Os Filhos de Umbra

Capítulo Vinte e Sete: 1994 – 23 dias antes


Capítulo Vinte e Sete: 1994 – 23 dias antes

Se acredito na vida após a morte? Não sei nem se acredito na vida antes da morte!

Acho que acredito na morte durante a vida

Groucho Marx

31 de Outubro de 1994

—Vocês capricharam pro Dia das Bruxas desse ano. –Maria elogiou, nos avaliando enquanto terminava de passar o batom negro nas meninas.

—Não é? Vovó caprichou nas máscaras! –Henrique comemorou, mostrando as máscaras que a Dona Sônia preparou. –Aterrorizante!

—Mais ou menos... –Leo reclamou, enquanto exibia a bola de estrelas que a Dona Sônica transformou de alguma forma numa máscara. –A da Emily parece um pernilongo.

—Ei! –Emily exclamou irritada, mostrando sua máscara alongada de fato assustadora. –Você que é muito novinho pra entender o significado.

—Eu deixei as roupas de vocês pra Berenice ajustar. –Maria falou, sem ligar para nossas brigas. –Então vocês podem passar lá e ir direto pra festa. Acho que eu e a Jas vamos tomar um chá lá para passar o tempo.

No momento, um balde de água fria foi derrubado sobre nós, que nos encaramos em silêncio. Emily passava as mãos nas trancinhas para disfarçar, Belle encarou a distância e Henrique assobiava. Mesmo assim, nenhum de nós mencionou nada.

As coisas com Analícia não melhoraram –aliás, se possível, pioraram. Não íamos pedir desculpas pelos erros dela e ela parecia remoer o ato, nos olhando com o mais puro ódio toda vez que nos víamos. Passamos a evitar Analícia e a visitar Berê apenas quando ela não estava lá. Tentamos explicar para Berenice o que aconteceu, mas ela, sempre dando razão para Analícia, apenas balançou as mãos em desinteresse.

—É só uma fase. –ela garantiu. –Vocês crianças, sempre brigando, daqui a pouco se resolvem. –e sorriu. –Bolinho de chuva?

Agradecíamos e mudávamos de assunto, porque era a única coisa que podíamos fazer, mesmo que não quiséssemos.

Suspirei, ajeitando meu cabelo mais uma vez no espelho e Leo me reprimiu pelo ato.

—Não vai ficar melhor que isso, Pedro. –ele revirava os olhos.

—Ah, cala a boca. –rebatia.

—Meninos... –Maria pedia, terminando de maquiar Belle. –Prontinho, querida.

Belle sorriu para a sua figura no espelho –o seu cabelo tinha dois quilos de gel, para não bagunçar com a máscara, sua pele estava branca pelo pó em contraste com o negro de seus lábios. Ela sorriu para Maria e seus olhos encontraram os meus pelo espelho.

Sorri em aprovação e ela riu.

—Pablo, que tal uma maquiagem pra você também? –Maria sugeriu.

—O Pablo vai passar batom? –Henrique provocou.

Pablo deu de ombros, sem ligar. –Até que combina com a fantasia, Maria.

Belle saiu da cadeira e deixou Pablo a ocupar enquanto rodopiava, satisfeita. O Dia das Bruxas do ano passado tinha sido ótimo e estávamos esperando uma ainda maior quantidade de doces, por isso caprichamos nas fantasias para que elas fossem realmente assustadoras. Dona Sônia, por incrível que pareça, nos forneceu as máscaras e as ideias, se dispondo a fazê-las. Por isso Leo conseguiu sua bola favorita como máscara –independente de quão ridículo que fosse. A minha de chifre era diferente e medonha, e eu adorei a diferença com os anos anteriores. Não estávamos copiando outras pessoas ou profissões ou algo do gênero –estávamos criando fantasias que se destacariam nos olhos das pessoas. Esse Dia das Bruxas seria o melhor de todos.

