A chave

Eric não pode acreditar em seus olhos. Ele piscou mais uma vez, paralisado, na porta da casa. Ele olhou para Nathália, igualmente paralisada, e depois para Isabel que trazia Lucas na cadeira de rodas. A menina baixou os olhos, absolutamente constrangida pelo que estava vendo. Lucas levantou a cabeça enfaixada com alguma dificuldade e exclamou alguma coisa que morreu na sua garganta.

No meio da sala ampla, deitados sobre um ninho de travesseiros estavam Jade e Oliver dormindo, um nos braços do outro. Jade estava deitada com a cabeça repousada por cima do peito do rapaz, que subia e descia com a respiração profunda do sono solto. Os cabelos de Jade estavam bagunçados, como se ela tivesse se exercitado com eles soltos.

Tomado do choque Eric sacou o celular e tirou tantas fotos quanto conseguiu. Só quando estava bem perto de dar um close no rosto dos dois é que Nathália o puxou pela gola da camisa.

– Você não tem uma ambulância para dar sumiço não? – a frase era áspera e não dava espaço para desculpas, ou contestação – não podemos correr o risco dessa coisa ter um GPS que traga os caras de preto até aqui.

– Ouço e obedeço, ó poderosa esmagadora de carros! – disse Eric fazendo uma exagerada reverência, passando por Isabel e puxando-a pelo braço – Vamos embora princesa, temos uma ambulância para dar sumiço.

Isabel não se fez de rogada e pareceu aceitar de bom grado o passeio noturno. Ela não queria nem sequer imaginar a possibilidade dos dois amigos estarem sem roupas por baixo do cobertor. Estando sozinha com o casal, acompanhada apenas da respiração curta de Lucas, Nathália pigarreou uma primeira vez. Como os pombinhos fizeram nada para despertar ela pigarreou de novo, com mais intensidade. Apenas na terceira vez os dois amigos abriram os olhos sonolentos. Levou menos de um segundo para perceberem a situação que estavam. O salto de Jade puxando o lençol para si foi tão forte que jogo ou corpo de Oliver para cima, girando no ar como um pião de corda.

– Já está ficando cansativo ver você sem roupas, Jade. – disparou Lucas, superando a dor dos ferimentos, embora Jade não estivesse realmente nua. Ela vestia a parte de cima de um biquíni e um short jeans bem curto, desses usados para ficar em casa ou ir à piscina. Já Oliver estava sem camisa, mas com uma calça de moletom cinza. Provavelmente a coisa mais atlética que ele já vestiu na vida.

– Eu diria que vocês têm muito a explicar, depois que cuidarmos de Lucas – disse Nathália com aspereza reprovativa na voz. Lucas confirmou com a cabeça. Se tinha alguém que poderia colocá-lo de pé eram os já lendários dons de cura de Jade.

– Eu, eu não sei o que fazer – Jade respondeu frustrando a todos. – Balder é um deus guerreiro e benevolente, quase indestrutível, mas não tem os poderes de cura de Apolo. Eu não posso fazer mais por ele do que Nathália ou Oliver.

– Mas deve ter alguma coisa que podemos fazer sim. – Disse Oliver vestindo apressadamente uma blusa branca com um enorme X azul no seu centro. – Eu me curo mais rapidamente quando estou abaixo das estrelas, que é o reino da minha mãe. Jade se cura, ou se curava, sei lá, mais rápido em contato com o sol. Quem sabe se colocarmos Lucas em contato com o reino de sua mãe...

– Pode funcionar! – disse Nathália, finalmente animada – Deixa eu ver... Ele é filho de Deméter. A deusa da agricultura. Ela é quem nutre a terra com a sua vegetação verde.

– Tem um jardim grande lá fora. Podemos cavar uma pequena cova e colocar Lucas ali e ver o que acontece. O que você acha? – Jade olhou para Lucas esperando que ele concordasse com um plano que à primeira vista parecia tão absurdo.

– Não tenho nada a perder. – a voz de Lucas saiu como um lamento doloroso. Obviamente o jovem estava sentindo dores que a maioria das pessoas jamais sonhou. – E se eu morrer, que seja entre amigos e em contato com a terra, que eu tanto amo.

