Papo paternal

Oliver desceu do ônibus na Avenida João Pessoa. Não tinha certeza da altura, mas pelo fone sem fio frank dizia para fazer isso. Ele havia se separados dos amigos com a desculpa conveniente de investigar sinais pela cidade que levassem até a próxima pista da profecia. “Sozinhos podemos cobrir um terreno maior em menos tempo”. Por um lado ele se sentia muito culpado, porque ele tinha mentido aos amigos, sobre muitas coisas. A primeira coisa é que ele não estava em busca da profecia – que os outros fizessem isso, ele tinha coisa mais importante para fazer. A segunda é que ele não disse a ninguém que tinha recebido um e-mail do seu tio. E saber alguma pista da única família viva que ele conhecia valia todo o risco.

O e-mail era curto e enigmático. Como tudo que rondava o seu tio, aliás. Ele dava apenas um endereço, uma data e uma hora. Depois uma combinação de números. O endereço era de uma antiga e abandonada garagem e ônibus numa rua sem saída entre a Avenida João Pessoa e a linha do trem da Avenida José Bastos. Ele desceu do ônibus cauteloso. Entrou pela rua sentindo o mormaço do asfalto. Tinha esquecido como Fortaleza era quente, especialmente longe da região da beira-mar.

A garagem de ônibus ficava mais ou menos no meio do quarteirão. Era uma empresa de transporte interestadual que fechou devido à má gestão e disputas judiciais entre herdeiros. Uma pena. A julgar pelo tamanho do pátio e dos portões entreabertos o lugar poderia facilmente conter mais de 50 ônibus em pleno funcionamento.

Ele entrou faltando 5 minutos para o prazo determinado. Aliás aquilo o intrigava mais do que qualquer coisa: ele tinha que estar lá pontualmente às 14:52, nenhum minuto a mais ou a menos. A hora não lhe dizia absolutamente nada. E nem a sequencia de números que vinha logo depois dele. O despertador de frank bateu com o barulho de uma sineta de escola quando a hora bateu certinho.

Foi que o portão fechou-se com força. Oliver ficou em posição de luta. Seria uma emboscada? Ele estava em campo aberto, pronto para ser alvejado. “Procure cobertura” dizia a voz em sua cabeça. Ela tinha estado calada nos últimos dias desde a luta com as motoqueiras caçadoras de Artemis. Mas não era a hora de discutir consigo mesmo ou com o quer que estivesse dentro dele. O menino correu na direção de uma das portas que adornava o pátio em volta e com um belo chute levou a peça de madeira ao chão. Era um pequeno escritório, hoje desprovido de mobília. Ele recostou-se na parede frente à porta, sacou sua espada e aguardou. No primeiro minuto nada, mas ele começou a ouvir passos. Botas arrastando no empoeirado piso de cimento rústico do pátio.

Foi quando ele viu. Era um homem. Usava um par de botas marrons de cano alto, como aquelas que se usa para montar. Eram de finíssima qualidade. Calças cor marrom caro combinando, morrendo num cinto de couro. Uma camisa de linho, cor de creme, adornava e dava contornos ao peito definido. O rosto se enguia altivo e forte, olhos orgulhosos perscrutando o ambiente á sua volta. Oliver engoliu o grito de espanto quando observou o rosto do homem. Era seu pai.

– Sabe, não foi fácil achar você – disse Ares, sentando no banco de madeira do passeio público com pouca cerimonia. – Vocês fizeram um excelente trabalho em fugir do mapa. Bem, não tão bom assim já que existe uma recompensa pela cabeça de dois de vocês. Aquele seu amigo, meu sobrinho, como é mesmo o nome dele? Oliver? Ele e por você. Sabe como é… você não acerta a cabeça das filhas de Artemis sem derramar um pouco de sangue ruim.

Nathália não disse nada. Estava tentando decifrar os movimentos de Ares, tal como um lutador de MMA tenta prever de onde vai vir o próximo golpe. Apesar dela ser boa em MMA, suas defesas contra palavras e atitudes dos pais – especialmente o seu – não eram assim tão bons. Por fim ela tentou ser racional, mas a primeira coisa que saiu… não foi tão racional assim.

