Please don’t take my sunshine away

Jade correu pelos corredores da escola seguindo as placas que indicavam o caminho a seguir. Passou por vários saguões de entrada cercados por intermináveis fileiras de armários. Então achou a placa que procurava: laboratório de informática.

Ficava na ala “C” da escola. Era bem próximo da biblioteca e já dava para notar a mudança de ambiente a medida que ela se aproximava. saia de cena nas paredes os cartazes sobre jogos e atividades esportivas e começava a parecer cartazes mais “nerds”: feiras de ciência, mostras de cultura, passeios literários, idas a cinemas e museus. Ela parou na frente de um dos pôsteres de atividades onde a foto dela aparecia de jaleco, ao lado de outros alunos e um professor que a fez lembrar imediatamente do avô materno. Ela era a única que tinha o rosto pichado. Haviam lhe colocado um bigodinho enrolado à moda francesa e um monóculo num dos olhos. O sorriso branco fora maculado com um ponto preto, dando a entender que lhe faltava um dos dentes. Os dizeres do cartaz diziam: venha conhecer projeto hélios: energia limpa e saudável para mudar a sua vida.

Ela entrou no laboratório. Era um ambiente limpo e ascético, recheado com dezenas de mesas onde repousavam computadores de última geração. Telas de led, algumas sensíveis ao toque, ficavam disposta à frente de teclados ergométricos e mouses óticos. Boa parte das mesas estava ocupada por pessoas de pele amorenada e cabelos escuros. Jade varreu a sala com os olhos e encontrou quem ela buscava.

Julia “Bêpê” Bastos. Filha de Atenas. Lutadora mediana e a melhor hacker de computador que ela conhecia. Aliás, Jade sabia tanto sobre computador quanto um esquimó sabe sobre a vida no deserto. Não que fosse analfabeta digital, mas simplesmente preferia atividades mais voltadas ao mundo lá fora. Bêpê estava um pouco mais nerd do que ela se lembrava: óculos fundo de garrafa, cabelo amarrado num rabo de cavalo, uma camiseta com uma cabine telefônica inglês com os dizeres “do you tardis?” jade chegou nela o mais sorrateiro que conseguiu.

O susto de Bêpê ao ver a filha de Apolo ao seu lado foi tanto que ela saltou da cadeira. Ela estava visivelmente assustada, como se Jade fosse algum tipo de assombração ou demônio das profundezas. Deve ser assim que a Nathália se sente, pensou ela ao ver o medo no rosto da menina.

– O que você quer de mim Jade? Eu já disse a seus meninos que eu vou pagar, juro. – Ela estava realmente trêmula e assustada. Jade não sabia como poderia ter causado tanto medo em alguém. Era durona, verdade, mas sempre foi mais amada e admirada pelos colegas campistas. Aquilo era como se fosse uma versão distorcida sua. Uma espécie de lado “escura” do sol.

Mesmo assim jade percebeu que seria burrice tentar acalmar a garota. Quem sabe se ela jogasse o jogo deste mundo de desafio ela não poderia vencer?

– Olha só quatro olhos... me faz um favor e esqueço a tua dívida desse mês. O que você me diz? Um mês inteiro sem nenhum dos meus meninos encostando em você ou nas suas preciosas miniaturas. – Jade sabia que a verdadeira Bêpê era aficionada por miniaturas, que ela insistia em chamar de dioramas. Esperava que tivesse pressionado um ponto fraco da menina.

– Ok. O que você quiser. – disse Bêpê se recompondo e colocando as mãos no teclado novamente.

– Pelo seu computador você deve ser capaz de localizar veículos né? o que você precisa para fazer isso?

Bêpê ficou imóvel, incrédula do pedido que tinha recebido. Jade não conseguiu ler as intenções no rosto da filha de Atenas, mas sabia que a Jade desse mundo de fantasia jamais pediria algo assim.

– Eu preciso de alguma coisa para começar. Nome do motorista, licença da placa, número do chassi, placa...

– Um camaro conversível, vermelho, com a placa “Helios – 1” – disse jade sem titubear.

