Os Filhos de Umbra

Capítulo Vinte e Oito: 1994 – 15 dias antes


Capítulo Vinte e Oito: 1994 – 15 dias antes

O efeito da morte sobre aqueles que continuam vivos é sempre estranho, e

muitas vezes terrível, pela destruição de desejos inocentes.

Virginia Woolf

8 de Novembro de 1994

Eu dei duas garfadas no prato antes de ter que voltar para o banheiro, a comida saindo sem minha vontade. Minha mãe suspirou, suas mãos tampando seu rosto quando eu voltei e meu pai tinha um semblante de velório. Leo não tinha nem mesmo tocado na comida. Ao me sentar novamente, eu empurrei o prato.

—Eu não consigo. –lamentei. –Desculpa, mamãe.

Minha mãe tirou as mãos do rosto, tentando um sorriso e falhando, mas pelo menos tentou. Meu pai apertou a mão dela sobre a mesa e ela se esforçou para se voltar para mim com maior esperança.

—Eu vou pegar um copo d’água pra você. Que tal uma vitamina, pelo menos? E pra você, Leo? –minha mãe sugeriu, tentando ser forte por nós.

—Eu acho que aguento uma vitamina. –Leo respondeu incerto, apenas encarando o prato sem olhar nos olhos de ninguém.

Suspirei, detestando o clima depressivo, porém o sentindo dentro de mim. Nada era o mesmo desde a noite do Dia das Bruxas, e eu ainda conseguia ver Analícia dando seus últimos passos. Seus últimos minutos de vida. O mal inevitável.

Minha mãe se levantou para fazer a vitamina e meu pai passou alguns segundos nos olhando, antes de tentar resolver a situação. Seus dedos batucavam a mesa em ansiedade e eu percebi sua apreensão exposta em suas costas e ombros, ambos rígidos.

—Eu sei que estão em dor, mas precisam comer alguma coisa. –ele falou. –Estão dando fios brancos para mim e sua mãe antes do tempo.

—Vocês tem mil anos, é o tempo, não nós. –Leo tentou brincar, mas até sua voz estava seca.

—É. Realmente. –meu pai tentou uma risada. –Mas estão nos deixando preocupados, sua mãe está pensando em levar vocês pro hospital.

—Não estamos doentes. –respondi.

—Estão tristes. –ele continuou. –O que também pode ser uma doença. Por que eu não chamo seus amigos para ver se isso anima vocês?

—Não acho que eles estão muito melhores, papai. –Leo tentou disfarçar.

—Eu sei que não estão, filhote. Otávio me ligou porque a Belle chora durante o sono, Cristina não consegue fazer as meninas comerem, Henrique está passando mal e Vinicius reclama que Pablo está falando sozinho. Vocês precisam um do outro. –ele respondeu, e eu vi a preocupação em seus olhos ao olhar para nós. –Eu não quero perder vocês.

Não mais a preocupação por mim, mas a preocupação por meus amigos me fizeram levantar os olhos, a situação numa nova luz. Eu poderia aguentar o meu sofrimento, mas imaginar meus amigos sozinhos e sofrendo era demais para o meu coração. Eu concordei com a cabeça, decidindo que eu precisava me reerguer eventualmente. E a melhor maneira de fazer isso era do lado das pessoas que também estão sofrendo. E no fundo, eu estava morrendo de saudade deles. Eventualmente o mundo precisaria voltar a rodar.

—Por favor. –pedi. –Chama eles.

(***)

Quando Mel e Emily chegaram, os vestidos delas rodopiando, foi sob o olhar preocupado de Cristina. Ela se abaixou e sussurrou com as meninas, e só peguei algumas promessas pra tomaram cuidado e alguns desejos de melhoras. Ela prometeu que voltaria para buscá-las no final da tarde e que elas se alimentassem, nem que seja à força. Com vários pedidos para que elas cuidassem de si, Cristina finalmente saiu, e Mel e Emily vieram arrastadas. Ao chegar em nós, Mel se tacou em Belle para que elas chorassem juntas e Emily foi com elas. As três se abraçaram fortemente e deixaram a emoção se extravagar pelos olhos.

Todos tinham olheiras sob os olhos, estávamos pálidos e com fome, porém sem coragem para comer. Minha mãe fez vitamina para todos e nos forçou a tomar pelo menos um copo.

—Olha, eu já chorei o suficiente. –Henrique avisou. –Pensei que a gente ia se juntar para melhorar.