E a máscara de Pablo ajudava a disfarçar o cabelo estranho dele, o que era outro ponto lucrativo.

Desejei que Dete estivesse aqui conosco, mas ela passou o dia ocupada com a Madame –como sempre, desde que a Madame Belmira chegou na cidade e tomou Dete como assistente e aprendiz. Dete vivia lá, praticamente, e a cada dia podíamos ver seu entendimento melhorando conforme ela olhava o mundo com tamanho encanto e podia dar sentido para tudo que sentia.

Estávamos felizes por ela, por mais que Leo reclamasse dela não ser mais sua parceira –eram reclamações ao vento, já que até ele se alegrava ao vê-la sorrir sem motivo e recitar os significados das cartas.

Falando nisso, eu e meus amigos perdíamos ao pouco o medo de tudo, já ignorando as palavras da Madame. Desde a visita, apenas Analícia continuava estranha, enquanto o resto parecia florescer. Pablo ganhou uma bolsa oficial por seus talentos, Belle faria uma apresentação em São Paulo num teatro graças a sua avó, Leo ganhou ouro na Interclasse, Mel ganhou uma medalha na escola pelos seus estudos, o tratamento de Emily parecia funcionar, Henrique ganhou outra corrida e eu recebi minhas maiores notas na escola. O sol estava no horizonte –eu podia sentir.

Ninguém viu as nuvens se formando.

—Prontinho, crianças. –Maria comemorou. –Vocês estão lindos!

—Realmente, estão dando pro gasto. –Lerina elogiou enquanto saía do quarto, uma toalha no corpo. –Quando é que vão ficar velhos pro Dia das Bruxas?

Arfamos, horrorizados pela possibilidade e ecoamos “Nunca!” bem alto juntos. Ela achou graça, nos ignorando enquanto ia pro banheiro. Até mesmo as relações com Lerina tinham melhorado agora que ela e Belle tinham achado algo que gostavam.

—Essa minha irmã... –Maria reclamou. –Estão prontos pra ir?

—Estamos! –Leo concordou quase pulando. –Valeu, Maria, pela ajuda!

—Oh, imagina! –Maria respondeu. –Não se esqueçam de passar na Berenice, sim?

—Tá, Maria. –Belle replicou, a dando um rápido beijo na bochecha antes de sair. –Te vejo mais tarde, Maria.

—Até, princesa. –Maria sussurrou para ela enquanto nos observava sair para a rua. –Se divirtam!

Passamos para a estrada sob a luz das estrelas e com o som de nossos passos na terra, Leo tentando contar piadas para quebrar o clima de saber que íamos para Berenice. Me perguntei se Analícia estava lá, se estava vendo Berenice dedicar o tempo para arrumar nossas fantasias enquanto provava a dela.

Acabamos ignorando tudo e contando piadas sem graça para passar o tempo até chegar na casa de Berenice, um concurso silencioso rolando sobre quem contava a pior piada do qual eu nunca participava porque era bom demais para o nível de piadas deles.

Emily acariciou o Jumento Voador antes de subirmos os degraus –e ele não teria sido uma ótima fantasia pro Dia das Bruxas? Considerei, mas depois desisti. Quem seria o doido de ir de Jumento?

Batemos na porta apreensivos, esperando Analícia e seus insultos, mas só o sorriso de Berenice apareceu na porta junto com um avental de cozinha –sem dúvida cozinhando. Sorri aliviado ao vê-la.

—Oi, Jumenta Voadora. –cumprimentei. –Viemos buscar nossas roupas.

—Ah, sim, por aqui. –ela instruiu com uma risada abrindo a porta para nós. –Adorei os terninhos deste ano, aliás. Vocês vão ficar chiques.

—Valeu, Berê. –Leo agradeceu, ainda pulando. –Eu também achei o máximo!

—Certo, certo. –Berenice balançou as mãos. –Quem vai provar primeiro?