Bepê começou a fazer a sua mágica. Se Oliver era bom com aquele tablet-torradeira dele então Bêpê num teclado era muito melhor. Não demorou muito para entrar no sistema de câmeras da polícia e iniciar um sistema de busca por imagem para os carros naquelas condições. Não demorou muito, ela encontrou o carro que Jade pedira. Ela virou o monitor para a menina enquanto anotava o endereço num pedaço de papel.

Tudo que Jade via era um pedaço de estacionamento, com vários carros estacionados na frente do que pareciam aqueles motéis de beira de estrada, como os da série de TV “Bates Motel”. O carro estava lá, na frente de um dos quartos.

– Acabou de chegar. Mesmo. Se registrou tem dez minutos, de acordo com o gasto do cartão de crédito, vai ficar umas quatro horas lá. Motel Sunshine, na Overwatch drive. Engraçado... esse cartão está no nome do seu...

– Deixa, eu já tenho o que queria. Valeu - disse Jade arrancando o papel das mãos de Bêpê e saindo correndo pelo corredor. Tinha mais uma pessoa para encontrar.

– Mas o que é que ela está fazendo? – disparou Eric se ajustando o mais confortável possível na cadeira de plástico enquanto assistia as cenas no telão sobrenatural. Mais atrás dele Nathália e Isabel terminavam de dar os primeiros socorros no guardião do templo, sob os não tão atentos olhares de Oliver. As feridas nas mãos do cavaleiro eram familiares de alguma forma, mas ele não sabia dizer onde as vira antes. Mas ele já tinha visto mãos queimadas daquele jeito. Mas onde? Lucas por sua vez continuava imóvel, em completo transe. Algumas videiras cresceram pelo seu colo.

– Pelo visto ela tem um plano. – disse Oliver casualmente, voltando a pegar o seu lugar na platéia. – Só queria saber do que se trata. – Embora Oliver não comentasse, ele estava muito desconcertado com o desafio de Jade. Justamente porque ele já tinha sonhado com algo assim. – Como está o templário?

– Ele vai viver. Foi um golpe forte e as mãos foram a parte mais afetada. Provavelmente não vai poder segurar uma espada por um bom tempo. – Nathália parecia pouco à vontade com o papel auto-imposto de enfermeira.

Jade virou pelos corredores sentindo o coração apertar. Enganar a Bêpê falsa daquele modo fora uma tarefa razoavelmente fácil. Mas o que ia fazer agora exigia muito mais de si mesma. Mais que sempre sonhou. Ela viu Oliver sentando ao lado de Eric na quadra de basquete aproveitando para cabular alguma aula. Ela fez sinal para que o rapaz fosse ao seu encontro.

– Oi amor. – Oliver a envolveu rapidamente num caloroso abraço. As pernas de Jade tremeram, mas ela se manteve firme.

– Oi Oliver! – disse ela dando um longo beijo na boca do rapaz. As imagens começaram a envolvê-la de novo, como no episódio da guitarra autografada pelo Bon Jovi. Ela lutou bravamente para separar o que era verdade da fantasia. Ela viu passar por seus olhos quando os dois se conheceram, ainda no parquinho da escola primária, do primeiro encontro na festa de boas vindas aos alunos e do primeiro beijo, roubado, numa sessão de cinema de um dos filmes da série Harry Potter. Ela sentiu as lágrimas brotarem nos olhos. Como seria bom viver naquele mundo de fantasia. Tão bom... bom demais para ser verdade

O beijo acabou e Oliver a olhava inquisidor. “Alguma coisa errada?” ele perguntou ao perceber as lágrimas formadas nos olhos da namorada.

– Não... nada. Ainda. Mas preciso de um favor seu. Mas você tem de fazer isso sem perguntar nada. Posso contar com você? – Jade olhou para o menino num misto de esperança e certeza.

– Claro. Pode dizer do que se trata.

– Preciso que você me leve nesse endereço. Agora. Me deixe lá e vá embora o mais rápido possível.

Oliver não entendeu nada ao ver o endereço, mas para ele promessa era dívida.

