Gambit deixou duas taças de champanhe caírem estrondosamente no chão.

- Gambit! – Assustou-se Anne, agora voltando a si e à realidade que vivia.

Gambit era a personificação da fúria. Seus olhos cintilavam em vermelho sangue e sua boca se curvou num ímpeto de ameaça.

Anne também ficara transtornada. O que ela tinha na cabeça ao ficar com Loki daquela maneira? Esquecera-se completamente de Gambit e sabia que ele nunca acreditaria nela, quando esta dissesse que nada tinha acontecido entre ela e o deus.

Ao contrário dela, Loki permanecia quieto e com a expressão até divertida. Ele mantinha o sorriso lateral, mas agora com traços de igual ameaça predatória.

- O que você estava fazendo com ele? – Gritou Gambit, aproximando-se a passos rápidos.

- Estávamos dançando. Só isso. Você mesmo viu... – Disse Anne desesperada.

- Não foi só isso o que eu vi... Você perdeu a noção, Anne? Esse cara é um criminoso. Ele está junto dos Jotuns! Ele mata porque acha engraçado! Você ficou louca? – Despejou Gambit de uma vez só.

Anne fitou-o, querendo chorar. O Loki com que ela dançara não era esse... Não podia ser. Anne não queria ser chamada à realidade dessa forma, porque sabia... No fundo, ela sabia. Loki era mesmo tudo isso o que Gambit dissera.

- A Senhorita Stein tem algum tipo de relação com você? Porque não devia tê-la deixado sozinha. – Disse Loki displicentemente.

Foi o suficiente para Gambit avançar, com cartas mágicas pairando atrás de si, estalando explosivamente.

- Foi você, não foi? Você a hipnotizou! Seu filho da... – Urrou Gambit.

- Gambit! Não aconteceu nada! Precisa acreditar em mim! – Gritou Anne, tentando ficar calma. Em vão.

- Acha que temo seus truques, humano? Não tenho culpa que a Senhorita Stein prefere minha companhia a sua... – Provocou Loki. Anne reprovou-o com o olhar, mas o deus estava absorto na briga que surgira. Ele mal reparava nela. Ocupava-se em fulminar o outro com o olhar verde mortal.

Gambit ofendeu-o com palavras de baixo calão de todo o tipo e estava prestes a jogar os baralhos explosivos em Loki, além de dar-lhe uma bela surra. Anne não sabia quem estava mais fora de si. Gambit, por encarar um deus que também tinha habilidades mágicas; ou Loki, que ria ironicamente e não se importava com as cartas que poderiam explodir a qualquer momento.

Nessa luta, Anne não conseguiu apostar em um vencedor. Fez o que lhe ocorreu mais rápido, correndo apressada e desesperadamente entre os dois homens e postando-se no meio deles.

Queria fazer com que parassem de brigar, uma vez que não tinha motivos para isso. Ela não estava em um relacionamento sério com Gambit e, portanto, não lhe devia fidelidade. E também, ainda que o devesse, ela não fizera nada demais com Loki. Nenhum beijo. Nada digno da briga que se seguia.

Mas, antes de certificar-se de que seu plano tinha dado certo e de que os outros estavam controlados, Anne viu um lampejo vermelho fustigando-a. Tudo aconteceu rápido demais.

Levara o golpe de Gambit no lugar de Loki.

- Anne! Seu desgraçado! Veja só o que fez! – Urrou Loki, agora verdadeiramente furioso.

Anne fora atingida pelas cartas explosivas de Gambit ao invés de Loki, porque, na hora do ataque, postara-se na frente do deus. Gambit achou a atitude um tanto idiota e muito estúpida. Ele não sabia que Anne queria somente evitar uma briga. Pensou que ela fizera isso para proteger Loki, o que não era verdade. Anne só desejou que pudesse ter contido a briga e apaziguado as coisas.

- Anne... – Lamentou Gambit, os olhos voltando gradativamente ao tom preto normal.

Ele avançou e agachou-se até onde Anne se encontrava. Ela estava deitada no chão, inconsciente. Mas Loki fora mais rápido e avançara até ela antes de Remy, pegando o corpo inerte da garota e colocando-a em seu colo.

- Não acha que já a magoou o suficiente? – Disse Loki, não deixando Gambit ver o rosto de Anne. Sangue escorria pela testa dela devido ao impacto.

- Não fiz por mal. Ao que parece, ela entrou na sua frente para salvá-lo. Esse golpe era pra você, não pra ela! – Argumentou Gambit, olhando com ressentimento para Loki.

