Théo sempre comentou que quando este dia chegasse eu sentiria uma dor imensa. Mas confesso, não achei que fosse pra tanto e, na realidade, eu tinha fé que não precisássemos passar por isso. Foi recente, perdemos a número 1. Sei que é uma garota, pois, Théo me contou um pouco sobre ela, após a sua morte. Segundo ele, não se lembra de todos os Guardiões, mas eu acho que é história, talvez ele não queira comentar sobre os outros para me proteger. Théo disse que de todos os tutores, ele é o mais novo. Eu, em particular, o acho um gato! Mas, mesmo sabendo que não, Théo é o único resquício de família que tenho aqui, que tenho em qualquer lugar.

Théo sempre teve muita cautela com tudo que me envolvia, por isso, tentou me infiltrar no mundo dos humanos de todas as formas, para dificultar que eles me encontrassem. Bom, eu sei que ainda não sou a prioridade, no momento eles devem estar caçando a/o 2. Quando eu tinha quatro anos, Théo fez um acordo com um internato: oferecer seus serviços em troca da minha vida estudantil no lugar. Théo é um cara de 33 anos, possui cabelos e olhos castanhos claros e sua pele é bastante clara. Ela é um homem muito alto, deve ter seus quase 1,90. Possui um corpo magnífico, o que facilitou na sua contratação – não que o diploma falsificado, comprovando que ele podia lecionar não tivesse contribuído com isso também.

Hoje, com 16 anos, estou no último ano do internado, o que nos deixa bastante nervosos, afinal, para onde vamos depois? Existe algum lugar seguro, agora que sabemos que os Daliperianos estão entre nós?

— Como está a marca? – perguntou Théo, assim que me encontrou no nosso pequeno aposento, nos fundos do internado.

— Está repousando em minhas costas – respondo, brincando.

— Não é isso que eu quero saber, Charlie!

— Eu sei disso, pai! – é, todos aqui pensam que ele é meio pai, faz parte da história que ele inventou para que conseguíssemos ficar aqui. Eu gosto de chamá-lo assim quando ele me responde desse jeito ranzinza. Ele não gosta. – Não existe nenhuma outra cicatriz, só da 1.

— Melhor assim – ele termina de trancar a porta, afaga minha cabeça ao passar por mim e senta do outro lado do sofá.

— Eu tenho uma novidade – digo um pouco tímida, no entanto, com um sorriso de orelha a orelha.

— Sério? – ele pergunta animado, levantando-se do sofá – É o que eu estou pensando?

— Eu acho que é sim!

— Como você descobriu? O que é? Como foi que você fez?

— Nossa! Quantas perguntas agrupadas, não é mesmo? – rio dele.

— Você sabe que eu estava esperando ansiosamente por esse dia! Poderemos abrir o receptáculo. Mas enfim, como foi?

— Nós estávamos na aula de química, mais especificamente no laboratório. Estávamos realizando algumas experiências, tubos de ensaios, produtos químicos borbulhando e tudo mais. Estávamos em duplas...

— Ok, você e a Dinah estavam juntas – atrapalha ele.

— Isso! Então, de repente, não sei o porquê, mas o líquido fez o tubo explodir, enquanto a Dinah estava manuseando. Caiu líquido na sua mão, o tubo deu um pequeno corte em seu rosto, nada muito grave. Antes de o pessoal notar, eu corri até o kit de socorros e peguei uma gaze, para limpar. Eu estava fitando o corte no rosto, que sangrava, estava com uma das mãos em sua bochecha e quando fui limpar o corte com a outra, ele havia desaparecido. No mesmo instante tirei minhas mãos dela, não queria que os outros ferimentos sumissem também. Quer dizer, não quero que a Dinah continue machucada, ah, você entendeu!

— Sim, só não quer que os outros notem que o ferimento sumiu de uma hora pra outra e acabem descobrindo que existe uma esquisita no meio de todos.

— Mais ou menos isso, engraçadinho! Bom, eu não sei como controlar ainda, óbvio. Mas acho que eu tenho o poder da cura.

— Senhorita Charlie Azorra, eu também acho que tens! – ele se levanta, sai da sala por alguns segundos e retorna com meu receptáculo. – O que você acha de abrirmos?

— Será que os outros já abriram os seus? – penso alto.

— Acho que não temos como saber, não é?

Ouvimos alguém bater na porta, três vezes, e de imediato olho para Théo, que fecha o rosto, preocupado. Afinal, é início da noite e ninguém costuma nos visitar nesse horário. Em horário nenhum, na verdade. Théo abre nosso sofá baú e põe o receptáculo dentro, de forma ágil e cautelosa. Ele vai até a porta e abre-a, lentamente.

