Os Guardiões de Típien
Capítulo Dois.
O dia em que a cicatriz surgiu em minhas foi um dos piores da minha vida. Não digo isso apenas pela dor que senti, da pele queimando, da morte se aproximando de um de nós; mas também porque este foi o dia em que Jamie, minha tutora, partiu. Ah, e outro detalhe: eu sou o próximo. Desde pequeno a angustia de ser o número 2 toma conta de mim, talvez, até covardia. Queria ter mais tempo para desenvolver meus poderes e ajudar em nossa missão, mas, eles estão praticamente à porta, prontos para me trucidarem.
Confesso que sou um cara sortudo, descobri minhas primeiras heranças muito cedo e Jamie conseguiu me ajudar a desenvolvê-las, além de me passar seus conhecimentos sobre o conteúdo do meu receptáculo, embora, acreditamos que muitas das coisas ali encontradas só saberei manusear após algum tempo. Lembro-me da frase que Jamie me dizia constantemente: “Ricky, quando preciso for, o conhecimento sobre cada um desses materiais será mostrado a você, por enquanto, lhe ensino o que sei”. A primeira herança que se manifestou em mim foi a da visão noturna. Jamie e eu passamos um longo tempo de nossa vida em uma caverna, no alto de um pico, com receio que eles pudessem chegar a qualquer momento. Durante o dia saímos para caçar algo e ao entardecer voltávamos ao nosso lar. Eu tinha apenas 10 anos quando comecei a enxergar nitidamente no escuro, acredito que devido à necessidade de sobrevivência, pois a maioria dos animais sai de noite de suas tocas, e então, era o momento que nos fartávamos.
Meu segundo legado surgiu cerca de um ano depois, quando o pico em que morávamos sofre um grande deslizamento de terra, no qual fomos pegos desprevenidos, e tivemos que pensar rapidamente. Quando me dei conta estava flutuando. Jamie de imediato reuniu nossos principais pertences – poucos –, montou em minhas costas e deixamos o local voando.
Jamie morreu de causas naturais, acredito eu, pois ela já era bem idosa e estava cada vez mais fraca. Com lágrimas correndo nos olhos, peguei-a no colo e voando, fui até o topo da montanha mais próxima e depositei seu corpo na floresta: tenho certeza que era lá que ela gostaria de ficar. Depois disso, fiquei confuso, não sabia ao certo o que fazer e embora eu tivesse noção que encontrar outro guardião acabaria com a nossa proteção, era a única coisa que me passava pela cabeça. Eu era o próximo e sabia que sozinho não teria chance alguma, por isso, coloquei o anel tipiênico em meu indicador e tentei contato, pela primeira vez, com algum deles.
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“Alguém aí?” Ouvi aquela frase em minha cabeça, uma voz que eu não conhecia, não sabia se aquilo era fruto da minha imaginação ou se alguém realmente estava me chamando.
— Swane? – chamei pela minha tutora, que estava cozinhando no fogão a lenha.
— O que foi, November? – ela responde aos berros, de onde está.
— Acho que alguém tentou fazer contato – disse, procurando as palavras corretas.
Swane Ker veio correndo da cozinha, estava com um avental e uma toalha sobre os ombros, seus cabelos estavam em um coque simples. Ela me olhava assustada, não entendendo o que eu quis dizer.
— Como assim, November? – sua expressão se mantinha preocupada e confusa.
— Escutei em minha mente a voz de um rapaz perguntando “alguém aí?” – será que é um deles?
— Provavelmente sim!
— E como eu faço para responder?
— Se eu não estou enganada, essa comunicação é possível por causa do anel, todos que estão utilizando podem se comunicar. Você só precisa olhar o anel com muito foco e jogar o pensamento para ele.
— Meio maluco, não acha?
— Meu Willow Típien! – ela leva a mão na cabeça, alarmada com o lembrete – A comida!
— Já abaixei o fogo – tranquilizo-a.
— É por isso que eu gosto dessa sua herança! – ela brinca, sorrindo.
— Vou tentar – ela senta-se no sofá, me olhando – Ok?
— Certo! Concentre-se!
Olho para o anel com bastante precisão, preciso conseguir conversar com ele. Caso consiga, essa seria a primeira vez que teríamos contato com outro guardião. Desde pequena, Swane sempre monitorou atividades dos Daliperianos, porém, com a primeira cicatriz, isso se intensificou ainda mais. Eu sou apenas a número 7, mas, isso não elimina as chances deles me fazerem prisioneira e esperar até que seis cicatrizes apareçam em mim, para depois me executar. Mas, o que eu mais quero é ter a chance de encontrar um Daliperiano e incendiá-lo todinho!
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— Oi, eu estou aqui! Sou a 7 – escuto a voz em minha mente e respiro aliviado! Existe outro guardião que também já sabe utilizar o conteúdo, que está com o anel, que está me respondendo!
— Graças ao bom Willow! – transmito meu pensamento – Eu sou o próximo!
— Olá 2! – a voz dela me parece muito suave, sinto uma pontinha de euforia – Seu tutor está aí?
— Estou sozinho, ela não existe mais – respondo, tentando controlar minhas emoções.
— Lamento! – e por um tempo tudo vira apenas silêncio. Onde ela está?
