Os Filhos de Umbra

Capítulo Vinte e Nove: 1994 – 0 dias antes


Capítulo Vinte e Nove: 1994 – 0 dias antes

Não temas a morte - quanto mais cedo morreres, mais tempo serás imortal.

Benjamin Franklin

23 de Novembro de 1994

Durante várias horas, não soubemos o que fazer ou como continuar, apenas nos abraçamos durante um longo período que nem o relógio poderia calcular. Quando nos cansamos de ficar parados e não fazer nada, precisamos pensar aonde iríamos.

Nenhum de nós se sentia psicologicamente preparado para encarar os pais, se já sentiram nossa falta ou se ainda estavam vivendo a ilusão de que voltaríamos pra casa a tempo do jantar. Não sabia se minha mãe me enxergaria, se enxergaria Leo e suas chamas em verde-bandeira, se choraria ou se gritaria ou nos condenaria. Não queria ver sua reação, para ser sincero. Será que ela me culpava esse tempo todo pela morte de Analícia também e eu apenas nunca percebi nada?

Como não podíamos encontrar nossos pais, seguimos a floresta para achar a Madame. Foi ela quem chamou a polícia e os bombeiros, Berenice desaparecendo da cena nesse meio tempo e Analícia em nenhum lugar para ser encontrada. Soube depois, pela voz da Madame, que o próprio incêndio atraiu nossos pais, que Vinicius agarrou o corpo de Dete junto a si e chorou durante horas até que foi fisicamente separado para que a menina fosse levada ao IML e todos se indagavam onde estavam os outros corpos –os corpos das sete crianças que foram visitar Berenice naquele dia. Nem mesmo o fogo teria destruído todos os vestígios, mas nada além de nossas roupas queimadas foi encontrado.

—Sua mãe pensava que Berenice tinha levado vocês para algum lugar seguro. –a Madame contou, uma xícara de chá quente liberando fumaça e os olhos fundos de chorar. –Ela estava realmente desesperada.

Os grupos de busca não encontraram nada naquela noite, porém. Nem Berenice, nem crianças, nem corpos.

Dete foi enterrada poucos dias depois no cemitério perto da cova de sua mãe, praticamente todos se juntaram para se despedir dela e foi mais chororô. Observamos de longe mesmo sabendo que não nos veriam, a Madame a única que olhou em nossa direção durante todo o tempo. Pablo coçava os dedos pelo seu violino, mas nenhum de nós tinha tido a coragem ainda de buscá-lo. Meus pais estavam um caco, olheiras gigantes e olhos vermelhos, pareciam até ter perdido peso. Eu não poderia ler suas mentes, mas sabiam que estavam imaginando o funeral de seus próprios filhos.

Tentamos procurar Berenice alguma vezes, mas ela trancou a porta e sumiu com a tal chave, a Chave de Ossos que vimos na bola da Madame, e não queríamos ainda trombar com Analícia. Falando em Madame...

—Vocês estão cada vez piores. –a Madame comentou quando chegamos em sua tenda pela última vez. –Precisam se reerguer. Procurar Berenice pelas florestas não irá adiantar, ela já está bem longe de Sococó da Ema a essa altura.

—O que sugere que façamos? –retruquei irritado. –A senhora disse que ficaria tudo bem!

Morrer não vem com manual de instrução –era apenas um sentimento frio dentro de você, uma decepção e um senso de quem não pertence mais à esse plano. E estávamos reagindo como podíamos.

A Madame tomou um longo gole de chá, o que vinha fazendo bastante desde a morte de Dete. Ela fechou a tenda em luto e se afogou nas cartas por algum tempo, tentando enxergar onde errou. O turbante colorido que ela usava ainda era o Dete e eu não sabia exatamente o que ela planejava fazer –certamente ela não ia ficar em Sococó da Ema depois do que aconteceu.

—Pois façam como eu e parem de se lamentar e comecem a treinar. –ela respondeu brava. –Vocês são seres poderosos, eu posso sentir. Possuem dons paranormais –invisibilidade, levitação, aparição... Treinem isso e se tornem mais fortes. Se quiserem derrotar Berenice, precisarão usar isso.

