Salvando Jade.

Era a escuridão mais forte que Jade já havia presenciado. Nem com os olhos vendados e no escuro ela tinha visto nada assim. Era denso, escuro como o breu, como se tivesse mergulhado numa piscina de nanquim preto. Era abafado. Mesmo o som não se locomovia bem dentro daquela estranha matéria negra. Opressora. Fria, distante. Densa. Era difícil até de respirar. Então ela percebeu que não era apenas a escuridão. Era a ausência de luz, o vazio que devorava o mundo, o nada absoluto, sem qualquer forma, substância ou cor.

Ela tocou o pulso esquerdo e encontrou um relógio digital que tinha sido presente de Eric dias atrás. O relógio tinha uma potente lanterna embutida e muitas outras funções, as quais Jade desconhecia sumariamente. Ela apertou o botão e nada da luz sair. Estaria o relógio quebrado? Ela buscou então no seu bolso um isqueiro zippo. Acendeu mas não viu qualquer luz. Mas sentia o calor da chama junto à sua mão. Um frio percorreu sua espinha naquele instante: estaria cega?

Por fim ela viu um lampejo de luz, como se fosse um vaga-lume estático à distância. Era um brilho alaranjado, discreto, como a chama de uma vela vista de muito longe. O brilho foi aumentando de intensidade e mudando de cor. Foi ficando cada vez mais amarelo até que ficou num branco brilhante. Estranhamente nenhuma sombra se projetava dele. Depois disso ele mudou de novo, ficando tão forte que Jade teve de desviar o olhar. A esfera de luz foi diminuindo de tamanho até tomar a forma de uma enorme cabeleira loura. Então o mundo se iluminou de novo.

Estavam numa plataforma de pedra, como se fosse uma antiga arena dos tempos gregos. Guardava uma semelhança com a arena do santuário, mas o piso era de pedra ardósia verde e rachado como se já tivesse sido muito bem usado ao longo dos anos. Não havia paredes em volta, a não ser uma torre de um branco virginal, ladeada por uma escada que lha dava voltas e mais voltas até se perder de vista, lá no alto. Para além da arena havia apenas a escuridão de novo, opressora. Em volta começou a ver os amigos, como se cada um fosse sendo desvelado um por um de algum encantamento de invisibilidade.

Na frente da escada, ostentando a sua forma natural estava Apolo. Quase 4,5 metros de altura, uma pele branca brilhante, e um tipo físico tão perfeito que faria o Davi de Michelângelo parecer um franguinho de academia. Usava a toga grega clássica, com um cinto de ouro puro. A cabeça perfeita era adornada por uma coroa de louros de ouro também e os cabelos, tão loiros como o trigo cintilavam agitados como se fossem chamas vivas. Os olhos azuis eram poços de pura anil celeste.

– Você! – ele apontou para Jade com o dedo acusador em riste – você me traiu. Desobedeceu as ordens de seu pai e venceu este tolo desafio. Você deveria ter me obedecido. Você era a minha favorita, a minha sucessora nesta era. Você viu o mundo que acabou de destruir? Um mundo perfeito onde os deuses superiores e seus filhos reinavam sobre a ralé – ele não pode deixar de olhar com desaprovação para Isabel que se levantava com dificuldade, sendo amparada por Eric – Bastava que você falhasse! Zeus ficaria preso e eu seria o novo imperador do Olimpo. Um sol cuja luz brilharia sobre o mundo, perpetuamente.

– Cara, eu não conheço muitos deuses... mas a maioria que eu são todos piradinhos da cachola. – a voz de Eric soou terrivelmente acusadora. Apolo olhou para ele, punhos cerrados, deixando escapar pequenas labaredas de fogo por suas ventas.

Por fim o deus olhou para Jade. Do alto de sua fúria ele voltou a apontar o dedo para a menina e disse com a voz carregada de fúria e rancor: “Eu a deserdo!”