—Só de ver vocês já estou melhor. –Mel diz. –Eu achei que ia enlouquecer.

—Cristina está bem louca com segurança agora, super preocupada. –Emily conta. –Com medo de tudo.

—É justificável. –Pablo replicou. –Estão todos preocupados.

—Eu ainda vejo tudo. Escuto tudo. –Belle contou. –Eu não consigo dormir.

—Nenhum de nós consegue. –falei.

—Como será que a Berenice está? –Leo pensou alto, ajeitando o boné de estrela. –Ela deve estar pior que a gente.

—Era a filha dela, né?

—Devíamos ir ver como ela está. –sugeri, me lembrando de minha mãe avisar que Berenice ligou e que gostaria de nos ver. –Dar uma força. Ela também está sofrendo.

—Não sei... Será que ela nos culpa? –Mel retrucou.

—Não foi nossa culpa. –Henrique rebateu. –Não podemos pensar assim. Foi um erro da Analícia, apenas.

—E será que Berenice também acha isso? –Mel ergueu as sobrancelhas.

—Pedro está certo, devíamos ver como ela está. –Belle decidiu. –Nem que seja uma visita rápida.

—Dete podia estar aqui, ela iria nos ajudar. –Leo lamentou.

—Ela está com a Madame. –Pablo explicou, também triste. –Parecia sério. E agora que a Madame está perto de sair de Sococó da Ema, ela quer aproveitar o tempo que sobrou.

—Melhor irmos, então. –Henrique decidiu. –Podemos voltar e jogar um pouco de Banco Imobiliário para distrair.

Concordamos com ele, nosso humor melhorando com a perspectiva de voltar à vida normal. No final, a Madame garantiu que tudo ficaria bem e eu queria acreditar que a tempestade tinha passado. Cometemos erros, mas Berenice era uma chance de nos redimirmos com ela e com Analícia também. Ela poderia não ter sido a melhor pessoa do mundo, mas a morte dela nos machucou muito.

Avisei meus pais que iríamos passar na Berê e eles pareceram radiantes ao nos verem tentar voltar ao normal, nem que seja com uma coisa boba como sair de casa –algo que não fazíamos tinha uma semana. Eu sabia que eles interpretaram isso como um bom sinal, mas foram os últimos passos que eu dei em vida. Mesmo assim, não os culpo por não nos impedirem de sair naquele dia –foi só o último prego de um caixão que vinha se montando há muito tempo.

Saímos, chutando pedrinhas no caminho e tentando encontrar um assunto para conversar que não trouxesse memórias ruins. Não havia nada sobre a última semana que pudéssemos falar abertamente sem que uma nuvenzinha preta se materializasse sobre nós. Falamos sobre o passado, pequenas lembranças de quantas vezes percorremos aquela estrada. Tivemos uma vida feliz, por mais despreparados para morrer que estivéssemos.

Batemos na porta com cautela, esperando que uma Berenice quase zumbi aparecesse. Mas na realidade, a Berenice que abriu a porta não estava tão mal assim.

Berenice conseguiu sorrir para nós, o cabelo arrumado com uma faixa na cabeça e o avental. Ela só... Parecia tão bem. Sua pele estava limpa e a roupa estava passada e combinando, nenhum sinal de lágrimas de luto em seu rosto.

—Crianças! É tão bem ver vocês! –ela comemorou. –Eu estive ligando pra Maria para ver se vocês podiam me visitar... A casa anda tão vazia...

—Entendemos, Berê. –falei por meus amigos. –Achamos que você ia querer um pouco de apoio.

—Sim, Pedro... Obrigada. –ela sorriu, mas eu percebi tarde demais que algo estava errado. –Eu fiz doces... Por que não pegam alguns?

Hesitamos, não confiando em nossos estômagos para segurar comida, mas quando viu nossos rostos, Berenice logo fez uma cara de decepção.

—Mas eu fiz com tanto carinho... –ela começou. –E eu realmente queria conversar com vocês...

—Está tudo bem com você mesmo, Berê? –Pablo perguntou. –Achamos que você estaria...

—Brava? –ela completou. –Não. Vocês são só crianças, não imagino o trauma que sofreram... Eu só queria companhia, sabe, estou tão triste...

