Queime por mim

A viagem até o Hospital de Queimados transcorreu com facilidade. Eric dirigia em silêncio, guiando-se pelo GPS do seu celular, pensando em tudo o que estava acontecendo. Um olho na estrada e um olho em Isabel. Como ela estava diferente. Ela olhava para frente, confiante de si, como se jamais precisasse de um cavaleiro de armadura brilhante ou pernas ligeiras para salvá-la. E isso doía no peito do jovem velocista. Ele queria poder salvá-la.

Ao chegarem os garotos se deram conta de uma triste realidade: apesar de todos os seus poderes eles ainda eram apenas garotos. Nenhum deles poderia perambular sozinho pelo hospital sem levantar suspeitas. Muito menos resgatar Lucas. Uma coisa era trocar sopapos com lanceiros no centro de Fortaleza de madrugada. Outra coisa era se meter com o mundo mortal. Ainda mais com a ameaça dos homens de preto rondando.

– O que vamos fazer? – Nathália bufou encostada numa coluna de pedra perto da estrada principal do hospital. – Não podemos simplesmente entrar lá. E precisamos resgatar Lucas antes do nascer do sol.

– Por que antes do nascer do sol? – Questionou quase que instantaneamente Eric – Ele vai virar abóbora, explodir na luz do sol ou coisa assim?

Nathália revirou os olhos, exasperada. As piadas de Eric ajudavam a quebrar o clima ruim, mas às vezes, ou melhor, muitas vezes, eram inconvenientes demais. Esse era um desses momentos onde não sabia se socava o menino ou se o respondia. Apesar de estarem na frente de um hospital e de ser este o lugar certo para se levar uma boa surra ela optou pela segunda alternativa:

– O nascer do dia é a hora da troca de guarda dos lanceiros. Se eles não forem rendidos, vão saber que alguma coisa deu errado e pode ser que busquem mais apoio ainda do Santuário. E a última coisa que precisamos é mais semideuses à nossa busca. Se vamos resgatar Lucas tem que ser hoje.

Isabel olhava fixamente para uma entrada lateral de onde vários médicos, enfermeiros e outros funcionários do hospital entravem e saiam. Ela observava com atenção, como se estivesse contando cartas num jogo de pôquer. Por fim a ideia surgiu na sua mente. Não era exatamente original, mas quem se importava? Se funcionava nos filmes e seriados que costumava ver no tablet de Oliver poderia funcionar com ela.

– Eric, vai sair por aquela porta ali uma médica. Pode me trazer o crachá dela?

Eric espantou-se com a trivialidade com que Isabel falou. Era como se dissesse algo como “Eric pode me trazer um copo de água?”. Lutando contra os instintos de perguntar o porquê lá foi Eric. Ele colocou os fones de ouvido e andou despreocupadamente na direção de uma das médicas. O esbarrão proposital foi seguido de uma centena de pedidos de desculpas enquanto ele e a médica se afastavam. De longe ele acenou discretamente, mostrando o crachá nas mãos.

– Aqui está. Para que você precisa?

Isabel examinou fixamente o crachá. Isabel mirou-se no vidro espelhado de um carro ali estacionado e começou a “puxar os fios invisíveis que controlavam a realidade e a névoa”. Como numa animação de computador a menina mudou de forma: o seu corpo alongou-se e tonou forma adulta. Seus cabelos alisaram e aloiraram. Seus olhos ficaram mais redondos. Num piscar de olhos ela estava igual à médica que Eric acabara de roubar o crachá.

– Olhe esse crachá – disse ela para Eric – eu sinto que tem alguma coisa errada nele.

Eric tomou o crachá e olhou para ele como se estivesse inspecionando uma nota de dólar, para saber se era falsa ou verdadeira. Como Isabel suspeitava não era apenas uma identificação funcional qualquer. Funcionava como uma chave magnética para todas as portas e alas do hospital. Tinha além da foto da médica uma identificação positiva, baseada na assinatura eletromagnética da pessoa: algo avançado demais para um hospital. Tinha alguma coisa muito estranha nisso tudo. Era avançado demais. A imagem dos homens de preto lhe veio à mente imediatamente. Ah, como queria que Oliver estivesse ali.

– Bom, você vai fantasiada de Dra. Fabiana e tenta localizar Lucas. Eu vou seguindo você com a câmera do celular – Eric arrumou o celular no bolso do jaleco de modo que a câmera ficasse de fora e colocou o receptor de áudio bluetooth nos ouvido de Isabel. Era um plano tão bom como qualquer outro.

