O dia em que a cicatriz surgiu em minhas foi um dos piores da minha vida. Não digo isso apenas pela dor que senti, da pele queimando, da morte se aproximando de um de nós; mas também porque este foi o dia em que Jamie, minha tutora, partiu. Ah, e outro detalhe: eu sou o próximo. Desde pequeno a angustia de ser o número 2 toma conta de mim, talvez, até covardia. Queria ter mais tempo para desenvolver meus poderes e ajudar em nossa missão, mas, eles estão praticamente à porta, prontos para me trucidarem.

Confesso que sou um cara sortudo, descobri minhas primeiras heranças muito cedo e Jamie conseguiu me ajudar a desenvolvê-las, além de me passar seus conhecimentos sobre o conteúdo do meu receptáculo, embora, acreditamos que muitas das coisas ali encontradas só saberei manusear após algum tempo. Lembro-me da frase que Jamie me dizia constantemente: “Ricky, quando preciso for, o conhecimento sobre cada um desses materiais será mostrado a você, por enquanto, lhe ensino o que sei”. A primeira herança que se manifestou em mim foi a da visão noturna. Jamie e eu passamos um longo tempo de nossa vida em uma caverna, no alto de um pico, com receio que eles pudessem chegar a qualquer momento. Durante o dia saímos para caçar algo e ao entardecer voltávamos ao nosso lar. Eu tinha apenas 10 anos quando comecei a enxergar nitidamente no escuro, acredito que devido à necessidade de sobrevivência, pois a maioria dos animais sai de noite de suas tocas, e então, era o momento que nos fartávamos.

Meu segundo legado surgiu cerca de um ano depois, quando o pico em que morávamos sofre um grande deslizamento de terra, no qual fomos pegos desprevenidos, e tivemos que pensar rapidamente. Quando me dei conta estava flutuando. Jamie de imediato reuniu nossos principais pertences – poucos –, montou em minhas costas e deixamos o local voando.

Jamie morreu de causas naturais, acredito eu, pois ela já era bem idosa e estava cada vez mais fraca. Com lágrimas correndo nos olhos, peguei-a no colo e voando, fui até o topo da montanha mais próxima e depositei seu corpo na floresta: tenho certeza que era lá que ela gostaria de ficar. Depois disso, fiquei confuso, não sabia ao certo o que fazer e embora eu tivesse noção que encontrar outro guardião acabaria com a nossa proteção, era a única coisa que me passava pela cabeça. Eu era o próximo e sabia que sozinho não teria chance alguma, por isso, coloquei o anel tipiênico em meu indicador e tentei contato, pela primeira vez, com algum deles.

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“Alguém aí?” Ouvi aquela frase em minha cabeça, uma voz que eu não conhecia, não sabia se aquilo era fruto da minha imaginação ou se alguém realmente estava me chamando.

Swane? – chamei pela minha tutora, que estava cozinhando no fogão a lenha.

— O que foi, November? – ela responde aos berros, de onde está.

— Acho que alguém tentou fazer contato – disse, procurando as palavras corretas.

Swane Ker veio correndo da cozinha, estava com um avental e uma toalha sobre os ombros, seus cabelos estavam em um coque simples. Ela me olhava assustada, não entendendo o que eu quis dizer.

— Como assim, November? – sua expressão se mantinha preocupada e confusa.

— Escutei em minha mente a voz de um rapaz perguntando “alguém aí?” – será que é um deles?

— Provavelmente sim!

— E como eu faço para responder?

— Se eu não estou enganada, essa comunicação é possível por causa do anel, todos que estão utilizando podem se comunicar. Você só precisa olhar o anel com muito foco e jogar o pensamento para ele.

— Meio maluco, não acha?

— Meu Willow Típien! – ela leva a mão na cabeça, alarmada com o lembrete – A comida!

— Já abaixei o fogo – tranquilizo-a.

— É por isso que eu gosto dessa sua herança! – ela brinca, sorrindo.

— Vou tentar – ela senta-se no sofá, me olhando – Ok?

— Certo! Concentre-se!

Olho para o anel com bastante precisão, preciso conseguir conversar com ele. Caso consiga, essa seria a primeira vez que teríamos contato com outro guardião. Desde pequena, Swane sempre monitorou atividades dos Daliperianos, porém, com a primeira cicatriz, isso se intensificou ainda mais. Eu sou apenas a número 7, mas, isso não elimina as chances deles me fazerem prisioneira e esperar até que seis cicatrizes apareçam em mim, para depois me executar. Mas, o que eu mais quero é ter a chance de encontrar um Daliperiano e incendiá-lo todinho!

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— Oi, eu estou aqui! Sou a 7­ – escuto a voz em minha mente e respiro aliviado! Existe outro guardião que também já sabe utilizar o conteúdo, que está com o anel, que está me respondendo!

Graças ao bom Willow! – transmito meu pensamento – Eu sou o próximo!

Olá 2! – a voz dela me parece muito suave, sinto uma pontinha de euforia – Seu tutor está aí?

Estou sozinho, ela não existe mais – respondo, tentando controlar minhas emoções.

Lamento! ­– e por um tempo tudo vira apenas silêncio. Onde ela está?

Sete? Por favor, Sete! Não me deixe! – começo a me desesperar, minha única oportunidade.