—Eu! –Leo, Henrique e Pablo exclamaram juntos, brigando quase como cachorros.

Mel não estava tão errada em sua comparação, afinal.

Me sentei na sala, vendo os três partirem para o quartinho de Berenice se trocarem com animação. As meninas suspiraram e me fizeram companhia na sala, balançando os pés para expulsar o tédio.

—Berenice é tão legal, não é? –Mel começou. –Fazendo nossas fantasias e os doces e tudo...

—É. Ela é um anjo mesmo. –concordei.

—Eu ainda me lembro de vir aqui e ela me ajudar com, você sabe. A minha pele. –Mel continua. –Ela foi minha salvadora.

Belle apertou o ombro de Mel em apoio de amigo e sorrimos em conforto, aproveitando a calmaria antes da tempestade para assobiar algumas músicas. Mel e Belle fizeram bico, já que eram as únicas que não sabiam assobiar. Depois de alguns minutos, Pablo, Leo e Henrique apareceram em suas fantasias.

Henrique estava num terno comum com uma espécie de saco na cabeça com furos nos olhos e uma cartola. Sua postura foi valorizada e ele parecia mais alto com sua fantasia, os tons escuros me lembrando uma fantasia digna de Dia das Bruxas.

Pablo conseguiu uma máscara estranha que cobria seus olhos e sua testa e tinha formatos triangulares, como maquiagem de palhaço. Estava com ombreiras brancas com um laço, blusa preta de mangas e uma bermuda preta de tecido suave, com sapatos fechados e encerrados, além das meias longas.

Leo estava num sofisticado terno escuro com uma gola jabour, meias longas e bermuda. O destaque de sua fantasia era a bola estrelada que ele usava de máscara e que cobria seu rosto –eu não sabia exatamente o que era pra ser, mas ele adorou.

—Caraca. –murmurei. –Não ficou bem legal?

—Ficou... Diferente. –Berenice concordou. –Pedro, por que você não vem antes das meninas?

Assim como Henrique, eu tinha um terno simples de gola fechada e gravata e usava calças longas com sapatos executivos. Honestamente, o preto do terno quase brilhava e eu adorei a costura que se moldava no meu corpo.

—Você se superou, Berenice. –elogiei.

—Ah, obrigada querido. –ela riu, me ajudando a colocar a máscara.

Minha máscara branca com um chifre se encaixou com perfeição e me olhei no espelho com o rosto que passaria a conhecer. No espelho, me achei forte e indiferente, como eu queria que fosse. A boca me permitia falar, o que era um ponto necessário do qual eu não abri mão.

Berenice arrumou meu cabelo mais uma vez com cuidado, avaliando.

—Ficou lindo, Pedro. Uma verdadeira criatura do Dia das Bruxas.

Sorri satisfeito, me permitindo sair para me exibir aos meus amigos e as meninas não desperdiçaram tempo em ocupar o meu lugar.

—Estamos tão lindo... –Pablo reclamou. –Vamos ter as melhores fantasias desse ano!

Eu ri, concordando, e Leo comemorou o esforço que demos nesse ano. Sairia tudo perfeito.

Emily saiu primeiro, a máscara dela quase nos fazendo prender a respiração. Usava um chapéu de três pontas, ombreiras e o uniforme de enfermeira, junto com a máscara da peste negra e sua sombrinha na mão direita. Suas tranças ruivas ficaram cada uma para um lado com o gel, dando um ar de criança para a sua fantasia adulta. Ficou absolutamente perfeito.

—Adorei as mangas. Bem surreal. –elogiei e ela rodopiou feliz, balançando a sombrinha.

—As luvas ficaram sensacionais. –Henrique concordou. –Eu que dei essa ideia.