Jade sentiu um choque terrível convulsionar o seu corpo. Uma dor como nunca tinha sentido em vida. Ela caiu no chão, contorcendo-se em pura agonia. Algo estava sendo arrancado da sua alma. Algo que fazia de Jade ser Jade. Parte de sua essência estava sendo rasgada, extirpada de seu corpo. Ela gritou enquanto os outros olhavam paralisados para a cena, assustados ou atônitos demais para se moverem. Por fim ela silenciou e ficou parada no chão. Oliver correu a seu encontro, assim como os outros. Ele a tomou em seus braços...

– Os cabelos dela... Estão pretos. – Eric mal terminou a frase, voltando-se para Apolo, crispando os punhos de ódio. Instintivamente ele sabia o que Apolo tinha feito. Ele tinha arrancado a centelha divina de Jade, parte daquilo que fazia dela uma semideusa. Era uma violação pior que qualquer outra que ela pudesse sofrer. Apolo havia violado a sua alma.

– Esse é o castigo que uma traidora merece. – a voz de Apolo soou soberana e cruel, como um garoto que acabara de arrancar as asas de uma linda borboleta apenas para impedi-la de sentir o sabor do vento. – Agora vocês... podem fazer como ela e me desafiar e morrer aqui ou podem se render e deixar essa busca tola para lá. Eu aind atenho lugar no meu mundo perfeito para alguns de vocês.

– Senhor Apolo! – Lucas gritou a pelos pulmões correndo na direção do deus e se jogando a seus pés – senhor Apolo, ouvi minha súplica!

O sangue de Nathália ferveu ao ver o amigo prostrado daquela forma como um covarde. A sua boca se abriu para falar o pior dos impropérios que conhecia, mas algo a fez calar. Algo que vira na mão de Lucas. Ela sorriu discretamente e gesticulou para que os outros ficassem quietos.

– Fale verme... – Apolo respondeu, baixando a cabeça em direção ao jovem.

– Mais perto senhor... suplicou Lucas. – sei que não sou digno de vislumbrar sua face divina, mas deixa que eu fale perto de ti.

Apolo envaideceu pelos elogios de Lucas. Mal sabia ele que os humanos tinham um nome para aquilo: puxa-saquismo. E os humanos espertos sabem que puxa-sacos também podem ser facilmente puxa-tapetes. O deus inclinou-se perto do menino, diminuindo de tamanho até ter pouco mais de 2 metros de altura. Lucas olhou para o deus, os olhos cheios de lágrimas e então gritou:

– Você não vai nos deter! – dizendo isso ele soprou o que parecia ser um punhado de pó fino na cara de Apolo. – eu já fui caçado por mortos-vivos, já roubei um carro, e já passei três das dormindo no mesmo lugar que o Eric. Ninguém merece isso. Se eu passei por tudo isso, tem que valer à pena!

O deus se contorceu ao receber a poeira na cara, a expressão passando de susto para ódio em questão de segundos. O fino pó verde colou na cara de Apolo e quase que instantaneamente cresceu, revelando muitas vinhas de espinheiras, cactos e várias variedades de urtiga. O deus do sol deu dois passos para trás, acossado pelo incômodo que as plantas lhe causavam no rosto. Incômodo que logo transformou-se em dor.

– É isso aí menino do dedo-verde! – Eric gritou em exaltação – ninguém merece dormir com o Eric... hei!

– Apolo pode ser um deus, mas este ainda é o meu templo – bradou o cavaleiro templário filho de Ares. – Aqui a minha vontade ainda é a soberana. Não passei os últimos mil anos aguardando e protegendo o segredo da chave para ser detido em minha missão PR qualquer um. Portanto eu proclamo: se vocês, semideuses, subirem ao alto da torre o desafio estará completo e vocês terão a chave!