— Olá Sr. Ezzu, posso ajudá-lo em algo?

— Sua filha está em casa, professor Théo?

— Está sim, devo chamá-la?

— Por gentileza.

— Só um momento, por favor – e fecha a porta, com cuidado.

O Sr. Ezzu é o responsável pelo internato, ou seja, superior de Théo. Foi ele quem nos aceitou há alguns anos, embora não estivesse muito a favor da ideia, mas foi convencido por Ridge, sua assessora até hoje.

— Você fez algo que não me contou, Charlie? – Théo parece meio zangado, mas acho que é só preocupação.

— Não paaai! – dou um ar brincalhão para a palavra. – Nada além daquilo que você já sabe.

— Será que é sobre isso? – ele anda de um lado para o outro.

— Como vou saber? Será que a Dinah notou?

— Professor? – o Sr. Ezzu grita do lado de fora, afinal, nosso aposento não é tão grande, logo, a demora não se justifica.

— Seja o que Willow Típien quiser! – e me encaminho em direção à porta. – Olá Sr. Ezzu, desculpe a demora, posso ajudá-lo?

— Boa noite Charlie! Será que você pode me acompanhar até a minha sala?

— Mmm, posso sim. – olho para Théo, que instantaneamente comparece ao meu lado.

— Somente a Charlie, professor – diz o Sr. Ezzu.

— Certo! – e Théo fica à porta, enquanto eu e Sr. Ezzu caminhamos em silêncio em direção à ala principal do grande edifício do internato. Ao chegarmos à sala, ele retira a chave do seu blazer e dá apenas uma volta na fechadura, que se abre rapidamente.

— Sente-se, por favor, Charlie – e me indica a cadeira, enquanto se acomoda na sua. – Bom, eu lhe chamei nesta sala para que você me conte o que aconteceu hoje em sala.

— O que aconteceu hoje? – repito incrédula.

— Sim! Refiro-me à sua colega, Dinah Jane.

— Ah, claro. Bom, ela estava manuseando o tubo, quando ele...

— Senhorita Charlie, perdão, creio que não fui claro o suficiente, lhe questiono sobre o desaparecimento do corte no rosto de sua amiga.

≥ — ·

— Eu não entendo! – grito, grito o mais alto que posso, estou tão nervoso que sinto que tão logo meus lábios ficarão em carne viva, de tanto mordê-los.

— Não grite comigo, August Paper! – ouço Lucky berrar, no mesmo nível que eu.

— Por que você não me ajuda, Lucky? Me conte como é que se faz, eu preciso saber!

— Você ainda não está em perigo, August! – ele ficava cada vez mais vermelho, enquanto berrava ao meu lado, apontando o dedo no meu rosto.

— Estamos todos em perigo! Todos! Você não viu que 1 já morreu? Olha isso aqui! Olha isso aqui! – tiro minha camiseta e, mais uma vez, mostro a enorme marca em minhas costas. – Como é que você tem coragem de negar os ensinamentos, como?

— August, entenda: você não é o próximo!

— E do que adianta essa maldita ordem? Eu sou o número quatro! Sabe até quando? Até quando qualquer um dos outros se encontrar e essa maldita proteção não existir mais! E então vai ser tarde Lucky, vai ser tarde para você me ensinar qualquer coisa! Vai ser tarde pra você me mostrar como eu faço para desaparecer por inteiro! Vai ser tarde para você pensar em me mostrar como abrir esse maldito receptáculo, porque eu estarei morto! E a culpa será só sua!

Ele fica em silêncio por alguns minutos, caminhando de um lado para o outro, enquanto eu, estático, o encaro somente com o olhar. Não é a primeira vez que temos essa discussão, porém, tudo se agravou depois dessa enorme cicatriz em minhas costas. Na pior das hipóteses, só terei mais duas delas! Mas eu não quero ser apenas uma cicatriz nas costas dos restantes! Eu quero fazer com que ninguém tenha mais cicatriz alguma!

— Por quê? – continuo gritando, o mais alto que posso. – Por que eu tive que ter um tutor que se nega a dar continuidade à missão que temos aqui? Um tutor que não está disposto a fazer reviver Típien. – olhando nos olhos de Lucky, que está parado exatamente em minha frente, sinto o sangue subir pela minha cabeça. – Você é o pior tutor que um guardião poderia ter!

Lucky cerra os punhos e me acerta em cheio.