Isabel entrou pela porta da frente recepcionada pelo “boa noite” dos seguranças. Passou direto pela recepção e entrou num corredor longo e bem limpo. Ela parou na frente de uma das salas se exame que parecia estar vazia e entrou, fechando a porta atrás dela. O computador estava esperando por ela em cima da mesa. Seguindo as orientações de Eric procurou pelos pacientes admitidos hoje, com as características de Lucas. Não demorou quase nada para localizar a informação que queria, mas mais de uma vez precisou encostar o crachá numa placa leitora ao lado do monitor para destravar as telas. A informação do prontuário surgiu na tela. Lucas estava no sexto andar, quarto 6014.

Ela entrou no elevador e começou a subir. Mas enquanto estava subindo sentiu uma agonia estranha, como se algo estivesse errado. Por um minuto ela dobrou-se para frente e convulsionou. Quando abriu os olhos fitou-se horrorizada no espelho do elevador. Estava com a aparência de Dona Zulmira, a simpática dona da pensão que tinham se hospedado quando chegaram à Fortaleza. Mas ela não teve sequer tempo de gritar. A porta se abriu e dois seguranças, vestindo terno e gravata, entraram porta à dentro. Eles pareciam confusos. Esperavam encontrar alguma outra coisa que uma senhora negra, forte, baixinha e de meia idade, vestindo uma calça de lycra rosa berrante e uma camiseta da última turnê dos Gaviões do Forró. Eles nem esperaram as portas se fecharem e saíram, reclamando alguma coisa nos rádio-comunicadores.

Isabel desembarcou no sexto andar. Era uma unidade semi-intensiva de recuperação. Havia uma pequena recepção vazia e dois corredores que seguiam em direções opostas. Ela seguiu pelo corredor, assumindo de volta a aparência da médica.

– A magia – pensou ela em voz baixa, como se sussurrasse uma oração – ela me salvou.

Isabel cruzou com dois enfermeiros que a cumprimentaram com um respeitoso “boa noite”. Através da névoa ela viu suas formas verdadeiras: tinham cabeças vermelhas, carecas e cheias de rugas, com olhos negros e vazios em suas órbitas. Os dentes eram pontudos e seu hálito cheirava alguma coisa morta há muito tempo. Os dois estavam caricatos com as roupas brancas de enfermeiro, mas assim mesmo assustadores a julgar pelos cintos cobertos de armas que mais pareciam fragmentos enormes e afiados de metal.

Mais à diante o corredor virou à esquerda e ela desembocou noutra série de portas. Bem ali na frente ela viu dois lanceiros fazendo guarda. Ela parou fora do seu campo de visão. Sabia que enganar mortais e alguns demônios com a névoa era relativamente fácil, mas alguma coisa dizia que não seria tão simples enganar guerreiros treinados do Santuário. O que poderia fazer? Nas séries de TV que assistia as coisas pareciam se resolver naquele ponto.

– Tente uma magia de sono neles! – a voz de Nathália ecoou firme pelo fone de ouvido bluetooth. – Eles devem estar cansados da longa noite e deve ser o que mais querem agora.

Isabel vislumbrou o mundo por trás do mundo: o lugar onde os fios estavam. Ela começou a experimentar alguns deles e finalmente o encanto estava completo. O primeiro lanceiro da dupla encostou-se na parede e bocejou longamente. Ele foi deslizando, encostado na parede, até chegar ao chão, já dormindo. O segundo observou espantado e foi tomado pelo sono, mas não estava disposto a cair. De alguma forma ele estava ciente de que estava sendo atacado. Ele se esticou, se espreguiçou longamente e estendeu o braço para pegar o que parecia um rádio-comunicador no seu cinto.

A magia sutil havia falhado. Isabel em sua forma de menina saiu das sombras e gesticulou com força. Uma lâmpada explodiu cegando o jovem por um segundo. Fios de eletricidade saíram das paredes, como serpentes, dardejando choques elétricos de suas pontas desencapadas. O jovem lanceiro não foi páreo para a eletrocussão paralisante, sobrecarregando o corpo já cansado pelo sono. Ele caiu pesadamente no chão. Só neste momento Isabel percebeu quanto estava cansada. Manter toda aquela magia funcionando havia drenado suas forças.

– Você está bem, Isabel? - a voz de Nathália soou como um galo despertando num domingo de manhã.

– Sim, estou – mentiu a menina – só preciso recuperar o fôlego um pouco.