- Não seja tolo! – Urrou o deus. Por dentro, gostou da possibilidade de Anne desejar salvá-lo, mas nada demonstrou. – Ela queria apenas acabar com a briga que você iniciou. Anne não queria confusão.

Gambit olhou para Loki com desprezo.

- Parece que você a conhece muito bem.

- Não seja ainda mais tolo, humano. Se algo tivesse acontecido entre mim e Anne, eu faria questão de jogar isso na sua cara. Mas não houve nada. – Disse Loki, disfarçando muito bem. Não queria envolver Gambit na sua história com Anne.

Mas, por mais que se mostrasse controlado e contido, Loki teve vontade de matar o aparente adversário. Usou todas as suas forças para não fulminá-lo e concentrar-se em Anne, porque sentiu algo parecido com ciúme. Muito ciúme.

- O que? – Disse Gambit, confuso. Ele esperava que Loki inventasse um monte de mentiras para se vangloriar sobre Anne. Em vez disso, encontrou o deus agindo como um homem de honra. Remy não soube mais no que acreditar ou o que esperar dessa situação.

- Isso mesmo que você ouviu. Agora, com licença. Vou levar Anne para o quarto dela. – Avisou Loki, avançando rapidamente com Anne em seu colo, ainda desmaiada.

Uma parte de Gambit queria que ele parasse o deus e tomasse Anne dos braços dele. Mas ele nada fez. Ao que parecia, perdera essa primeira luta para o deus da trapaça. Não queria perder outra luta na mesma noite. Então, deixou que ele levasse Anne e cuidasse dela. Talvez, isso fosse mesmo o melhor a fazer. Gambit estava furioso demais para se importar com Loki e estava com seu orgulho gravemente ferido.

Antes de sair, Loki esbarrou em Gambit, fingindo estar com pressa. Na verdade, o deus queria deixar bem claro – implicitamente -, que a mulher em seus braços era dele e de mais ninguém.

- O que houve? Loki? – Perguntou Anne, acordando depois do que parecera um longo sonho. Sua mente trabalhava preguiçosamente. A única coisa que percebeu foi que estava deitada no quarto com Loki ao lado ela, a admirando docemente.

E Loki, bem, este levara Anne às pressas para seu quarto. Usou um caminho alternativo, a fim de evitar que as pessoas na festa fizessem perguntas demais. Porém, ele sabia que Gambit trataria de contar aos outros o que aconteceu essa noite. Se não o fizesse, Anne acabaria contando mais cedo ou mais tarde sobre o que a atingira.

Enfim, levara-a até seu quarto e a colocou em sua cama. Anne não parecia fisicamente muito ferida, já que o ataque tivera mais impacto do que força. Ela tinha apenas um corte pequeno acima da sobrancelha direita. Loki limpou o ferimento com o primeiro pano que achou e ficou admirando a garota, mais confuso do que nunca.

Tivera um ódio mortal de Gambit quando este parecia ter demonstrado interesse demais em Anne. Um ódio mais do que mortal quando Gambit a feriu. Loki não sabia o que isso queria dizer.

E agora, Anne acordava, parecendo tão confusa e frágil... Se acaso quisesse, Loki poderia fazer dela o que bem entendesse. Ela estava nas mãos dele. Então por que ele não conseguia fazer nada?

- Você está bem? – Perguntou Loki, ignorando a primeira pergunta de Anne.

Ela levantou-se, sentindo uma forte dor de cabeça. Ela ia levando as mãos à testa quando Loki a segurou pelo pulso.

- Eu não faria isso se fosse você. Tem um corte na sua sobrancelha... – Avisou ele em tom de riso.

E Anne foi se lembrando vagamente do que teria ocorrido. Gambit a pegara junto de Loki. Ficara com raiva por achar que o deus a estava hipnotizando... Até que ela viu um clarão vermelho. O que poderia ter acontecido?

- Gambit... Ele... – Ela falou, franzindo o cenho e tentando recuperar memórias.

- Sim. – Afirmou Loki. A expressão dele era de puro ódio quando Anne citou o nome de Gambit. – Ele nos viu juntos. Um completo idiota, não? Ficou com raiva e tentou me atacar. Mas você se pôs entre nós. Muito irônico... O desgraçado atingiu você com aquelas cartas explosivas.

Loki ora demonstrava ligeira diversão, ora raiva. Anne foi se recordando de tudo aos poucos...