– Que beijão, hein cara! Poxa, esse filhos de Astréia não perdem tempo mesmo! – Eric dançava em torno de Oliver, na mais nítida das missões: espezinhar do colega por conta das cenas da TV do desafio. E para desespero de Oliver, Lucas saiu em auxílio de Eric...

– É... mas quem teve a iniciativa foi a Jade. Que tigresa. Não sabia que as filhas de Apolo eram tão atiradas. Eu achava que apenas as periguetes da casa de Afrodite eram tão decididas a um rumo de ação.

Oliver já estava vermelho como um pimentão. Ele nunca tivera uma namorada, nem mesmo uma ficante. Beijo era um assunto que ele nunca pensava. Sempre tinha alguma coisa mais urgente n sua cabeça, como por exemplo, não ser devorado por gigantes e demônios com cabeças caninas.

Quando ele finalmente focou sua atenção para a tela Jade estava se despedindo do Oliver na tela. Na frente do motel, poucos metros da sua entrada. Ele viu os dois se beijarem de novo, com ainda mais entusiasmo. Alguma coisa dentro dele torceu e ele sentiu algo que não sabia explicar. Estava sentindo inveja? Ou ciúmes? O sentimento dissipou quando Jade parou na frente de um dos quartos.

Ela respirava devagar como se tivesse ensaiado o que ia fazer várias vezes. Esticou a mão em direção à maçaneta, ignorando o aviso de “não perturbe” afixado na porta. Então ela hesitou. Se estivesse certa derrotaria o desafio. Mas se estivesse errada? Ela pensou em Oliver, na mãe, na casa, na escola... suspirou. Depois pensou em Bêpê e Isabel. Não, não poderia viver daquela forma. Não era ela. Nunca seria. Pelo menos ela queria acreditar que nunca seria assim.

Do outro lado da porta ela ouviu risadinhas de mulher. Pelo menos duas mulheres rindo. Risadas soltas, gostosas, dessas que se dá apenas em locais particulares, fechados, íntimos. Ela tirou a mão da porta, afastou-se um passo e chutou a porta tão forte quando o seu sangue de semideus permitiu. A porta abriu-se num baque escandaloso, ecoando pelo quarto mal iluminado. Jade já tinha visto de tudo nessa vida, desde demônios, gigantes e até mesmo esqueletos animados. Mas nada no santuário a havia preparado para isso. Montado no meio do quarto estava uma cadeira de barbeiro e sentado nela, com bobs no cabelo e unhas dos pés e das mãos sendo tratadas estava o seu pai. Apolo.

– Vocês duas, fora! – a voz de Jade foi projetada com uma autoridade que até então ela desconhecia. As duas ninfas se entreolharam assustadas e saíram. Uma delas arriscou da porta um tímido “Vê se liga para gente, ok?” saindo logo em seguida. – Temos que conversar, pai.

Apolo ficou atônito por uns instantes. Mas logo depois jogou o sorriso de sempre no rosto e se iluminou com uma aura de charme que faria o Cauã Reymond parecer um pedaço de lixo.

– Meu solzinho. O que você está fazendo aqui? Não deveria estar na escola? – o charme dele era lindo e aterrador ao mesmo tempo. Mas algo dentro de Jade havia se quebrado. O charme dele não importava mais. Ela conseguia ver, talvez pela primeira vez, a verdadeira face de Apolo. Não a sua face física, mas ela conseguia ver o seu caráter.

– O que eu estou fazendo aqui? O que você está fazendo aqui pai? Esse desafio era meu. – Jade soava desafiadora. Na verdade havia algo a mais na sua voz. Uma provocação talvez?

– Ora, eu vim ajudá-la. – Apolo parecia apaziguador.

– Eu não preciso da sua ajuda. – desafio Jade mais uma vez, colocando o pé para dentro do quarto. O poderoso Apolo se levantou da cadeira, vestindo suas roupas que estavam em cima da cama.