– Cadê a minha irmã?

– Hmm… com o Olimpo em perigo, seus amigos e você às vésperas de serem atacados e exterminados, com uma visita do seu pai depois de 4 anos você só se preocupa com o paradeiro de sua irmã? Não admira que você tenha saído no braço com as motoqueiras. – Ares suspirou como se estivesse realmente cansado e depois se recompôs com uma expressão fria, dura e férrea, passando a mão pelo queixo alongado. – A sua irmã desapareceu tem dois anos numa missão muito delicada para Artemis. Missão pessoal, entregue pela própria deusa. Não sei se está viva ou não. Mas sei que você não deve se meter. Pare de procurar sua irmã por enquanto. Não foi para isso que eu vim aqui. Espero que me escute bem porque eu não tenho muito tempo. Projetar minha presença aqui sem que os outros saibam é complicado. Nem todos os deuses estão aceitando de bom grado que vocês estejam tentando salvar Zeus. Eu não posso dizer seus nomes, mas os conspiradores tem certo poder em mãos. Eu vim dizer onde vocês podem encontrar as próximas pistas do enigma da profecia. Vocês acertaram em cheio que a cidade é Fortaleza. O altar do deus da guerra fica bem ali. Eu o cedi para a mãe do “salvador”. Parecia apropriado já que eu fiquei com o nome da cidade.

– Eu já sabia disso. Não vim até aqui apenas para impedir um vovozinho de ser espancado. A 10ª região militar era um forte antes, durante a ocupação holandesa. Depois o nome mudou para Forte Nossa Senhora da Assunção. Na religião cristã a nossa senhora é a Mãe de Cristo, Maria. Não precisa ser filho de Atena quando temos a internet, pai. Diz alguma coisa que eu não sei. O que é a chave? Quem é o guardião? Como vamos convencê-lo?

A figura de Ares tremeluziu. Ele ficou indiferente por um instante como se estivesse voltando sua atenção para um ponto muito longe. Finalmente comentou: – Não tenho mais tempo. Mas a menina que vocês trazem, Isabel, é importante demais. Proteja-a. – Ele olhou fundo em seus olhos e ela sentiu a seriedade de suas palavras.

Ares voltou-se para ela e ofereceu um abraço. Seria a primeira vez que Nathália abraçaria os eu pai. Era um abraço quente e forte. Diferente do que ela pensou que seria. Ela se aninhou nele até sentir sua força afrouxar e ele terminar de sumir. No seu lugar um bracelete de bronze celestial, já atado em seu braço e ainda morno. De repente sentiu uma ânsia, uma necessidade de se reunir com os outros. Começou a correr, deixando o passeio público para trás.

– Pai?

Imediatamente Oliver se recriminou por ter deixado escapar a palavra. Tinha de ficar em silêncio. E se fosse algum metamorfo, desses monstros que assumem a aparência dos heróis, que nem a Mística do filme dos X-men? Mas agora era tarde. Seja lá o que fosse ele enfrentaria. Estava cansado de correr, de se esconder.

A figura olhou na direção do som da voz e pareceu não ver nada. Então abriu um meio sorriso de satisfação quando Oliver saiu de dentro da sala.

– Olá filho. Você parece bem. – ele soava sem muita emoção, apesar de ser traído por sua expressão facial. Foi que ele vu a espada nas mãos de Oliver. – pelo jeito a sua mãe chegou antes de mim, hein? Como vai ela?

Em volta do pai de Oliver uma dezena de katomeros surgiu do nada. Eles dançavam à sua volta como se fossem cães treinados em volta do dono. Por um minuto Oliver não entendeu nada, mas quando os monstros correram na sua direção tentando pegá-lo o seu corpo não precisou de nenhum comando especial ou nenhuma constatação mais óbvia do que a luta pela própria sobrevivência. A espada já estava sacada e ele fez bom uso dela. O treinamento com Karina tinha produzido muito efeito. Ele lutava com desenvoltura criando uma zona de conforto para ele.