– Quando estiver com Lucas pegue o elevador direto para o subsolo 2. Você entendeu?

– Pode deixar – disse Isabel adiantando-se sobre os lanceiros caídos e abrindo a porta do quarto. Lá estava Lucas, enfaixado como uma múmia, recebendo vários tipos de soro via intravenosa. Com a orientação de Eric ela cuidadosamente arrastou os dois lanceiros para dentro e os amarrou com gaze e ataduras que achou numa mesa junto à cama de Lucas. Sem dificuldade ela conseguiu também uma cadeira de rodas. O plano era por Lucas na cadeira, encontrar os colegas no subsolo 2 e sair do hospital para encontrar Jade e Oliver.

Enquanto fazia os preparativos para levar o amigo, Isabel percebeu que Lucas estava acordado. Ele não disse uma palavra enquanto a menina o assetava na cadeira de rodas e colocava os soros num suporte. Isso porque ela tinha certeza que algumas daquelas queimaduras eram bem dolorosas. Mas ele não emitiu nenhum ruído. Quando terminou ele olhou para ela e com seriedade perguntou:

– Por que você está me ajudando? Eu nunca gostei de você, desde o começo. Se estivéssemos em lados opostos eu não sei se voltaria por você.

Isabel foi pega de surpresa. Sabia que o colega de grupo não confiava nela, assim como outros do grupo, justamente por experiências ruins com outros filhos de Hécate. Ela mesma recordava-se disso apenas muito ocasionalmente quando lhe era endereçada alguma palavra mais ríspida ou um olhar desconfiado. Ela parou para pensar. Por que ajudar Lucas? Claro, havia a questão da chave e da busca pelo pergaminho áureo e Lucas fazia parte da busca. Também havia a questão de não deixar ninguém para trás: um grupo unido e junto é mais poderoso. Mas a pergunta do menino a fez devanear por um minuto. Por quê?

Pena que a situação não deixou que Isabel buscasse a resposta. Pelo ponto bluetooth no seu ouvido Isabel ouviu Eric gritando. Ela tinha de sair dali imediatamente. A menina começou a empurrar o colega pelo corredor, subitamente tomada pelo cansaço do uso da magia. “A magia cobrará seu preço, irmãzinha”. A voz de Morgana ecoou pela sua cabeça enquanto ela se esforçava pelo corredor. Ela sabia que a sua magia não estava mais ativa. Qualquer um que a visse veria a sua forma verdadeira: uma menina empurrando um garoto enfaixado numa cadeira de rodas. Ela ouviu uma voz gritar atrás dela:

– Ei menina, onde pensa que está indo com esse paciente?

Isabel olhou para trás e viu o enfermeiro se aproximar a passos largos. A bocarra vermelha escancarada e cheia de dentes pontudos parecia bem mais assustadora agora que ele não dizia “boa noite”. Isabel apertou o passo, passando a correr pelo corredor, empurrando a cadeira como se estivesse numa corrida de gincana. O enfermeiro passou por um pequeno vaso de plantas quando foi agarrado por uma saraivada de vinhas espinhosas. Mas o monstro não se abateu e continuou a correr quase no mesmo ritmo, arrastando o vaso e a planta com vinhas e tudo pelo corredor. Isabel virou-se e fitou as vinhas por um instante. Num segundo as plantas petrificaram e depois viraram uma liga metálica. Ela se concentrou mais um pouco e continuou a gesticular até que o metal começou a esquentar bem rápido. Num instante o metal em ponto de brasa acabou por derrubar o enfermeiro. Ele se debateu mais um pouco e por fim explodiu uma nuvem de talco branco.

Isabel continuou pelo corredor, quase desfalecida. Se não tivesse a cadeira de rodas para se apoiar com certeza já teria caído em algum lugar devido ao cansaço. Suas pernas estavam duras e cheias de câimbras pelo esforço. Sua respiração estava irregular, entrecortada, curta. Por fim, ao entrar no elevador e pressionar o botão do subsolo II, ela deslizou pela parede metálica até sentar-se pesadamente no chão.

Tudo poderia dar errado. A qualquer momento um dos temidos homens de preto poderia interceptar o elevador. Ela não teria como resistir. Não tinha forças para tirar uma moeda da orelha de uma criança pequena, mesmo que sua vida dependesse disso. Longos, intermináveis instantes passaram até que a porta se abriu com o som agudo de uma sineta. Ela se esforçou para levantar e assumir uma posição de luta, mas tudo o que conseguiu foi cair para frente.