Uma grande onda de pena me tomou, a mesma que me convencia a sempre dar uma nova chance para Analícia. Berenice precisava de apoio e ajuda, ela acabou de perder a filha! Precisávamos ajudá-la, afinal, também estávamos sentindo um pouco do que ela sentia. Eu sabia que poderíamos animar Berenice em pouco tempo.

—Claro, Berê. Podemos ficar um pouco com você. –concordei, sorrindo para ela. –Não é?

Meus amigos concordaram de imediato, sem dúvida chegando na mesma conclusão que eu –Berenice nos ajudou tanto durante a vida, nada seria mais justo do que ajudá-la também na hora em que ela mais precisava.

Entenda, era Berenice. Não havia motivo para desconfiar dela, ela cuidou de nós a vida inteira, era uma pessoa boa que ajudava as outras, humilde e que não se importava em dar tudo o que tinha para deixar outra pessoa feliz. Berenice seria a última pessoa da qual eu suspeitaria.

Erros.

Entramos na casa de Berenice de bom grado, ela nos levando para a cozinha onde vasilhas cheias de doces já estavam preparadas, todas as outras portas fechadas. Meu estômago roncou, por incrível que pareça, e eu pensei que poderia comer um pouco –não só por mim, mas por Berenice também. Nos dispomos na mesa de Berenice, ela abrindo os doces com vontade e garantindo que todos pegassem alguns, não largando de nós até que terminássemos.

—Estava uma delícia, Berê. –elogiamos.

Estava um pouco doce demais, como se Berenice usasse o açúcar para disfarçar outra coisa que colocou nos doces. Não pensei nisso na hora, porém, acostumado demais com os doces maravilhosos de Berenice para imaginar que eles fariam algum mal. Até que conseguimos comer alguns enquanto Berenice nos enrolava com histórias de Analícia, sobre sua pobre e linda menininha e do destino que ela sofreu, de tudo que faria para reverter a situação... Sempre nos oferecendo mais quando nossas mãos estavam vazias, e aceitávamos, por mais que não quiséssemos.

Nem percebi quando comecei a ficar com sono. Aliás, o sentimento era bem-vindo e esperado –depois das noites mal dormidas, meu corpo ia apagar em algum momento. Estava tudo tão pesado... Eu sabia que conseguiria dormir, enfim. Vi meus amigos com sintomas parecidos, Henrique encostando na mesa quase dormindo, Mel abafando um bocejo, Pablo piscando para espantar o sono, Leo balançando na cadeira por vontade de encostar em alguma superfície e Belle deitando a cabeça em meu ombro. Eu queria dormir, mas o papo de Berenice, por alguns minutos, me surpreendeu.

—Ela era tão especial e tinha tanto pela frente... Até vocês matarem a minha princesa. –ela falou, enquanto lavava a louça. –Não podia ficar assim. Eu conheço o tipo de vocês, achando que podiam usar a minha boneca e quando ela não serviu mais vocês a assustaram... Vocês causaram isso. Mas tudo bem, porque a mamãe dela vai consertar tudo. Aí vocês vão entender o que é dor.

Tossi, as palavras se borrando em minha cabeça.

—Berenice, do que está falando? –tentei murmurar com a cabeça doendo e todo meu corpo implorando um minuto para dormir.

—Shiu, shiu. Vá dormir, Pedro. Tudo vai se resolver. –ela me acalmava. –Ela gostava muito de você, uma pena que tenha feito isso... Agora vocês vão me devolver o que tiraram de mim, Pedro...

—Berê... –tentei falar. –Berê...

—Eu vou sentir tanto pela sua mãe... –ela continuou, meus amigos gemendo em dor até que cessaram completamente, o peso de Belle no meu ombro me prendendo e eu torcia para ela estar só dormindo. –Mas ela vai ter que sentir o que eu senti... E você vai sentir o que ela sentiu.

Pisquei, sabendo que eram meus últimos minutos de consciência. Eu ia apagar e já podia ver minha visão escurecendo.

—O que você fez... –sussurrei, apagando em seguida.

A última coisa que ouvi de Berenice foi:

A Serpente está voltando...

E não vi nem ouvi mais nada.

(***)

Pedro foi o último a cair no sono, infelizmente. Berenice suspirou sabendo que não tinha muito tempo e que tinha um ritual inteiro para preparar. Felizmente o sedativo era forte e as crianças não iam nem saber o que as atingiu, não iriam acordar tão cedo. Ela queria lavá-los antes de vesti-los, entregar seus corpos limpos para a Serpente em troca do prometido.