“Esse é o maai”. A voz de Karina surgia límpida na sua mente: “A distância entre a sua espada e a espada do oponente. Os samurais chamavam de maai. É como atravessar o inferno. O inimigo deve passar pelo inferno para poder acertar você. Transforme esse espaço num inferno”. E a julgar pela quantidade de monstros vermelhos estraçalhados e se decompondo pelo chão o inferno estava bem quente e atiçado essa época do ano.

– Você é bom… – a voz do pai parecia decepcionada – sabe, eu gostaria mesmo de ter encontrado você antes dela. De contar o meu lado da história. De contar como é que eu queria ter você ao meu lado para derrotar esses deuses imprestáveis e assumir o nosso lugar de direito sobre o Olimpo. Mas ao que parece, eu vou ter de me contentar em ter apenas a sua energia.

Ele atacou. Não era nada como Oliver tivesse enfrentado antes. O seu pai era realmente rápido, ágil. Mal dava para ver o homem. Mesmo sem uma espada ou arma nas mãos ele encurralou Oliver em poucos segundos de luta. Oliver tentou uma última estocada, a espada em riste apontando para o pescoço do seu pai quando ele sentiu um golpe forte arremessa-lo longe. Não parecia um soco comum, parecia que ele tinha tentado parar um trem expresso com o abdômen. O ar faltou e por um minuto Oliver lutou para respirar e para manter o conteúdo do seu estômago dentro do estômago. Quando voltou a sai seu pai estava longe, cercado pelos katomeros restantes contemplando a espada nas mãos. Oliver estava se sentindo cansado demais. Ninguém nunca tinha retirado a espada de suas mãos. Sempre que ele a largava em algum lugar a lâmina evaporava no ar como se nunca tivesse existido. Oliver sentia-se incrivelmente só, como se uma parte dele tivesse sido arrancada… uma parte da sua alma. Foi que ele notou que a voz em sua cabeça havia sido silenciada.

Ele fitou, com terror, quando percebeu as feições de seu antigo ancestral que antes residia na espada que lhe fora confiada. Mas ele estava em dor, experimentando terrível agonia. Oliver sentiu vergonha de ter se colocado naquela situação. Logo depois a vergonha passou para o medo. E assim que seu pai voltou-se para ele, algo borbulhou fervendo dentro dele. Algo que ele nunca tinha sentido conscientemente de ninguém. Ódio. Puro e destilado.

– Está com raivinha? Ótimo… quem sabe agora você me dá uma luta que valha a pena… porque você não parece nem ser me filho. Não passa de um fracote, inútil, um zero à esquerda. – O pai de Oliver apontou a espada para ele e a ponta começou a brilhar. Oliver conhecia aquela manobra. Era o raio… o mesmo raio que ele tinha usado contra Zeus. Mas como Oliver não era um deus, o mais provável é que ele fosse transformado em pó ela rajada de energia. Foi que num estampido a espada foi arrancada dolorosamente das mãos de seu pai. Oliver olhou em volta mas não viu ninguém. Um tiro tinha arrancado a espada das mãos de seu pai, decepando alguns dedos no processo. Ao tocar o chão a lâmina sumiu.

Oliver não pensou duas vezes. Fez surgir seu cavalo de mármore e cavalgou em direção à saída. Apesar do portão fechado Marmarino não teve qualquer dificuldade de pô-lo abaixo com o potente golpe das patas dianteiras.

O cavalo pôs-se a correr pelas ruas do bairro, sendo seguido pelos katomeros, que logo ficavam para trás. Visão de Oliver se embaçava de lágrimas e ele mal se deu conta de que corria ao lado da linha do trem, ou melhor do novo metrô de Fortaleza, recém inaugurado. Ele observou seu reflexo na lateral brilhante e espelhada do vagão nova: um garoto correndo com uma esportiva moto branca de cor customizada. Ele se viu imponente e triste. O cavalo de mármore acelerou, deixando o trem e os seus perseguidores para trás. Foi quando Oliver finalmente notou seu frank tocando. Uma ligação que parecia bem importante.