— Sete? Por favor, Sete! Não me deixe! – começo a me desesperar, minha única oportunidade.
— Desculpe Dois! Estou aqui. – suspiro aliviado.
— Sete, estou um pouco inseguro. Sou o próximo, até o momento só tenho duas heranças e só sei utilizar três do conteúdo do meu receptáculo. – fico em silêncio, me negando a admitir. – Eu não terei chances!
— Ei, me dá dois minutos.
— Ok. Esse é um número que gosto – e rio, esperando que ela entenda a brincadeira.
Cada segundo de espera me parece uma eternidade! Não estou me reconhecendo, estou com receio, não quero perder o contato com ela. E se ela não voltar? Não quero ficar enviando mensagens e atrapalhando o que ela está fazendo. Preciso confiar nela, ela não vai me deixar só.
Estou em uma cabana abandonada no meio do mato, não tenho alimento algum, somente a pedra azul de Típien que sacia minha sede. Ela é um dos conteúdos que Jamie me ensinou a utilizar. Assim como minhas luvas que intensificam o som, e que por enquanto, descobri que quebra vidros e ossos – quebrei o dedo da mão de Jamie uma vez, com uma pequena palma.
Caminho de um lado para o outro. São os dois minutos mais longos da minha existência, se bem que eu desconfio que já se passaram dois minutos, mas como não tenho relógio algum, não faço ideia.
—Dois? – ouço novamente a voz dela em minha cabeça.
— Sete!
— Swane acredita que é melhor nos encontrarmos!
—Mas... E a proteção?
— Você é o próximo e está sozinho!
— E se algum dos outros tiver sido capturado? E se de alguma forma eles souberem que a proteção não existe mais? Perderemos mais um?
— Dois, é a nossa única saída! – ela foi gentil falando “nossa”, na realidade, é a minha única saída.
— Onde você está, Sete?
— Estou em Coquimbo, no Chile.
— Sete, eu já estive na América do Sul, quando pequeno. Acho que consigo encontrar.
— E como você vai vir, Dois?
— Eu voo! E rápido!
— Vou avisar Swane para colocar mais água no feijão! – ela ri. Acho que foi algum tipo de brincadeira, porém, não entendi. O que é feijão?
— Se eu precisar de ajuda, vou chamá-la!
— Certo! Boa viagem!
A única coisa que preciso levar para Coquimbo é meu receptáculo, coloco-o dentro de uma mochila que encontrei na cabana abandonada. Antes, tiro as luvas e visto-as, o que me traz um grande problema: não consigo ver o anel. Se eu precisar me comunicar com Sete terei que tirá-la rapidamente. Visto a mochila, saio da cabana e alço voo rapidamente, dirigindo-me para encontrar a guardiã.
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— Não sei se estamos fazendo a coisa certa, November – Swane diz, baixinho. – Mas era a única forma de ajudá-lo! Entendo seu medo! Se ainda estivesse com sua tutora, mas...
— Swane, nós vamos conseguir lidar com isso – tento parecer firme em minha concepção, para tranquilizá-la; penso em utilizar um pouco do ilusionismo, mas acho que não será necessário. – E além do mais, em algum momento, nós teríamos que nos unir.
— Você está certa! Só nos resta esperá-lo.
— Ele disse que voa rapidamente, será que demora?
— Sinto que chega logo.
— Então vou dar uma ajeitada no visual! – começo a rir, enquanto levando e vou até meu quarto!
— Cria jeito, menina! – Swane também acha graça.
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Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas sei que estou próximo. Não foi difícil de encontrar o local, pois, me recordo do trajeto que eu e Jamie fizemos quando passamos uma temporada na Argentina. Lembro que fomos ao país, porque estava bastante distante dos demais lugares do mundo e estudamos muito o mapa da América do Sul para definirmos o local. Ao chegar ao Chile, pouso sem ser percebido em Guanaquero e peço informações para um comerciante, que gentilmente me passa instruções de como chegar em Coquimbo e também me fornece um mapa, para melhor localização, então descubro que preciso voltar alguns quilômetros.
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— Coloque sua mão direita em cima do receptáculo – Branca me passa as instruções, horas depois de eu descobrir minha primeira herança. – Agora pense em seu número e, em seguida, erga sua mão.
No exato momento em que elevo minhas mãos, a parte superior do receptáculo se abre e vejo a imensa quantidade de itens presente nela. Eu, particularmente não sei para que serve nenhuma dessas coisas e por isso, tenho esperança que ela me ensine.
— Pegue aquele item – e me indica o conteúdo que devo pegar.
— Qual a serventia deste anel, Branca? – questiono, olhando o anel de todos os ângulos, sem colocar em meu dedo.
— Ao colocá-lo no dedo indicador direito, você pode se comunicar com qualquer guardião que também esteja utilizando-o.
A ideia me agrada, embora saiba que isso facilitaria a comunicação entre os guardiões e as consequências que isso pode gerar, como a extinção da proteção. De todo modo, coloco o anel em meu dedo e instantaneamente ouço vozes em minha mente. Fico em choque, paralisada, prendendo o ar em meus pulmões.
— Cinco, o que aconteceu? – ouço a voz de Branca, mas estou longe, não consigo respondê-la. – Clarisse, me responda!
— Branca, acabo de ouvir o número Dois avisando Sete que está prestes a encontrá-la.
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