Começou com o menor, o pequeno Leonardo. Jasmine estava tão feliz quando ele nasceu –ele era menor que o irmão e muito parecido com o marido. Ela sempre o encarou com muito amor, seu eterno bebê. Celebrava a vinda de uma companhia para Pedro, por mais que Leo tivesse trazido dificuldades para a família, Jasmine não poderia o amar mais. E Berenice lamentava, pois sua amiga era tão doce para merecer um filho assassino. Ela também ficou eufórica com a vinda de Analícia, sua tudo. Jasmine teve dois filhos, Berenice teve uma, Vinicius tinha três. Analícia era seu mundo desde que nasceu, sem ela, o que ela faria? Como Jasmine conviveria com essa dor, essa angústia?

Não. Ela tinha certeza de que sua amiga faria exatamente o que ela estava fazendo, caso a situação fosse invertida.

Banhou Leo com cuidado, até com o cuidado de lavar seu cabelo antes de vesti-lo na fantasia da festa que ele havia deixado em sua casa –todas as roupas lavadas e passadas antes de serem entregues para a Serpente. Ela o colocou no círculo mágico em volta do círculo onde o crânio entraria, a última coisa que ela usava –seu rosto, agora. Todo o círculo estava decorado com os símbolos que as Sombras a orientaram a fazer, runas antigas que ela não tinha certeza se foi ela quem fez ou as sombras em sua cabeça. Leo foi colocado perto da porta, a máscara já em sua cabeça antes que ela o marcasse.

O próximo foi Henrique, cuja máscara ela havia costurado os olhos num acesso de raiva. Ele não tinha direito de ver quando tirou de sua filha a própria visão que a fez cair no penhasco. Ele não tinha direito à vida! Mas ela se encontrava satisfeita de ver que tudo ainda se encaixava perfeitamente, e mais um boneco foi colocado para a Serpente antes de ser marcado. Todos seriam. Como ovelhas.

Ela olhou o relógio –estava gastando muito tempo. Mas, por outro lado, ainda havia tempo. O ritual precisava começar à noite, a Serpente orientou. Ela queria deixar tudo pronto até lá.

Ela fez Emily depois, só pelo desafio. A fantasia da menina era elaborada e ela até mesmo recriou as trancinhas com gel, tudo perfeito. Até mesmo as luvas foram encaixadas com cuidado depois que a pele dela foi devidamente marcada, e Berenice não lamentou a ida daquela bruta –sempre provocando sua anjinha.

Decidiu arrancar logo o curativo e fez Pedro em seguida, tendo a bondade de arrumar o cabelo do menino do jeito que ele gostava. Uma parte dela queria raspar, ver o que ele acharia de acordar assim, mas tudo precisava recriar a morte de sua filha, então ela deixou o cabelo dele passar. Vestiu suas roupas e máscaras, o marcando enquanto tentava não pensar em Jasmine e Olavo. Ela não iria fraquejar agora.

Pablo veio depois, o filho de Maria. Menino talentoso, poderia ter um grande futuro –assim como sua preciosa filha. Tentou ser o mais breve possível, vendo o relógio passar enquanto ela era cuidadosa com os corpos. Não queria que nenhum deles se machucasse demais, fosse apertado com força, independentemente de sua vontade. Eles precisavam ser entregues à Serpente como estavam e daí a Serpente iria garantir que fossem devidamente punidos.

Escolheu a Viúva em sequência, a menina tão doce que ajudou a se libertar de sua máscara apenas para colocá-la novamente nela. Era uma pena a garota ter ido nesse caminho, Berenice estava disposta a ajudá-la a qualquer custo. Que desperdício... Se ela soubesse que a menina mataria sua filha, teria a aniquilado primeiro. Não deixaria nada ameaçar a sua pequena –e nunca mais, ela prometeu para si. Nunca mais Analícia iria sofrer.

Escolheu Belle por último por querer apreciar o momento. Analícia sempre reclamava da garota que se achava mais importante que ela, que era amada do jeito que Analícia deveria ser. A talentosa Bailarina de Sococó da Ema. Soube que a menina faria uma apresentação num teatro de São Paulo numa peça como coadjuvante, mas que teriam olheiros –sua grande chance de se mandar, se ela não tivesse causado o que causou.... Berenice sentiu prazer pela filha sabendo que iria acabar com os sonhos de Belle como Belle acabou com os de Analícia, e o pensamento a deixou feliz durante todo o tempo que gastou na maquiagem.