- Eu... Eu me lembro agora. – Disse Anne, quase caindo por causa da tontura.

Loki a amparou.

- E você se colocou entre nós! Você é idiota ou o que? Deveria ter deixado os mais velhos resolverem a situação... – Disse Loki com uma expressão severa, mas o tom de voz era descontraído.

- Eu não queria que brigassem. – Disse ela timidamente. Pensando melhor, ela agora enxergava o quão fora impulsiva e idiota.

- Pois parecia que você estava querendo me salvar... – Provocou Loki, um sorriso travesso em seu semblante.

- Não seja ridículo... – Completou Anne, sentindo que ruborizava.

Ela simplesmente queria evitar uma briga, mas sabia que a ideia de Loki ser atingido por Gambit a deixou horrorizada.

Loki sorriu e aproximou-se dela.

- Não coloque sua vida em risco novamente, Senhorita Stein. – Disse Loki, pegando as mãos de Anne firmemente.

- E o que isso tem a ver com você, Loki? Estamos em lados diferentes e opostos. Ou você se esqueceu disso? – Indagou Anne tristemente.

Sempre soubera que ela e Loki eram de mundos diferentes, figurada e literalmente. Não queria que Loki fosse das trevas, mas sabia que ele o era. De que adiantaria negar? Loki pensava o mesmo. Como ele, tão inabalável e obscuro poderia se importar tanto com uma pessoa a ponto de agir tão estranhamente? Os dois tinham consciência do que isso queria dizer, mas estavam surpresos demais para admitir o que sentiam.

Loki aproximou-se de Anne e fez menção de falar, mas parou e cerrou os lábios. Sentiu que não era o momento certo. Largou a mão dela e virou-se, deitando em sua cama sem dizer palavra. Loki queria dizer a ela que não havia se esquecido da diferença entre eles. Queria dizer que, sim, se importava. Mas as palavras morreram na garganta. Os sentimentos e as palavras boas não conheciam o caminho para saírem da boca do deus da trapaça.

Por fim, Anne dormiu. Sentia-se ligeiramente melhor até que foi acometida do mesmo pesadelo. Diferentemente das vezes anteriores, dessa vez ela conseguiu acordar e foi correndo até a janela do quarto, tomando um pouco de ar fresco e ofegando.

Loki, que estava descansando, percebeu imediatamente a movimentação de Anne e levantou-se de sua cama. Agora, Anne chorava e tinha as mãos no rosto, num gesto de agonia. Loki não sabia que ela estava acordada realmente. Imaginou que fosse mais um de seus surtos noturnos e correu para ajudá-la. Talvez, em seu íntimo, ele imaginasse de fato que Anne estava acordada.

- Você costuma ter pesadelos? – Perguntou ele, rindo levemente e abraçando Anne.

Ela esperou as lágrimas secarem e observou o rosto pálido do deus.

- Só desde que cheguei aqui... – Contou ela.

Loki fitou aquele rosto cheio e com as maçãs levemente rosadas. Levou os dedos aos cabelos compridos de Anne, brincando com eles. Sentiu desejo de sintetizar naquele momento tudo o que acumulara em meses, sem medir as consequências. Ora, sua vida era baseada na imprudência e na dinamicidade. Loki nunca se preocupou muito com o que suas atitudes acarretariam. Não se importaria com isso justamente agora.

- Anne, vou ser sincero com você. Acho que é a primeira vez na minha vida que digo isso... – Disse Loki.

Anne tocou-o no pescoço e confirmou:

- É... Eu sei disso.

E Loki a olhou nos olhos de um jeito que nunca fizera antes. Como se pudesse decifrar Anne por completo, descobrindo seus desejos mais secretos e profundos. Como se com um olhar pudesse transmitir tudo que os anos de maldade lhe roubaram.

- Minha vida toda foi uma escuridão. Agora, acho que vi um pouco de luz. Em meio aos meus pesadelos, Anne, seja os meus sonhos... Agora, deixe-me tentar uma coisa.

Anne simplesmente olhava-o absorta. Cada dia Loki se mostrava menos inimigo, e mais próximo. Anne não conseguiu se refrear. Fosse por enganação ou não, o deus estava dizendo tudo o que ela mais queria ouvir. Além disso, nada passava por sua mente, a exceção de que agora ela sabia... Era esse Loki que ela desejava. O Loki que sempre a tirava dos apuros. Seu porto seguro...

Tão certo e ardente como o sol do meio dia, eles se beijaram.