– Ah, você precisa sim. Não para vencer esse desafio patético, mas para enxergar. Veja minha filha, com Zeus exilado por sua própria vontade alguém precisa assumir o Olimpo. E por que não eu? Eu sou bem mais capacitado do que todos os outros. Quem vai assumir o Olimpo? Ares? Aquele louco ao sabe a diferença de uma espada para um rolo de papel higiênico, mesmo que precise se limpar! Atena? Aquela quatro olhos chatérrima não teria condições de governar. Afrodite? Show do One Direction para todos? Não me faça rir! O que resta? deixar tudo nas mãos daquela vaca da Hera? Ou quem sabe poderíamos chamar Hades para assumir tudo. É óbvio que eu, que sou o deus-rol, o Rei-sol devo governar! – Havia claramente loucura nas palavras de Apolo. Como se ele estivesse embriagado, mas por poder. – Por isso eu assumi esse desafio tolo. Se você “perder” a chave do pergaminho estará perdida e eu poderei reinar. E você vai reinar ao meu lado. O que me diz? Um mundo perfeito, para todos.

– Você chama aquilo de perfeito? Que Jade era aquela que eu sou ou era nesse mundo? Nada disso. As pessoas tinham medo de mim!- protestou Jade.

– As pessoas inferiores devem mesmo temer os deuses e seus filhos. Você faz parte da realeza. Não é uma plebéia qualquer. – Apolo gesticulou e Isabel apareceu ao seu lado, ajoelhada. Vestia-se como os escravos da Grécia antiga. Apolo pisou nela, usando-a como tapete. – É isso que somos! Conquistadores! Nada escapa ao brilho do sol.

– Eu não sou isso! – a visão da amiga sendo pisoteada encheu Jade de ódio, mesmo sabendo que era apenas uma ilusão. Tinha aprendido a conviver e a confiar em Isabel nos dias que se passara.

– Você tem que ver com meus olhos. Veja aqui... – Apolo saiu da frente e Jade pode ver um enorme espelho coberto por um majestoso pano vermelho e dourado. – Esse é o espelho de Apolo.

– O que eu vou ver se olhar para ele? – perguntou Jade desconfiada, sentindo um estranho peso surgir no bolso de trás da sua calça, tomando o formato de uma pequena adaga.

– O espelho de Apolo mostra as coisas que foram, as coisas que são e as coisas que podem ser. Ele mostra tudo. – Apolo se afastou e descobriu o espelho sem dar tempo de Jade desviar o olhar. Ela foi envolvida pelo brilho do espelho e começou a ver o futuro. Um mundo devastado pela guerra, consumido pela ganância. No alto de um palácio de ouro, correndo pelos céus, ela governava os mortais como a mão direita de Apolo, um aperto lindo, apaixonante e desesperador. Qualquer um que não a amasse deveria ser destruído. Jade não conseguiu evitar quando as lágrimas rolaram pelo seu rosto.

– Eu sei o que você viu, meu solzinho. Por que é o futuro que vai acontecer se você entregar para mim essa adaga no seu bolso e desistir desse desafio idiota – Apolo olhou para o lado e começou a falar para a parede vazia – sei que pode me ouvir filha da dama da magia. Suas interrupções vão lhe custar uma eternidade no tártaro. - Do outro lado da tela mágica Isabel temeu pela sua vida.

Jade estava atônita. Ela olhava para o espelho e a via mais velha, bela, ao lado de Oliver, uma dúzia de pequenos filhos correndo em volta deles num mundo iluminado e perfeito. Ela retirou a adaga do bolso. Uma pequena adaga de ferro, sem maiores detalhes. Toda de ferro, do cabo à ponta e pesada, apesar do tamanho diminuto. El passou o dedo nos limites de sua lâmina cega – uma adaga feita para esfaquear, perfurar. O toque na ponta fez surgir uma gota de sangue no seu indicador. A menina levou o dedo à boca e sugou o sangue. O gosto metálico encheu su boca, trazendo lembranças da sua infância. De tudo o que passou por conta de ser filha de Apolo. De repente tudo ficou claro na cabeça dela.

– Essa adaga pai? É tudo que você precisa? Pois pode pegar! – disse ela arremetendo a adaga com toda força contra o espelho. O som do vidro se partindo encheu a sala e cobriu tudo com um brilho fragmentado como se milhões de vidas e realidades se espelhassem cada pequeno caquinho. O brilho cessou e restou apenas o escuro silencioso.