Os preparativos foram feitos. A ambulância já estava a pelo menos 20 quilômetros da casa de praia, escondida no pátio de uma casa para alugar. Eric e Isabel davam os últimos retoques para terminar de limpar todos os resíduos de impressões digitais: uma mistura de vinagre e óleo para bebê, comprados num mercado 24 horas.

– Eu fiquei muito impressionado com você. – disse Eric borrifando o produto no câmbio do carro – quer dizer, mesmo com todos aqueles poderes você foi muito corajosa entrando no hospital sozinha. Aquele seu plano foi absolutamente brilhante.

Isabel não soube o que responder. Sentiu o rosto quente e percebeu estar corando. Era a primeira vez que os amigos a elogiavam daquela forma. Era a primeira vez que ela não era apenas um peso a ser carregado por aí. Ela sorriu de volta e dessa vez foi a vez de Eric enrubescer. Ao terminarem de limpar o carro e verificar que não havia nenhum sistema de GPS começacarm a voltar para a casa de praia.

– Eu acho que assim está bom. – disse Oliver limpando o suor da cara. Ele e Nathália (bem, mais Nathália do que ele) tinham passado os últimos quarenta minutos cavando aquela pequena cova. Trinta centímetros de profundidade e um pouco mais larga e comprida que Lucas.

Colocaram o amigo na cova tirando as ataduras com cuidado. Jade tratava de colocar uma emulsão de ambrosia para aliviar a dor, mas era claro que as queimaduras eram terríveis. Qualquer outra pessoa já teria desmaiado, mas Lucas parecia mais firme do que nunca. A terra foi colocada sobre ele, deixando apenas parte do seu rosto de fora.

– E agora? – Jade perguntou desconfortavelmente.

– Esperamos. – respondeu secamente Nathália, sentando-se na grama suja ao lado do colega.

– Vocês poderiam começar explicando porque estavam agarradinhos. – a voz de Lucas era um fiapo solto ao vento, mas mesmo assim Oliver pode sentir o sarcasmo em sua voz. Cedo ou tarde ele teria de lidar com a zoação do grupo.

– Nós não estávamos... – começou a explicar Oliver, quase gaguejando.

– O que fazemos juntos, em nossa vida particular, é problema nosso. Estamos em missão, é verdade. Somos um grupo, sim. Mas a vida é nossa. Fazemos aquilo que queremos. Não é isso que é ser livre? – Jade respondeu com firmeza. Uma firmeza desafiadora que Nathália não conhecia. Ela olhou para a filha de Ares e sustentou o olhar, como tantas vezes fizera antes com o seu jeitinho impertinente. Mas dessa vez era diferente. Ela estava mais madura e não dava brechas para nenhum “mas”.

Entretanto, bem dentro de si jade não tinha a menor ideia do motivo de acordar deitada no peito de Oliver. A última coisa que ela se lembra é de estar sentada com ele no ninho de almofadas e depois sentir um súbito cansaço. Mas fora isso, mais nada.

– Como é que vamos voltar? O nosso meio de transporte era a ambulância, não era? – a pergunta de Isabel fez com que Eric parasse a caminhada. Estavam andando pelo caminho de volta, curtindo as últimas horas da madrugada. Eric gostava de fazer isso às vezes, mas ao que parece Isabel não era tão afeita aos passeios noturnos. O garoto não poderia censurá-la. Ela já tinha feito muito por hoje.

O rapaz se afastou dela um pouco e tirou a blusa. Ele se concentrou um pouco e suas asas surgiram nas suas costas. Majestosas asas, como se fosse as de uma ave de rapina, surgiam to topo de seus omoplatas. Presentes de Hécate. Isabel aproximou-se cautelosa e tocou as asas do menino, sentindo a maciez delicada e firme de suas penugens. As asas eram tão quentes e perfumadas quanto os braços de Eric, como da primeira vez que ele a colocou no colo e correu com ela sobre a água do lago. Silenciosamente e com o seu melhor sorriso Eric ofereceu seu colo novamente. Temerosa a menina deixou-se levar por seus braços. As asas flexionaram e num segundo eles estavam alto no céu noturno, voando em direção à casa de praia.