Acendeu as velas ao redor dos corpos, pois o fogo atrai as almas penadas, e retocou seus símbolos no círculo mágico, invocando a presença das Sombras, que logo se manifestaram em suas paredes e tetos, em suas veias. Com a permissão delas e a Lua se iniciando no céu, Berenice deu início ao ritual.

(***)

Dete assobiava uma canção enquanto varria a tenda, um pequeno pedido da Madame enquanto ela saía para buscar algo para elas jantarem. Dete não reclamou, estava varada de fome. Talvez, se fosse algo gostoso, ela pudesse levar para Pablo e ele se animasse um pouco...

Pablo e Leo eram as pessoas mais importantes de sua vida junto com seu papai. Ela só queria protegê-los de tudo, usar seus dons para ajudar a família, para fazer o bem e impedir tragédias como a de Analícia. Como ela não conseguiu ver o que aconteceu?

A Madame sentiu muito pela tragédia, culpando a Serpente pelo acontecido, por ter ocultado o que viria das cartomantes. Ela passou horas sentada encarando as cartas em busca de respostas que não recebeu, apesar de seu inegável poder. Ela não conseguia se perdoar por ter deixado aquilo passar.

Dete a admirava tanto –sonhava com um dia ter o poder e o controle de Belmira, de viver de seus talentos e de oferecê-los a todo tipo de pessoa em busca de um guia, ser conhecida como a famosa Madame Creuzodete, a grande vidente. A Madame poderia mandá-la focar em seus estudos, mas era tanto o que Dete queria que ela continuava visualizando para atrair.

Pequenas dores ocuparam a mente de Dete, um sinal para que ela se preocupasse que ela ignorou por culpa do cansaço. A noite caía e ela precisava voltar pra casa, forçar seu irmão a comer algo e segurar sua mão para que ele conseguisse algumas horas de sono. Tão focada nele e em seus afazeres, Dete continuou ignorando suas dores e sentidos até que passou pela bola de cristal, que brilhou para ela em um pedido.

Dete mordeu o lábio, não querendo mexer. A Madame tinha regras muito rígidas sobre seus materiais, cada um com uma história e característica. Mesmo assim, a tentação era grande demais para Dete, que largou a vassoura e tocou a bola.

Seus dedos queimaram com a força da conexão, e ela viu. Viu Berenice em seu círculo, o canto chamando a Serpente enquanto oferecia o crânio de jumento para sua filha e a pedia de volta, em trocas das almas condenadas das crianças. Dete viu seu irmão, marcado com a runa de Ior da qual a Madame tanto evitava falar, desacordado. Dete viu tudo num segundo, uma espécie de flash antes que o ritual fosse ocultado novamente.

Seu coração se acelerou demasiadamente, perigando sair pela boca. Ela pensou por um instante antes de concluir que não era a hora de pensar e que se pensasse demais sua asma ia atacar –ainda mais com a poeira que estava tirando. Não. Dete precisava agir, precisava tirar o crânio de Berenice. Seu irmão e amigos já estavam marcados e ela não queria chegar tarde demais para salvá-los, mas teria que atravessar a cidade onde a Madame estava agora localizada e o tempo estava passando e-

Não. Era seu irmão. Pelo menos sua vida ela iria salvar.

Dete saiu correndo, ignorando a carta da Morte do Tarot de Marselha que caiu quando ela saiu. O destino estava traçado.

Ou não.

(***)

Sim. Passe as almas para mim...

A Serpente mandava e a boa serva obedecia, o fogo das velas queimando ao seu redor. Ela conseguia sentir a Serpente percorrendo suas veias, sua voz um chamado doce em sua mente. A Serpente não mentia e a Serpente lhe daria sua menina. Ela deu as almas sem pestanejar, recitando os pedidos na língua perdida. As velas queimaram mais forte e tudo se iluminou quando sua filha saiu pela porta, os cabelos cobrindo o seu rosto. Berenice quase chorou a abraçando de saudade, ambas caindo no círculo mágico em gratidão. Só faltava o crânio e elas estariam juntas novamente e aí Berenice cuidaria dela com sua própria vida.

