir com pouca roupa. No máximo uma calcinha folgada e uma camiseta. Dessa vez usava um moletom com um enorme xis no peito. Era um dos moletons de Oliver. Ela chegou perto do menino e sentou-se sem dizer nada. Costumavam ficar assim às vezes. Sentados perto um do outro sem trocar palavras, como se curtissem apenas a proximidade. Como se não tivessem nada a dizer um ao outro. Como se a presença um do outro bastasse. Mas hoje não parecia ser um desses dias. Ela olhou para o menino e disse:

– Hoje eu fiquei mesmo com medo. Medo de que a nossa missão acabasse ali.

– Acho que eu também. Não sei se queria ter passado mais tempo com um cara que não sabe diferenciar o Albergue do Esquadrão Suicida. – disse o menino em tom de brincadeira. O clima da noite já estava pesado o bastante. Ele tinha passado a última hora testando alguma coisa nova, algo que ele achava que poderia ser seu trunfo contra os inimigos.

– Não brinca com isso! – exasperou-se Jade – Eu tive medo do que ele poderia fazer com você. – a voz dela quase sumiu no fim da frase, como um sussurro. – nem todo mundo é invulnerável como eu.

– Não se preocupe. – disse ele num tom apaziguador – eu não tenho medo de nada quando estou ao seu lado. Seja lá o que for que encontremos nesta jornada podemos dar um jeito. – ele olhou no fundo dos olhos dela e sorriu – Você vai na frente tomando os tiros e golpes e eu vou atrás disparando as rajadas de energia e cortando os inimigos em pedaços. Nada no Olimpo poderá no deter.

– Ei bonito... que belo plano hein? Quer dizer que eu sirvo de escudo humano agora? – disse Jade, entrando na brincadeira e sorrindo pelo canto da boca.

– Escudo semidivino. Você é o escudo e eu sou a espada.

Os dois riram. Era a forma de um dizer ao outro que estavam bem.

– E então somos oque? – perguntou Oliver.

– Semideuses em uma missão – respondeu Jade, fugindo do assunto. – Libertar Zeus, deter Apolo, sobreviver aos gases que Eric solta quando come muita comida condimentada.

Oliver não resistiu e deu uma risadinha. Jade emendou a mesma risada. Mas a risada morreu deixando algum que os dois não conheciam: o silêncio constrangedor.

– Não é isso. O que somos? Nós dois, eu e você.

– Eu não sei. Eu não sei o que sinto por você – mentiu Jade sentindo o coração apertar – acho que somos... Não sei o que somos. Mas sei que não quero rótulos. Não quero ser “sua” nada. Nem namorada, nem paquera e nem nada. Eu não quero ser de ninguém. Eu quero ser apenas minha. Vamos apenas curtir o que somos, seja lá o que somos. Vamos curtir e ver no que dá.

Mal as palavras saíram da menina o seu peito contraiu. Ele gritava outra coisa. Ele queria ser. O seu coração gritava, mas o seu cérebro o calava. As feridas deixadas pelo pai ainda eram muito recentes. Não suportaria perder quem amava ou outra traição.

Oliver limitou-se a engolir os argumentos e a sorrir.

– Está certo – disse ele deitando a cabeça no colo dela – vamos ser apenas nós e vamos ver onde a estrada nos leva.

Jade curvou o tronco sobre a cabeça do menino. Sentia o hálito quente e adocicando do menino perto dos seus lábios. Ela fechou os olhos e o beijou, torcendo para que conseguisse conter as lágrimas que queriam brotar nos seu rosto, mostrando a mentira que tinha acabado de contar.