O Monte Itália

A manhã começou tarde para Isabel. Ela dormiu nos braços de Eric e acordou sozinha, cercada por sacos de dormir e restos do jantar de ontem. Pregado numa coluna de aço perto dela estava um bilhete escrito numa letra ruim que ela reconheceu prontamente como a de Eric.

“Ei princesa,

Você estava dormindo tão linda que eu não quis te acordar estamos no andar de baixo procurando o que poderia ser o tal do monte Itália. Quando acordar, descendo as escadas, tem uma mesinha com café e biscoitos.

– Eric”.

Isabel se espreguiçou longamente e desceu as escadas. A mesa estava lá como prometido. Logo adiante viu uma porta grande, corta-fogo, onde alguém tinha martelado um pedaço de madeira escrito porcamente “sala de controle”. Ainda segurando a caneca fumegante de café ela abriu a porta. De repente a expressão sala de controle parecia completamente fora de questão. Torre de babel parecia bem mais adequada.

Havia centenas – centenas – de harpias salão: muitas deles entrando e saindo por dezenas de portas laterais. Todas traziam mochilas de carteiro nos costas. Outras trabalhavam em terminais de computador selecionando informações e assistindo reportagens. Outras ainda separavam o que pareciam ser sacos de lixo preto. O saco era rasgado numa mesa e seu conteúdo esmiuçado, catalogado e depois de separado o que se queria era queimado. Tudo sob o constante cantar das aves de rapina. Elas cantavam em vários idiomas e o canto parecia ditar a rapidez de seu trabalho. Algumas das canções pareciam ter saído de navios piratas do século XVII e outras tinham tantos palavrões e gírias que Isabel preferiu tapar os ouvidos com as mãos.

Do outro lado do salão, no que parecia ser um escritório suspenso, estavam os outros. Numa mesa viu Oliver e Jade operando o tablet-torradeira dele, que insistia em chamar de Frank – alguma referência moderna que Isabel ignorava. Noutra poltrona estava Lucas sentando, com um par de fones de ouvido, como se estivessem em transe. Mas o que ela viu depois a acendeu nela uma chama que ela não sabia que tinha: Eric olhava um enorme mapa de São Paulo junto com Ocípedes. Os dois estavam tão próximos um do outro que quem não soubesse poderia dizer que eram namorados – ou alguma coisa mais íntima.

Ela invocou seus poderes mágicos de forma quase instintiva e num piscar de olhos estava do outro lado do salão, entre Ocípedes e Eric. Ela percebeu o olhar de incômoda da princesa das harpias quando, mesmo surpreso, Eric a tomou nos braços e beijou sua bochecha.

– Seu timing não poderia ser mais perfeito, principeza! – Isabel não demonstrou, mas adorava quando Eric a chamava assim. – Achamos o monte Itália.

– Pico. – corrigiu a harpia – Pico Itália.

– Certo, pico... No começo pensamos que fosse uma montanha ou uma formação rochosa natural, mas não era nada disso. A profecia dizia: “Da vista da terra do pico da Itália o relâmpago mostrará o caminho para o antigo mausoléu”. Só pode ser um lugar. O terraço Itália. Um restaurante muito chique que tem aqui na cidade.

– O Terraço Itália é um restaurante especializado na tradicional culinária italiana que funciona no 41° andar e cobertura do edifício Itália, o segundo maior edifício da cidade de São Paulo e terceiro maior do Brasil. A sua fama no fato de que para onde se olhe de lá se vê são Paulo. Uma privilegiada visão de 360 graus da capital de todos os paulistanos. – Ocípedes completou. – Seu amigo Oliver já reservou um jantar.

– É isso aí. Todo mundo de roupa chique. Terno para os meninos e vestido longo para as damas – completou Oliver, deliciando-se com a ideia de ver Jade enfiada num vestido de festa. O próximo passo são as compras. Selecionei algumas lojas para visitarmos até mais tarde.

Então o grupo se dividiu novamente. Jade, Isabel e Nathalia foram para a loja de vestidos enquanto eu os meninos foram encaminhados até uma alfaiataria tradicional.