Mel veio depois, um vestido com as pontas rasgadas de gola jabour cujo tecido se estendia até o final do vestido e mangas bufantes, luvas arrastão que cobriam seus braços do vento, um cinto claro em sua cintura e a máscara era o véu com o qual ela veio para cá tantos anos atrás. Mel estava completamente transformada na Viúva.

—Uau. –Leo murmurou. –Ficou muito bom, Mel.

Mel tirou um véu por um instante para sorrir pelos elogios, mas logo o colocou de volta e fingiu ser um zumbi.

Belle veio depois, ombreiras escuras, vestido de mangas longas e luvas com laço na cintura e um tecido leve e volumoso que balançava ao seu redor. Sua máscara cobria seus olhos e pescoço, e tinha uma ponta de chapéu com duas curvas que se viraram para ela. O batom negro realmente combinou com a fantasia, deixando-a com um ar assustador.

Foi praticamente a minha vez de arfar.

Ela girou o vestido, adorando a maneira com que ele se adaptava aos seus movimentos.

—Ficou perfeito, Berenice! Muito obrigada! –ela agradeceu. –Seremos a sensação desse Dia das Bruxas!

—Com certeza, crianças. –ela concordou, arrumando o avental. –É melhor correrem se quiserem chegar a tempo de pegar muitos doces.

Leo nos apressou para fora rapidamente, mas Berenice me chamou. Ela se abaixou para ficar na minha altura e olhou nos meus olhos com seriedade.

—Poderiam cortar caminho pelo rio? Analícia saiu mais cedo para a festa, disse que ia procurar alguma coisa e foi pela floresta... Eu fico preocupada. –ela pediu, sorrindo com doçura.

—Eu não sei, Berê... Analícia –comecei.

—Vocês vão se acertar, Pedro. –Berenice garantiu. –Eu sei que você gosta dela quase tanto eu.

Suspirei. Berenice nunca entenderia.

—Você sabe o que ela foi procurar?

—Não. –ela pareceu triste. –Ela saiu daqui linda de fadinha, asas e tudo, e me falou sobre procurar algo. Mas eu sei que ela não iria aprontar.

Hum. Parecia pra mim que era exatamente o que Analícia iria fazer.

—A gente vai ver se encontra ela no caminho até a cidade ou na festa. –prometi.

—Obrigada, Pedro. Você é um menino de ouro. –Berenice agradeceu, seus dedos acariciando meus cabelos.

—Até Berê! –exclamei enquanto saía.

—Boa festa! –ela desejou.

Quando desci os degraus todos os meus amigos esperavam por mim, Leo quase voando no meu pescoço for ficar entre ele e os doces.

—Berenice pediu pra gente tentar encontrar a Analícia na floresta. –falei, ignorando o drama dele. –Disse que ela saiu mais cedo dizendo que ia procurar alguma coisa.

—Ih, dando uma de Dete? –Henrique murmurou sob a máscara.

—Olha a boca. –Pablo alertou, mas Henrique só balançou o cabelo dele em sinal de brincadeira.

—Falando em Dete, ela nos mandou ter cuidado com as três folhas. Ou algo do tipo. –Leo avisou. –Se bem que ela mal passa tempo com a gente hoje em dia.

—Ciúmes? –Mel perguntou enquanto caminhávamos em direção à floresta, a Lua guiando nossos passos.

—Nem um pouco, tá? –ele rebateu.

—Tudo muito longe, o caminho é deserto... E o lobo mau passa aqui por perto... –Belle começou a cantar para evitar as brigas, uma das poucas vozes que podia ser ouvida claramente pois a máscara não tampava sua boca.

—Nosso primeiro Dia das Bruxas. –falei em lembrança. –A gente comeu tanto doce que passou mal.

—Eu lembro disso. –Pablo riu. –Passei o dia vomitando o excesso de açúcar.

—Que nojento. –Mel reclamou.

—Não precisava saber dos detalhes. –Emily adicionou.

—Como se vocês também não tivessem passado mal. –Leo revirou os olhos. –Aposto que deram até diarreia.