Eric a aparou com facilidade, tomando-a nos braços como fizera da primeira vez. Mal se deu conta de Lucas que já estava sendo amparado por Nathália. A poucos metros dali a ambulância do samu já estava à postos, portas abertas esperando para sair. Isabel foi atrás com Lucas e Nathália enquanto Eric dirigia. Se palavras foram ditas Isabel não as percebeu. Tudo o que via era um borrão disforme de sons e imagens passando rápido por ela.

Não sabe quanto tempo ficou assim, até sentir alguma coisa tocando nos seus lábios. Ela sentiu um gosto adocicado, forte. Lembrava morangos, mas com uma quantidade descomunal de açúcar. Quando ela engoliu a mistura pareceu descer queimando. Ela sentia o fogo queimar por dentro dela, se espalhando por suas veias a partir de suas entranhas até chegar à ponta dos dedos. O calor foi passando e deixando uma sensação de bem estar. Ela abriu os olhos e viu Nathália na frente dela, solavancando, segurando uma enorme seringa nas mãos cheia de um líquido grosso. Outro solavanco e Nathália foi jogada para o lado. Estavam dentro da ambulância e julgar pelo barulho do motor estavam muito mais rápido do que ele estava acostumado a rodar.

Eric costurava o trânsito como podia. Atrás dele dois carros cheios de agentes dos homens de preto se aproximavam velozmente.

– Vai com calma aí pé de penas! - berrou Nathália – Se eu não tivesse colocado a ambrosia numa seringa, estaria toda suja agora!

Isabel percebeu que não estava sendo jogada de um lado para outro porque estava firmemente amarrada com o cinto de segurança. A maca onde Lucas estava também estava bem atada, mas a julgar como as coisas balançavam na cabine cedo ou tarde ia se soltar.

Eric dirigia tão bem quanto qualquer piloto de provas, mas não parecia ser capaz de se livrar dos perseguidores. Depois de mais uma curva e de bater a cabeça contra um cilindro de oxigênio Nathália achou que tinha tido a sua última dose de corrida maluca pela noite. Com um soco bem dado ela abriu a escotilha de emergência no teto da ambulância e carregando um cilindro de oxigênio se apertou por ele.

Ela se ajoelhou no teto da ambulância, segurando o cilindro com uma das mãos. Depois, mirou o quão cuidadosamente pode e com um golpe de karatê estourou a válvula de pressão. O cilindro voou de suas mãos como um míssil na direção do primeiro carro. Mas o motorista era mais esperto ou apenas teve sorte. Deu uma guinada para a esquerda e o míssil de cilindro de oxigênio atingiu o asfalto, continuando a quicar por ele noite a dentro.

– Merda! – exclamou Nathália, fula de raiva. Logo depois ela teve outra idéia, ainda mais arriscada. – Ô cabeça de passarinho, diminui um pouco!

– O que? – berrou de volta Eric, incrédulo.

– Confia em mim, só desacelera um pouco e fica esperto quando eu voltar. Confie em mim Eric.

– Ok... Espera aí... Quando você voltar?

Eric mal teve tempo de proferir suas palavras. Ele sentiu uma pressão na ambulância como se um grande peso tivesse quicado nele. Um grande peso não. Ele ficou impressionado ao olhar pelo retrovisor e ver que Nathália tinha se jogado do carro, na direção no primeiro perseguidor. Enquanto estava no ar ela vestiu a armadura de Hades e caiu como um meteoro sobre o capô do carro preto. O impacto foi tão forte que a frente do carro afundou, com motor e tudo indo parar no asfalto! Aproveitando o mesmo movimento ela saltou sobre o outro carro, com o mesmo devastador efeito. Eric mal acreditou no que viu e quase esqueceu de parar a ambulância. Quando Nathália entrou ela sorriu.

– Ás vezes tudo o que você precisa para resolver os problemas é um pouco do meu jeitinho carinhoso.

Todos riram. E finalmente quando chegaram à casa de praia e estavam todos descendo da ambulância Isabel parou ao lado da maca de Lucas e disse a ele:

– Eu pensei muito na sua resposta. Eu fiz apenas porque era a coisa certa a ser feita e por que eu quis.

– Obrigado – respondeu o rapaz.

Eric achou que depois do que vira na estrada com Nathália estaria preparado para qualquer coisa. Mas nada o teria preparado para encontrar o que encontrou na sala de estar da casa de praia do tio de Oliver.