Ficamos quietos, digerindo as palavras dela. Ela estava certa, como sempre, e precisávamos parar de vaguear a floresta num círculo sem fim que não daria em nada. Estava passando da hora de “fazer a limonada” dessa nova condição.

—E tem mais uma coisa. –ela adicionou. –Espíritos ou fantasmas, em geral, tem... Auras? Muito parecidas. Eles soltam ondas eletromagnéticas que podem ser capturadas por aparelhos já existentes, diminuem a temperatura de locais, em maioria são seres cheios de mesmice. Vocês, no entanto... Vocês são diferentes. Cada um possui uma... Frequência, digamos assim, pelo menos para minha sensibilidade.

—E você quer chegar em...

Talvez, Pedro, –ela começou –isso signifique que tenham dons diferentes.

—Dos outros fantasmas?

—Entre si. –ela respondeu. -Se for verdade, irão descobrir eventualmente. Precisam estar em controle de suas novas formas, crianças, isso é importante. Agora, precisamos tratar de outros assuntos.

Calamos.

—Estarei deixando Sococó da Ema amanhã. –ela anunciou. –Quando retornar, espero encontrar vocês em sua melhor forma. Vocês... Esconderam bem o crânio?

—Está com a mulher do barco. –Pablo falou, com a cara de confusão da Madame, ele especificou. –A Dona Morte.

—Oh, sim. Que bom que a conheceram. –ela apertou os dedos, nervosa. –Dete fez a passagem?

—Fez. Ela foi para o céu. –Pablo a acalmou. –Ela vai ficar bem.

—Sim, sim. –a Madame discretamente limpou algumas lágrimas que teimaram em escorrer. –Fico feliz. Imagino que ela iria ficar feliz com o que vou fazer, se estivesse aqui.

—E o que a senhora vai fazer, Madame Belmira? –indaguei curioso, cruzando as pernas na cadeira. A mulher, em troca, me deu um sorriso.

—Podem me chamar de Madame Creuzodete a partir de agora. –ela anunciou. –É um nome apropriado.

No dia seguinte, a Madame juntou a tenda e foi embora, nos instruindo a ficar mais fortes e a encontrar a chave. Ela prometeu monitorar a situação e fazer tudo o que fosse necessário para nos ajudar, no fundo por Dete e por si, que não conseguiu enxergar a situação antes do acontecido. Eu tinha certeza de que a Madame não cometeria o mesmo erro duas vezes e também a veríamos mais forte em seu retorno.

Eu fui para casa com Leo pela primeira vez naquele dia, temendo o que encontraria. E acabou sendo pior, minha mãe ainda deitada em minha cama com um copo de café, seus olhos derramando uma cachoeira de lágrimas em meu travesseiro enquanto ela remoía nossas fotos antigas. Eu poderia falar com ela, se desejasse, ao contrário de Leo. A Madame garantiu que pessoas normais poderiam nos ouvir, por mais que não pudessem nos ver ainda. Mas eu não queria. Eu não era egoísta a esse ponto, e saber que eu estava presente só a magoaria mais, talvez a enlouquecesse. Eu não permitiria que isso acontecesse, então tomei a decisão mais difícil que eu já tomei na vida: eu fui embora.

Porque, para ela, seria melhor pensar que eu tinha morrido, e não imaginar o monstro que me fizeram.

Leo segurou minha mão quando voltamos, a dor dele um reflexo da minha. Eu ainda o encarava sem entender a bola de fogo, e sentia saudade do seu rosto. Do seu sorriso. Do seu cabelo bagunçado com cada fio para um lado. Dos seus olhos acastanhados. De ver o meu irmão, e não um espírito numa fantasia.

—Nós vamos consertar isso. –prometi. –Algum dia, nós vamos abraçar ela de novo.

Tomara, eu o senti responder.

Quando nos encontramos de novo, foi no cemitério da cidade. Pablo tinha recuperado o violino e estava tocando com pesar, uma dor que saía dele e se espalhava com as notas. Nos reunimos ao seu redor, encarando o túmulo de Dete. Se ela não tivesse se sacrificado, Analícia teria voltado à vida e provavelmente não haveria a menor chance de tacá-la de volta para Umbra.