—LEONARDO! –gritaram as duas juntas. –Ora seu despeitado-

—Enfim. –interrompi. –Foi bem legal.

—O Dia das Bruxas sempre é legal. –Belle falou. –É a melhor data do ano.

Concordamos juntos. Dava para ser quem você quisesse no Dia das Bruxas e de quebra ainda ganhávamos doces de todo mundo que nos via. Era uma data que esperávamos o ano todo, e eu devia saber que seria essa a escolhida para dar errado.

Não num aniversário, Natal ou Dia das Mães. No Dia das Bruxas.

Conforme caminhávamos, às vezes gritando um “Analícia!” enquanto passávamos por mais que soubéssemos que ela não iria responder, nem prestamos atenção nos olhos claros que nos espiavam no meio da mata. Estávamos felizes em nosso próprio mundo, com o sol brilhando para nós.

Aí as nuvens chegaram.

Tudo aconteceu muito rápido. Chegamos perto da clareira que dava para o penhasco, ainda conversando sobre os antigos Dias da Bruxas e sobre os doces que queríamos pegar, tomando o cuidado de evitar chegar muito perto ou Belle entraria em pânico pensando em corpos e mortes. De lá, a Lua brilhava com o seu pico de intensidade, iluminando a terra e o rio que passava ao nosso lado e eu podia ver as luzes da cidade, ouvir a festa e quase senti o gosto dos doces.

Então um urro ecoou na noite, cortando o momento.

Quando vimos, era apenas uma criatura feita de ossos. Tinha um vago nos olhos, focinho largo, asas atrás e galhos nas orelhas que lhe davam uma aparência assustadora enquanto o bicho andava em duas pernas. Não tivemos tempo de pensar, racionar ou identificar a criatura conforme ela gritava e corria em nossa direção, e por um momento em imaginei que era Serpente e que minha vida ia acabar. Gritamos de volta, saindo correndo do lugar, cada um numa direção em pânico. Tive a sorte, ou não, de tropeçar na grama e cair com as mãos para o chão, de onde vi pequenos trevos esmagados. As três folhas.

Me virei, pensando em profecias e avisos, quando consegui enxergar a criatura. Não era a Serpente. Não era um bicho. Com a luz da Lua, vi claramente uma figura num vestido sob o crânio de um animal, os cabelos loiros não deixando dúvida sobre a quem pertenciam. E ela continuou urrando e caminhando em direção ao penhasco, sem perceber, até que...

—ANALÍCIA! –gritei, na esperança de um milagre.

Não veio, e eu assisti Analícia dar seus últimos passos e cair do penhasco, o grito dela ecoando até cessar.

Me levantei num pulo, indo para o penhasco para ver se a via, o som de vários “Meu Deus” soando atrás de mim.

—Jesus, Jesus, Jesus, era Analícia? –Mel gritava. –Oh meu Deus, matamos Analícia!

—Vira essa boca pra lá! –Henrique gritou. –Ela que veio correndo e gritando para nos assustador, não fizemos nada!

—O que diabos ela estava fazendo? –Pablo adicionou.

—CALEM! –gritei, não vendo o corpo de Analícia no rio. Já a imaginei se afogando, flutuando e nós a encontrando exatamente como o corpo decomposto que Belle encontrou. –Precisamos chamar ajuda.

—Certo. Certo. –Belle respirou fundo, todos à beira de um ataque de pânico. –Maria disse que ia passar na casa de Berenice, temos que correr.

—Precisamos chamar os bombeiros! –Leo falou.

—E você vai mandar sinal de fumaça, droga? –Belle rebateu.

—Parem de brigar! Querem se acalmar? –pedi.

—Pedro, a Analícia acabou de cair de um penhasco e você quer que a gente tenha calma?! –Emily apertou as mãos. –O que a gente vai fazer...