Desculpe Dois! Estou aqui. – suspiro aliviado.

Sete, estou um pouco inseguro. Sou o próximo, até o momento só tenho duas heranças e só sei utilizar três do conteúdo do meu receptáculo. – fico em silêncio, me negando a admitir. – Eu não terei chances!

Ei, me dá dois minutos.

Ok. Esse é um número que gosto – e rio, esperando que ela entenda a brincadeira.

Cada segundo de espera me parece uma eternidade! Não estou me reconhecendo, estou com receio, não quero perder o contato com ela. E se ela não voltar? Não quero ficar enviando mensagens e atrapalhando o que ela está fazendo. Preciso confiar nela, ela não vai me deixar só.

Estou em uma cabana abandonada no meio do mato, não tenho alimento algum, somente a pedra azul de Típien que sacia minha sede. Ela é um dos conteúdos que Jamie me ensinou a utilizar. Assim como minhas luvas que intensificam o som, e que por enquanto, descobri que quebra vidros e ossos – quebrei o dedo da mão de Jamie uma vez, com uma pequena palma.

Caminho de um lado para o outro. São os dois minutos mais longos da minha existência, se bem que eu desconfio que já se passaram dois minutos, mas como não tenho relógio algum, não faço ideia.

Dois? – ouço novamente a voz dela em minha cabeça.

Sete!

Swane acredita que é melhor nos encontrarmos!

Mas... E a proteção?

Você é o próximo e está sozinho!

E se algum dos outros tiver sido capturado? E se de alguma forma eles souberem que a proteção não existe mais? Perderemos mais um?

Dois, é a nossa única saída! – ela foi gentil falando “nossa”, na realidade, é a minha única saída.

Onde você está, Sete?

Estou em Coquimbo, no Chile.

Sete, eu já estive na América do Sul, quando pequeno. Acho que consigo encontrar.

E como você vai vir, Dois?

Eu voo! E rápido!

Vou avisar Swane para colocar mais água no feijão! – ela ri. Acho que foi algum tipo de brincadeira, porém, não entendi. O que é feijão?

Se eu precisar de ajuda, vou chamá-la!

Certo! Boa viagem!

A única coisa que preciso levar para Coquimbo é meu receptáculo, coloco-o dentro de uma mochila que encontrei na cabana abandonada. Antes, tiro as luvas e visto-as, o que me traz um grande problema: não consigo ver o anel. Se eu precisar me comunicar com Sete terei que tirá-la rapidamente. Visto a mochila, saio da cabana e alço voo rapidamente, dirigindo-me para encontrar a guardiã.

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— Não sei se estamos fazendo a coisa certa, November – Swane diz, baixinho. – Mas era a única forma de ajudá-lo! Entendo seu medo! Se ainda estivesse com sua tutora, mas...

— Swane, nós vamos conseguir lidar com isso – tento parecer firme em minha concepção, para tranquilizá-la; penso em utilizar um pouco do ilusionismo, mas acho que não será necessário. – E além do mais, em algum momento, nós teríamos que nos unir.

— Você está certa! Só nos resta esperá-lo.

— Ele disse que voa rapidamente, será que demora?

— Sinto que chega logo.

— Então vou dar uma ajeitada no visual! – começo a rir, enquanto levando e vou até meu quarto!

— Cria jeito, menina! – Swane também acha graça.

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Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas sei que estou próximo. Não foi difícil de encontrar o local, pois, me recordo do trajeto que eu e Jamie fizemos quando passamos uma temporada na Argentina. Lembro que fomos ao país, porque estava bastante distante dos demais lugares do mundo e estudamos muito o mapa da América do Sul para definirmos o local. Ao chegar ao Chile, pouso sem ser percebido em Guanaquero e peço informações para um comerciante, que gentilmente me passa instruções de como chegar em Coquimbo e também me fornece um mapa, para melhor localização, então descubro que preciso voltar alguns quilômetros.

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— Coloque sua mão direita em cima do receptáculo – Branca me passa as instruções, horas depois de eu descobrir minha primeira herança. – Agora pense em seu número e, em seguida, erga sua mão.

No exato momento em que elevo minhas mãos, a parte superior do receptáculo se abre e vejo a imensa quantidade de itens presente nela. Eu, particularmente não sei para que serve nenhuma dessas coisas e por isso, tenho esperança que ela me ensine.

— Pegue aquele item – e me indica o conteúdo que devo pegar.

— Qual a serventia deste anel, Branca? – questiono, olhando o anel de todos os ângulos, sem colocar em meu dedo.

— Ao colocá-lo no dedo indicador direito, você pode se comunicar com qualquer guardião que também esteja utilizando-o.

A ideia me agrada, embora saiba que isso facilitaria a comunicação entre os guardiões e as consequências que isso pode gerar, como a extinção da proteção. De todo modo, coloco o anel em meu dedo e instantaneamente ouço vozes em minha mente. Fico em choque, paralisada, prendendo o ar em meus pulmões.

— Cinco, o que aconteceu? – ouço a voz de Branca, mas estou longe, não consigo respondê-la. – Clarisse, me responda!

— Branca, acabo de ouvir o número Dois avisando Sete que está prestes a encontrá-la.