O brilho de Apolo suplantou finalmente a coceira de seu rosto. Ainda havia algumas manchas vermelhas nas suas bochechas e seu olho esquerdo estava arroxeado, como se tivesse levado um belo murro ali. A sua expressão estava ainda mais embrutecida, como uma criança birrenta que tinha sido contrariada. As bochechas estavam ainda mais inchadas, sabe-se lá pela erva daninha, ou por que ele estava bufando de raiva.

Nathália pôs Jade nas costas e começou a correr na direção da escada. Apolo esticou o braço na direção delas, fazendo surgir na sua frente um arco feito de pura luz. O arco flutuava a poucos centímetros da sua mão de repente retesou, preparando a mortal flecha para o disparo. Entretanto ele gritou de susto, disparando o arco a esmo. Ele recuou a mão machucada, virou e viu Oliver, espada em punho, apontando para ele.

– Nem pense nisso cabeça de vela de sete dias! A próxima rajada vai ser na sua cara.

– O filho de Astréia. Você é famoso no Olimpo. Você é o menino que ergueu a mão contra Zeus. Mesmo que consiga libertá-lo o seu crime não será esquecido. Você irá apodrecer no Tártaro pela sua insolência. Não existe ninguém no Olimpo que não queira sua cabeça.

Oliver ponderou um pouco. Ele sabia que aquilo era mentira, que sua mãe estaria o seu lado não importa o que houvesse e que o pai de Eric também estaria com ele. Já eram dois. Não sabia do resto. Mas a distração foi quase fatal. Apolo disparou um raio na sua direção, fulminando o espaço que o menino se encontrava. Instintivamente Oliver agradeceu ao amigo por mais esse salvamento.

– Valeu cara!

– Que é isso irmão. Você tem mesmo o dom. Esse lance de filho de Astréia deve ter no pacote arrumar briga com todo mundo e mais metade “golden plus extra”. Não basta arrumar briga com Zeus, tem que ser com Apolo também? – então ele sussurrou para Oliver – preciso que você proteja Isabel e Lucas na subida. Juro que acompanho vocês em seguida.

Oliver franziu o cenho. Tinha aprendido a confiar no amigo, mas sabia que tinha algo errado ali. Ele acenou com a cabeça por um instante e correu na direção de Lucas e Isabel.

As chamas no alto da cabeça de Apolo crepitavam com ainda mais intensidade. Ele fez ressurgir um arco dourado em suas mãos e retesou sua corda mesmo vazia. Uma flecha dourada surgiu no vão do arco e ele mirou na direção de Oliver que já ajudava os amigos para a subida, protegendo-lhes a retaguarda. A flecha saiu silenciosa e veloz, como um raio de luz que corta a escuridão de um quarto escuro logo no começo de uma manhã. O disparo foi incrível, mas apenas para morrer num pesado escudo de ferro. O velho cavaleiro havia se adiantado e protegido os garotos na subida.

– Vá em frente filho das estrelas. Essa luta também é minha. – O cavaleiro parecia estranhamente satisfeito.

Oliver assentiu e começou a subida.

– Sabe Apolo, antes de me converter e de ser um cavaleiro templário eu fui criado pela antiga religião dos Vikings. Lá os deuses antigos têm outros nomes. Lá você é Balder, o senhor da Luz. Mas todos os deuses são guerreiros. Até mesmo Zeus/Odin têm um aspecto diferente do que conhecemos. Durante muito tempo eu achei que estava amaldiçoado pelo meu pai para cuidar deste templo, porque eu jamais morreria em batalha e não teria o descanso garantido nos campos Elíseos. Mas se eu enfrentar você eu saio ganhando duas vezes: se você me matar eu vou para o paraíso ao lado dos meus... e se você não me matar, atrasarei você o bastante para que os meninos cheguem ao topo desta torre. E como você sabe, basta que um deles chegue lá. – então ele ergueu a espada, tomado por um vigor que não conhecia faziam séculos – Venha deus do sol, venha enfrentar o seu destino!