—Vamos avisar Berenice, pedir ajuda e torcer para Analícia estar bem! –gritei de volta. –Entendido?

Nenhum deles respondeu e eu interpretei como um sinal afirmativo, passando logo para correr de volta à casa de Berenice e ouvindo seus passos atrás de mim, todos correndo pela vida de Analícia. Estávamos quase à velocidade da luz, cortando todo o caminho que conseguíamos até que vimos a casinha de Berenice na distância. Batemos na porta com tanta força que eu achei que íamos quebrar a madeira, todos gritando “Berenice” e “Maria” e “Por favor!”. Quando as mulheres abriram a porta, fui eu quem dei as notícias.

—É a Analícia! –gritei. –Ela caiu do penhasco e precisamos de ajuda!

E a tempestade começou.

(***)

O resgate veio tarde demais, ninguém preparado para a tragédia num dia de festa, no dia da maior festa da cidade. Mãe chamou meu pai, os bombeiros e os outros adultos, enquanto nós, Maria e Berenice íamos para o rio e nós mostrávamos onde Analícia caiu.

Berenice estava com a maior expressão de desespero que eu já vi, lágrimas rolando de seus olhos sem parar por mais que Maria prometesse que tudo ia ficar bem –para ela e para nós, que também chorávamos de pânico. Eu conhecia a morte, mas dessa vez era assustador. Era com Analícia. Era uma criança.

Perdemos a festa, mas não acho que eu ia conseguir comer qualquer coisa pelos próximos doze anos de tanto que meu estômago se embrulhava e eu quase comia minhas unhas fora. Meu pai e os adultos chegaram quando os bombeiros finalmente conseguiram encontrar o corpo de Analícia no rio, trazendo a figura dela ainda com o crânio praticamente intacto, mas seu peito não se mexia.

Berenice foi à frente, indo para segurá-la, abraçá-la, agradecer por terem-na salvado. Mas aí sua expressão se fechou e eu consegui ouvir.

—Sinto muito, dona. –do bombeiro, conforme Berenice se desatava a chorar.

Choramos e gritamos e esperneamos junto com ela até nossos pais pegarem todos pelo braço e nos levarem embora. Passamos na casa de Berenice sem ela para trocar de roupa, já que as deixamos lá, e acabamos largando nossas fantasias lá também, sem cabeça para pensar nas coisas. Na realidade, nossas mães tiveram que nos trocar, pois todos entramos em estado de choque e só conseguíamos chorar e murmurar frases sem sentido, revivendo a cena em nossas cabeças. Se eu soubesse que Berenice olharia nossas fantasias todos os dias imaginando sua filha, eu as teria levado.

Infelizmente, eu só conseguia chorar.

Minha mãe me levou no colo enquanto meu pai levou Leo, e vi meus amigos também serem arrastados. Eu achava que aquele era o mal inevitável e que a culpa de Analícia morrer era realmente minha, que ignorei os avisos e deixei a tempestade começar sem estar preparado. Mas será que Analícia tinha feito tudo aquilo com a esperança de que nós caíssemos no penhasco? Será que ela realmente era tão cruel? Será que foi tudo por culpa da briga? Será que poderíamos ter impedido tudo? Será que a Madame sabia que Analícia iria morrer –ela mencionou perdas na visita- e não falou nada? Por que Analícia fez aquilo? E quem ficaria com Berê nessas horas?

—Pedro, por favor... –minha mãe pedia em desespero quando não conseguia nos acalmar.

Nenhum de nós dormiu naquela noite. Aliás, eu não consegui dormir por uma semana, só o ato de fechar os meus olhos era suficiente para que a cena se recomeçasse em minha mente. Mal me mexia, apavorado, tentando entender o que aconteceu.

Dete apareceu alguns dias depois, um medalhão quebrado em suas mãos e uma oração na boca. Ela teve que me olhar uma única vez antes que eu entendesse.

A tempestade chegou e não tinha terminado.