Escolher roupas para homens era uma tarefa relativamente fácil. O alfaiate queria fazer ternos sob encomenda que levariam algumas emanas para chegar e que custariam os olhos da cara, mas visto que o jantar era em algumas horas, fez o melhor que poderia com o que tinha na sua loja, em pronta entrega. Para cada um foi providenciado um terno completo, tradicional, mas sem parecer cafona. Oliver e Eric optaram pelo terno preto, calças pretas, camisa branca e gravata borboleta. Quem os visse pensaria estar diante de jovens da realeza britânica a caminho de algum baile. Já Lucas apostou num terno de corte mais moderno, cinza claro com detalhes em risca de apenas dois botões. A calça de mesmo tecido combinava e ele preferiu carregar a gravata de nó pronto no bolso. Enquanto os ternos era aprontados eles receberam tratamento vip: sauna seca e à vapor, massagem com terapeutas profissionais, novos cortes de cabelo e puderam até mesmo bebericar de algumas doses de bom vinho do porto, safra de 1997. Era a vida que qualquer um gostaria de ter.

Já para as meninas as coisas não estavam assim tão simples. Jade encantou-se por um tubinho tomara que caia preto, com detalhes florais verdes escuros que lhe subiam pela lateral da perna esquerda. Isso exigia que usasse um colar de ouro com pequenas semi-joias translúcidas e cabelo preso num penteado lindamente trançado. Já Isabel preferiu um vestido mais recatado, vermelho com detalhes em dourado e mangas longas. O cabelo recebeu um tratamento para que ficasse liso em cima e ondulado nas pontas, dando a impressão de que tinha acabado de se desarrumar. Ela achou engraçado isso: horas de maquiagem e penteado para que parecesse que ela estava desarrumada.

Nathalia olhava tudo com a mesma excitação que um torcedor de futebol, fanático pelo Corinthians, olhava uma ópera ou peça de ballet. Quando ela descobriu que também teria de usar um vestido naqueles moldes ela quase explodiu em protestos. Nada a agradava. Tudo era “rosa demais”, ou “feminino demais”, ou “pareço uma dondoquinha”. Experimentou mais de trinta vestidos diferentes, para desespero do vendedor e divertimento das colegas, sempre bodejando e reclamando como se tivesse que escolher que forma de tortura a levaria à morte. Por fim, aceitou um vestido verde escuro com detalhes em preto. Longo e esvoaçante. Um colar dourado com uma esmeralda sintética foi colocada em seu pescoço, completando o de forma sóbria o decote generoso. Optou por um corte de cabelo um pouco mais curto, no melhor estilo Joãozinho longo, com mechas compridas que desciam pela lateral do rosto. E se os meninos foram regados à massagem e vinho, as meninas não tiveram a mesma sorte. Depois da sessão de depilação e das horas de penteado e maquiagem pareciam que tinham passado horas em combate. “Era o preço da beleza”, garantia a dona do salão.

Por fim a limusine contratada por Oliver chegou. O menino queria chegar em grande estilo no restaurante, uma vez que era seu primeiro encontro com Jade. Não medira esforços – e nem limites de cartão – para causar a melhor das impressões. No seu íntimo ele sabia que estaria em sérios apuros quando o tio visse a fatura do cartão, mas achou que valia à pena correr esse risco.

Apesar do trânsito o motorista do Uber fez um trabalho maravilhoso. Havia champanhe e delicados bombons de chocolate amargo à disposição do grupo e no som ambiente tocava uma bossa nova em versão chillout music. Jade sentara ao lado de Oliver e ia aconchegada com ele, conversando trivialidades. Isabel decidira que não deixaria qualquer mulher chegar perto de Eric por hora. Estava decidida a “tomar as rédeas” daquela relação, como tinha lido numa revista Nova. O único “casal” deslocado ali era formado por Lucas e Nathalia. Fora a boa amizade que cultivavam não tinham olhos um para o outro.

O grupo desceu na frente do prédio e logo ganhou o seu saguão. O elevador expresso os aguardava. Levou poucos minutos para vencerem os 41 andares do prédio. Logo estavam na cobertura. Era sim uma visão de tirar o fôlego. Para onde quer que se olhasse a cidade era visto em todo o seu esplendor de luzes e cores. Fora uns poucos casais de meia idade, eles eram as únicas pessoas do lugar. O maitre os saudou com um sorriso cheio de charme.

– Sr. Bernardo Stelle e convidados, estou certo?

– Está correto, meu bom homem – respondeu Oliver, sentindo-se um misto de Bruce Wayne e James Bond. – Mesa para seis. Jantar.

– Mas é claro – adiantou-se o maitre virando-se para uma mocinha vestida de garçom – leve o Sr. Stelle e convidados para a mesa 14.

– Por aqui senhor – disse polidamente a moça. Ao passarem pelo luxuoso salão Nathalia viu que alguns dos frequentadores não vestiam roupas finas e elegantes como as deles. Ela quase engasgou com o ar quando viu uma moça vestida com uma calça jeans, camisa semi-social branca e botas de cowgirl, saboreando uma cerveja num canto. O que ela não daria para estar vestindo aquelas roupas e não o seu vestido.