E então a Serpente foi a primeira a perceber algo errado, Berenice sentindo sua decepção. Antes que pudesse se perguntar o que aconteceu, as velas se acenderam como enormes fogueiras, espalhando calor que deu origem a um incêndio na casa. Berenice estava sem entender o que estava acontecendo quando um pé chutou o crânio para longe e a casa explodiu em chamas, a luz queimando seus olhos quando viu Dete no meio do incêndio e sua voz foi carregada de ódio.

—O que você fez? –ela berrou.

—Eu só tirei o crânio de você. –a menina respondeu, arfando. –O seu ritual explodiu porque você prometeu almas corrompidas. Meu irmão e seus amigos são inocentes!

—Mentiras! –Berenice gritou, apesar de sentir pela Serpente que de alguma forma a transação não foi devidamente feita. –Me devolva o crânio!

—Você matou meu irmão, sua bruxa!

Dete continuava arfando, parecendo ter dificuldade para respirar. Aí Berenice se lembrou –a menina tinha uma asma séria. Ela ia morrer com tanta fumaça e as saídas estavam bloqueadas pelo fogo, exceto a porta para Umbra. Berenice se perguntou se a menina faria isso, um sorriso sádico no rosto ao saber que ela morreria e ela poderia recuperar o crânio.

Quando já pensava em comemorar sua vitória, uma figura apareceu vinda da Porta. O Violinista. Apesar de confuso, pareceu sentir parte do desespero que Dete sentia ao ver a irmã em meio ao incêndio, o fogo lambendo seu corpo.

—Você precisa fugir daqui, agora! –ele mandou. –Vem comigo!

—Não posso passar para Umbra! –a menina gritava, sem dúvida seus sentidos a diziam para onde aquela porta estava direcionada. –Precisa levar o crânio para lá!

E o menino apressou a outra para sair, levando o crânio para Umbra com um olhar de raiva para Berenice.

—Não, não, não! –Berenice gritou, enquanto sua filha a perguntava o que estava acontecendo. Apesar de seguras no círculo mágico, Berenice não podia entrar em Umbra. E foi pela porta que o menino passou, levando consigo o crânio e o rosto de sua filha.

—Mamãe... –Analícia murmurava num choro ao seu lado.

—Vocês vão perder. –Dete tentava passar entre tossidas, mas saiu correndo quando tudo ameaçou desabar.

Berenice torceu para que a casa desabasse sobre ela, enquanto estavam seguras no círculo mágico. E ambas choraram a maldição de Analícia, pois Berenice ainda não conseguia tomar conta dela. Ela falhou em sua missão com a Serpente, por mais perfeita que tenha sido a execução de tudo. E era tudo culpa das crianças, o estado condenado ao qual sua menina ficaria presa. Sem rosto. Sem vida.

—Vamos nos vingar, amor. –ela prometia. –Vamos nos vingar.

Dete saiu correndo da casa, mas já se encontrava fraca demais pela corrida, pela fumaça, pelo fogo, pelo próprio cansaço. Seus pulmões não pareciam querer encher e seus olhos lacrimejaram pela força de se manter viva. E mesmo assim, ela fracassou em salvar a alma de seu irmão, apenas atrasou o inevitável. A Madame devia saber de suas falhas, por isso afirmava que ela nunca seria uma Madame. A verdade doía.

—Dete! –Pablo gritou, e Dete ficou grata por seus dons nem que seja para vê-lo. –Dete, precisamos chamar o papai.

Dete tossiu mais, seu corpo dando seus últimos espasmos enquanto sua carne queimada latejava.

—Cuide... Disso. –ela apontou o crânio. –Longe... Dela...

Pablo concordava sem entender por mais que Dete conseguisse ver que ele queria chorar e não podia. Ao tocá-la, Dete sentiu seu toque frio e lamentou ainda mais.

—Não... Salvei. Você. –ela continua. –Morto...

—Estou morto? –ele ecoou. –Oh, Dete...

E a noite continuou com o grito da Madame, que apareceu na floresta tarde demais para fazer algo, mas a tempo de encontrá-la. Pelo menos alguém achou seu corpo e Dete poderia ser enterrada corretamente. Ela estava encantadora, mesmo com o vestido sujo de terra, o turbante meio caído e o suor decorando suas feições.

—Não, Dete, não! Isso não estava escrito! Não! –ela chorava.

—Acho que eu não servia pra Madame... –Dete tentou se comunicar entre tossidas. –Adeus, Madame.