– Como está indo aí? – Era a sétima vez que Nathália perguntava para Lucas.

– Eu me sinto bem melhor, acredite – respondeu o menino – não sinto mais nenhuma dor e acho que mais alguns minutos aqui e vou estar pronto para outra. Não que eu realmente queira levar outra chamejada de fogo grego. Obrigado pela sua ideia Oliver. Provavelmente salvou a minha vida. O pessoal do hospital não tinha muita ideia de como me tratar. Parecia que eles estavam mais interessados em colher amostras minhas do que qualquer outra coisa. Entre as dores excruciantes que senti, me senti também um porquinho da índia. Mas foi aquele agente da polícia federal que me deixou mais cabreiro.

– Agente? – perguntou Oliver – Como é que ele era?

– Parecia um figurante daquele filme Homens de Preto, só que com o terno mais vagabundo que eu já vi na vida. Sabe desses comprados em liquidação? Então. Ele também usava óculos escuros o tempo todo. Ele parecia estar coordenando a operação toda. Os lanceiros obedeciam as ordens dele. Eu não entendi muito bem porque fiquei meio dopado.

Não demorou muito Isabel e Eric chegaram. O pouso deles no meio do jardim foi espetacular. Com as asas abertas Eric parecia mesmo arcanjo ou uma versão adolescente do cupido, mas sem os cabelos encaracoladinhos e devidamente vestido.

Lucas ia ficar cozinhando na terra por mais alguns minutos quando Jade trouxe para Isabel o pacote que tinham deixado para ela. Ela olhou o esforço que Jade fazia para carregar o pacote e estranhou quando o pegou nas mãos: não pesava quase nada.

Com todos em volta Isabel pode abrir o pacote, sob os protestos de Lucas que não estava vendo nada. Dentro do pacote uma pequena caixa de charutos cubanos – bem velha por sinal – e encerrado dentro dela um velho mapa do Brasil, uma correntinha de ouro e um cristal na ponta.

– O que eu devo fazer com isso? – disse Isabel confusa segurando os dois itens nas mãos.

– Eu vi isso num anime uma vez. Coloca o mapa no chão. Agora segura o cordão de ouro pela ponta e se concentra – Oliver parecia extremamente confiante no método que tinha visto no anime.

– Concentrar? Em que? - perguntou Isabel ainda mais confusa.

– Que tal em Zeus? – sugeriu Nathália que se esforçava para manter Lucas não chão.

– Sai de cima Nathália... tá coçando aqui!

A menina tentou concentrar-se em Zeus, mas nada aconteceu. Vários pedidos foram feitos. “Chave”, “prisão”, “pergaminho”... e nenhum resultado.

– Por que não tentamos rever o que diz a profecia? – experimentou Eric depois de ter sido confrontado com o novo olhar mortal de Jade sobre o assunto “A vida é nossa. Fazemos aquilo que queremos”.

– Não acho que vocês vão ter tempo de como aprender a usar o pêndulo para achar a próxima pista. A vida de vocês, assim como essa missão idiota acaba aqui.

Os meninos se viraram. Da sombra emergiu uma figura magra. Era pálido como o professor Roberto, mas a sua magreza lhe garantia uma presença ainda m ais assustadora e desesperadora. Seus cabelos eram longos, lisos, cortados à moda “emocore”, caídos sobre o olho esquerdo. Os olhos eram fundos, com olheiras de sono que pareciam pintadas com tinta. Ele usava uma roupa de couro, que parecia ter saído de um encontro violento e explosivo entre um motoqueiro, uma estriper heavy metal e a sessão de roupas de fetiche feitas de couro de uma sex-shop. Suas botas eram cobertas com dezenas de tachinhas, muitas delas manchadas de vermelho intenso e os saltos eram no estilo plataforma, dando ainda mais altura ao rapaz.

– Se me derem a chave, o pêndulo e o mapa eu prometo que a morte de vocês será rápida. Não indolor, mas rápida.