Não contei. Senti as palavras de Mel, como se fossem meu próprio pensamento.

Nenhum de nós contou. Pensei de volta, espalhando as palavras.

Era uma estranha conexão, existir assim. Como se fôssemos partes uns dos outros, ligamos pelo mesmo fio ou, no caso, pela mesma maldição. As palavras não tinham forma, não eram letras numa página em branco, eram sentimentos, era um telefone sem fio. Era... Uma língua nossa. E não contei era arrependimento, era uma lamúria, era tristeza, era um pedido de ajuda.

Depois que Pablo colocou seu coração para forma em forma de canção, Bailarina suspirou.

—Eu espero que você saiba um pouco de Tchaikovsky, pois eu não passarei a eternidade sem dançar. –ela anunciou.

Quando ele trocou a música, Belle fez sua apresentação em meio às covas. E foi a coisa mais linda que eu já vi, por mais que ninguém mais pudesse.

Nossas buscas duraram quinze dias, a metade de um mês. Com a falta de resultados e de rastros para seguir, não havia mais o que fazer a não ser nos declarar mortos. Cristina brigou com o resultado, eu tenho certeza, mas o delegado foi claro: não iriam gastar as buscas com os mortos. Não poderíamos nem mesmo ter covas devidamente feitas, pois não havia corpos para enterrar e foram contra a ocupação de espaço no cemitério da cidade. Depois de mortos, não tivemos nem o direito de um enterro decente. Nossas famílias insistiram numa cerimônia, porém, então a fizeram no último lugar que estivemos –atrás da casa de Berenice, em Vinte e Três de Novembro.

Sônia orquestrou tudo, nos surpreendendo. Ficamos parados para observar o desenvolvimento e vimos com surpresa as marcas de Ior serem levantadas como cruzes, os outros adultos nem percebendo o que aquilo significava. Aquela marca estava cravada em nossos pulsos, como eles sabiam? Como Dona Sônia sabia?

Nossas famílias trouxeram crisântemos, lírios e rosas brancas que penduram nas marcas de Ior. Parecia errado, mas não criticaríamos o ato. Todos vieram vestidos de preto, dos pés à cabeça. Até mesmo as botas eram pretas pela terra.

Meus pais vieram, Seu Vinicius, Seu Otávio, Seu Matheus, Dona Rosa, Maria, Cristina e Lerina. Foi um funeral extremamente reservado, e o padre foi o último a chegar, num ato de respeito por nossas mães, que eram ativas na Igreja, vestindo um traje cinza, a barba por fazer e os óculos meio caídos no nariz. Os presentes se organizaram ao redor das cruzes dispostas, minha mãe num lindo vestido preto de gola redonda com o chapéu combinando, os olhos sempre voltados para baixo em um choro baixo. Meu pai também chorava silenciosamente, não abandonando o chapéu de palha. Aliás, todos os presentes derramavam lágrimas na tarde presente enquanto o céu escurecia ainda mais. Uma tempestade sem cessar.

Quando o padre começou as exéquias, nos aproximamos do funeral, praticamente caindo no chão perto de nossos pais.

—Deus todo misericordioso, abriga essas almas infantis em Teu abraço e leve elas até o Reino dos Céus, acalma teus corações despreparados e permita-as alcançar a Glória eterna, ó Pai!

"Sabe, Pepê, você é o melhor irmão do mundo"

—Abra os portões do céu, Deus todo poderoso, pois sabemos que nossa existência é tão rápida quanto nuvens passageiras.

"Pedro. Você é o melhor responsável do mundo. Nós confiamos em você."

—Coloca essas almas sob Teu Braço, Pai, sob Tua Mão.

"Eu não gosto de você e não quero ser seu amigo! Quer saber, eu odeio você!"

—Cuida para que eles decorem o teu jardim, Senhor, e consola os corações das famílias, para que saibam que o Senhor está cuidando de tudo.

"É Isabelle para você, seu idiota."

—Podemos não entender Teus motivos, Deus de tudo, mas confiamos em Ti.