A Madame chorava quando Dete deu seu último suspiro, a vida se esvaziando de seus olhos. A Madame praguejou o céu e o mundo conforme o fogo queimava e os outros filhos de Umbra apareciam no local, todos se sentando perto da menina em seu lamento. Alguns perceberam que não conseguiam falar em voz alta e todos estavam assustados por acordarem em suas fantasias. Algo muito grande estava errado.

—Madame Creuzodete... –A madame murmura em reverência, pegando o turbante da menina e colocando em si. –Eu honrarei você, pequena amiga.

—O que aconteceu? –Pablo perguntou em desespero, pânico, em tudo. –Eu quero a minha irmã!

—Ela morreu. –A Madame lamentou, segurando o corpo dela com amor. –Eu sinto muito, Pablo. Você também está morto.

—Não! Não estou! –ele brigou. –Você é uma doida!

—Não, Pablo, me escute –a mulher começou, mas o menor gritou e saiu correndo, tentando evitar a situação.

Seus amigos, como sempre, o seguiram floresta a dentro, a casa de Berenice agora apenas um ponto de fumaça no céu. Pablo corria tão rápido quanto seus pés o levariam, o crânio que Analícia usava seguro em suas mãos. Dete o tinha mandado proteger aquilo, sabe-se lá o motivo. Dete. Sua irmã estava morta, a pessoa com a qual ele brincava de boneca, fazia comida e abraçava quando estava com medo estava morta. Sua irmã era tão nova... Ele queria chorar, mas as lágrimas não saíam de seus olhos. Seu corpo estava todo errado, pesado e ele não sabia o que estava acontecendo. Tudo o que passava em sua mente era tentar lembrar do que aconteceu –eles haviam ido para a casa de Berenice e quando Pablo acordou foi na terra atrás da casa de Berenice com o fogo queimando até que ouviu a voz de sua irmã e ele teve que ver o que aconteceu.

Pablo não sabia exatamente para onde estava indo, mas acabou vendo uma pequena luz. Seguindo ela, o cenário que se seguiu era exuberante e familiar, o Lago de Sococó da Ema só que como um rio infinito. E na borda, a luz de Dete o atraiu, enquanto a menina sorriu para ele.

—Pablo! –ela cumprimentou.

—Dete! –ele gritou. –Dete!

Ele a abraçou, e dessa vez conseguiu, palavras morrendo em sua boca enquanto segurava sua irmã nos seus braços. Ela não estava morta, viu Madame, ela estava aqui! E agora era só eles voltarem para o chalé e tudo-

—Não, Pablo, não. –Dete balançou a cabeça, saindo de seu abraço. –Eu morri de verdade. Você morreu de verdade.

E Pablo, se pudesse, teria empalidecido. Não havia como, porém, então ele só abriu a boca em descrença.

—Eu sei, eu sei... –Dete suspirou. –É difícil de explicar.

—Me permita, criança. –uma voz funda falou perto deles.

Quando Pablo olhou, percebeu que não estavam sozinhos. Uma mulher macabra estava com eles, vestido preto longo decorado com caveiras, uma capa longa com capuz que cobria seu rosto, longos lábios negros. Pablo se posicionou na frente de Dete para protegê-la, mas a menina saiu assim que ele tentou. Percebeu que ela saía de um barco estacionado na costa.

—E quem é você? –ele perguntou. –A mulher do barco?

A mulher não abriu um sorriso, mas sua voz soou mais bem humorada. –Me chame do que desejar. Sou conhecida por vocês como Dona Morte. –explicou. –É minha responsabilidade o transporte das almas pro inferno ou pro céu.

—E você vai nos levar? –Pablo perguntou, tentando segurar a mão de Dete.

—Apenas a garota poderá ser transportada comigo. –ela avisou. –Você e seus amigos não estão mortos, nem vivos. São corpos transformados em espíritos, criança. Estão condenados à Umbra agora.

—Isso não faz o menor –

—E possuem o selo da Serpente. –a mulher adicionou.

—Para com isso! –ele gritou. –Droga, eu não estou entendendo nada!

Dete suspirou, o fazendo olhar para ela enquanto a menina usava seu melhor olhar de determinação para que ele entendesse.

—Berenice fez isso com vocês. Ela trocou as almas de vocês sete em troca da alma de Analícia, um trato com a Serpente. Sabe. O Mal primordial. –ela engoliu em seco, detestando tocar no assunto. –Vocês não eram culpados e o ritual explodiu antes que Analícia pudesse ser realmente trazida de volta à vida, mas ainda há chances dela conseguir. Precisa proteger esse crânio, é tudo que Berenice precisa para completar o ritual. Ela não pode entrar em Umbra, então o crânio está seguro aqui. Eu não sei de tudo, ainda, mas a Madame deve saber e aí-

—Mas o que é Umbra? –ele perguntou. –Onde estamos?