– Eu pensei que para jantar aqui, tinha de vir vestida como se fosse encontrar a rainha da Inglaterra, Oliver.

– Ah, não é obrigatório – rebateu rapidamente a garçonete – mas vocês são os casais mais elegantes que recebemos o mês inteiro! Se não se importam, gostaríamos de tirar uma foto para o nosso mural do charme.

O restaurante era mesmo lindo. O centro do salão estava ocupado por um imenso bar e as cadeiras e mesas rescendiam a uma época passada de charme, opulência e alta sociedade. Mal chegaram à mesa 14, uma jazz band chegou para tocar. Uma moça ruiva, provavelmente a vocalista, acompanhada por um homem alto portando um contrabaixo e outro rapaz trazendo um violão.

– Bonsoir, mesdames et messieurs! Nous sommes la bande Zaz et nous sommes là pour vous laisser toute la nuit plus agréable. – disse efusivamente a vocalista de cabelos vermelhos.

Jade fez um cara de quem não estava entendendo nada, assim como todos os outros. Nenhum deles falava francês. Á distância um senhor de idade gritou “bravo!” com um sotaque afrancesado, colocando peso na última sílaba da palavra. Seria falta de educação puxar a garçonete e pedir uma tradução simultânea?

– “Boa noite, senhoras e senhores! Somos a banda Zaz e estamos aqui para deixar a noite de todos vocês mais agradável”. – a voz metálica do Frank soou de dentro do bolso de Oliver. Ele tirou o tablet-celular-e-agora-tradutor e o colocou na mesa.

A banda começou a tocar uma música chamada “Je Veux” e o salão inteiro parou para ouvir. Antes que percebesse o que estava acontecendo Isabel foi puxada por Eric para o meio do salão e começaram a dançar. A menina não sabia dançar, pelo menos não sabia dançar jazz. Mas ao pensar que Eric poderia chamar outra menina para dançar ela se esforçou para seguir os passos do parceiro. Jade olhou com inveja para os outros e depois dardejou Oliver. O menino desabotoou o terno e colocou os óculos na mesa com uma expressão de “que se dane” e lá se foram os dois para a pista de dança. Nathalia olhou para Lucas com uma expressão do tipo “não se atreva”. O menino se limitou a tamborilar os dedos na mesa seguindo o ritmo da música. Quando a música acabou todo o restaurante aplaudiu a banda. Demorou mais duas musicas para que os dois casais voltassem á mesa. A cara de Nathalia era de poucos amigos. Ela mastigava furiosamente as torradas crocantes que serviam de antepasto, enquanto que Lucas se deliciava com palitos de cenoura e salsão para sererm mergulhados em molho tártaro.

– Achei que tínhamos vindo aqui em busca da pista da profecia. Não para sair para dançar e comer comidinhas chiques. – ela bufava, mastigando a torradinha num canto da boca.

– Nath, quer se acalmar? Estamos aqui e vamos encontrar a pista. Não se preocupe. Por que você não aproveita o momento? Vamos jantar e nos divertir um pouco. Você sabe que a qualquer hora pode entrar por ali um dos soldados de Apolo com o desejo de acabar conosco. – suplicou Eric.

– Só trabalho sem diversão faz do Oliver um bobão – disse Oliver, imitando a voz metálica de Frank. A máquina protestou fazendo o barulho de uma vaia.

– Está bem, mas é melhor que achemos alguma coisa logo...

O jantar veio farto. Pediram uma salada césar de entrada e para jantar fettuccine Alfredo e Carbonara. A sobremesa ficou por conta de um sorvete artesanal à moda de Nápoles. Mesmo contrariada Nathalia comeu bem e quase repetiu o prato. O sabor era inigualável. Nunca tinham comido nada igual. Mas a refeição e o ambiente cada vez melhor contrastavam com o clima lá fora: de uma hora para outra o tempo foi fechando e da sobremesa para frente já se ouviam trovoes pipocando nos céus.

– Essa é a nossa deixa. Vamos dar uma volta pelo restaurante e ver se achamos algo relacionado ao raio que nos levará ao mausoléu. – Comentou Oliver, como se tudo estivesse devidamente planejando.

Num dos cantos do restaurante viram a chuva se aproximar. Uma tempestade se aproximava. Uma dezena de raios correu por dentro das nuvens, iluminando o céu. Mas um deles escapou das nuvens e bateu numa praça, centenas de metros dali. Oliver conferiu a localização pelo mapa do frank.

– A praça Roosevelt é a nossa próxima parada.