—No purgatório. Ou limbo. –a mulher do barco respondeu. –Onde as almas esperam para serem transportadas.

—Estamos presos no purgatório? –ele sussurrou horrorizado. –Mas só passamos por uma porta, não podemos só voltar pro outro lado?

—Berenice os amaldiçoou. Só quando ela entrar em Umbra as suas almas serão libertadas. –Dete o elucidou. –Eu sinto tanto, Pablo...

Pablo abraçou a irmã, odiando vê-la em dor. A menina o segurou firme com medo dele se dissipar em sua frente, e eles mal perceberam quando o resto dos Filhos de Umbra os encontraram, perdidos em seu próprio mundo. Nenhum, felizmente, se pronunciou.

—Não se preocupe. Eu vou manter o crânio escondido e vou dar um jeito de jogar Berenice por aquela porta. –ele prometeu. –E aí eu encontrarei você no céu?

—Provavelmente. –ela riu, o abraçando. –Eu vou sentir tanto a sua falta...

—Eu sei. –ele quase chorou, até se lembrar de que não podia chorar. Mesmo assim, sua voz estava embargando.

—Eu posso proteger o crânio. –a mulher do barco sugeriu. –Ele estará seguro comigo.

Pablo hesitou, abraçando o crânio com mais força. Dete pousou sua delicada mão sobre a dele, num gesto de carinho.

—Pode confiar, nela, Pablo. –a menina garantiu. –Ela não é a Dona Morte sem motivo.

Pablo, ainda assim, estava desconfiado. –Promete cuidar disso com a sua vida? Digo, com a sua morte? Será que você está morta ou nunca nasceu e é só um –

—Esse crânio não sairá de meu domínio enquanto você não assim desejar. –ela garantiu. –Uma tempestade está vindo e se a menina recuperar seu rosto o mundo inteiro irá sofrer.

Pablo concordou com a cabeça, vendo que a mulher desejava o mesmo que ele e lhe entregou o crânio num ato de confiança que a mulher pareceu retribuir, sua boca quase se abrindo num sorriso porém nunca chegando no ato. Sua aura pareceu mudar, porém.

—Seu tempo se esgotou. –ela se virou para Dete. –Precisa vir comigo se deseja sair desse plano e alcançar o caminho dos céus.

Dete abraça Pablo uma última vez, seus pequenos braços se enroscando em seu pescoço. Pablo quis decorar os detalhes sobre ela –suas manchinhas no nariz, a textura de seus cachos, os olhos verde acastanhados que a mãe deles tinha, o formato de seu rosto e a sua voz. Seria a última vez que ele a veria.

—Eu amo você. –admitiu para ela, não pela primeira vez.

—Eu também amo você. –ela correspondeu. –Amo tanto. Amo todos vocês.

Dete o largou para se despedir de todos com um abraço, sem tempo para palavras de despedida. Suas mãos apertaram o tecido do terno de Leo, todo o seu ser desejando mais tempo com o rapaz sem se importar com o fogo que saía dele. Havia tanto que ela tinha vontade de fazer com ele e não havia tido tempo. Seu melhor amigo estava ficando.

Talvez, dado o tempo, eles poderiam ter sido mais que isso.

—Adeus! –ela desejou antes de subir no barco, sua forma logo sendo perdida dentre a neblina e os joelhos de Pablo falhando, o fazendo cair.

Seus amigos estavam lá para segurar sua forma, e Pablo lamentou não poder chorar nesse novo estado. Era tudo o que ele desejava –chorar por si, por Dete, por seus amigos. Amaldiçoar Analícia e sua mãe com todas as suas forças, mas Belle não o permitiu isso por muito tempo, sempre a primeira a exigir as coisas, a abrir seu caminho a sua maneira. Ela agarrou seus ombros o fazendo encarar sua máscara, olhos sem pupilas brilhando na noite.

—O que aconteceu conosco? –ela exigiu saber.

E Pablo decidiu contar. Se vingariam de Berenice depois, naquele momento eles iriam dividir a própria dor entre si e lamuriar as vidas que se perderam.

A tempestade havia finalmente chegado.