"Os pais dela morreram, então ela vai morar aqui. Nada que seja da sua conta, bonequinha."

—Nenhuma flor abre as pétalas, nenhuma borboleta bate as asas e nenhum bebê nasce sem Tua permissão, Senhor.

"Ninguém vai morrer, Belle, relaxa."

—Permita que essas crianças façam a transição em paz e que sejam aceitas em sua morada com a mesma alegria que expressavam entre nós.

"Isso aqui é o paraíso."

—Que seus anjos possam segurá-las em seus abraços, que elas possam dançar e cantar em meio aos Teus guardiões e que encontrem os falecidos parentes.

"Eu já tenho tudo que preciso, filho. Tenho você e seu irmão."

—Pois como Teu Filho dizia: “Deixai vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a elas”.

"Quero que saiba que a gente vai ficar do seu lado pro que der e vier."

—E que cubra as nossas vidas com o Teu Manto, para que possamos cuidar uns dos outros até a hora de nos encontrarmos com Tu.

"A casa do Jumento Voador. E como é a sua casa Berê, acho que você é como a Jumenta Voadora."

—E sabemos que nossas curtas vidas aqui não serão nada perto da vida imortal que teremos quando retornamos à Tua casa. Amém, Senhor!

—Amém!

O Padre rezou o Pai Nosso em seguida, com o coral de nossos pais. Eu vi a minha vida passar diante dos meus olhos, me perguntando onde eu errei, por que mereci isso, o que eu fiz. Isso era um pesadelo. Eu queria gritar, correr, voltar no tempo, mas só engoli todos os desejos e fui firme. Eu passaria por isso, e no final, eu voltaria mais forte para fazer o que fosse necessário ser feito.

O Padre se despediu de todos depois disso, afirmando ter outros afazeres. Os outros ficaram, porém, aguentando a chuva que caía sobre todos nós. Se me concentrasse eu podia sentir, pequenas agulhas na roupa e em meu cabelo, mas nada me molhava. Meus pais choraram muito enquanto eu apenas observava, uma mão fria segurando o meu coração. E eles fizeram suas despedidas, assim como os outros pais fizeram as deles.

—Eu –minha mãe começou, mas os soluços a impediam. –Eu amo vocês dois mais do que tudo nessa vida e ninguém tem a mínima noção do que eu estou passando. Mas eu rezo para todo ser desse mundo que vocês estejam vivos e que um dia voltem pra mim. Porque eu não sei o que fazer sem vocês.

—Independentemente de qualquer coisa, eu tenho muito orgulho dos meus filhos. Espero que vocês saibam disso. Vocês são meus tesouros. –meu pai completou. –E eu vou lutar todos os dias para que a verdade apareça.

Quase sorri com isso, tinha que ser o meu pai. Um guerreiro. Assim como a minha mãe.

Os dois secaram as lágrimas, se despedindo logo depois. A maior parte dos pais os seguiram para o carro, e vi Henrique com os braços esticados, querendo tocar a mãe sem poder. Eu podia sentir a sua dor em mim. Otávio enxugava o rosto, pedindo licença e que esperaria no carro com Lerina. Depois que todos saíram, Maria foi a última a ficar.

—Eu nunca contei... –ela lamentava. –Eu nunca contei, Belle, eu sinto tanto...

Belle estava junto com ela, quase tocando seu rosto. Nem mesmo a face rígida de Belle poderia esconder o que se passava na mente dela. Por mais que Belle negasse, Maria era a sua mãe de criação.

—Eu sou sua mãe, Belle. –ela revelou. –Mas eu perdi você. Eu perdi vocês dois de uma vez.

Belle arfou, se afastando de repente.

—Eu queria ter te contado, ter contado para vocês dois, mas... Acho que eu pensei que tinha mais tempo. –ela confessou. –Que quando você e Pablo estivessem maiores, eu poderia contar pra vocês com calma. Agora vocês nunca vão saber.

A Belle e o Pablo são irmãos?

Meio óbvio.

Óbvio onde, eles não tem nada a ver!

Eles são idênticos!

Ela não disse isso exatamente, talvez não seja-

—Quando eu tive vocês dois, não havia como eu cuidar de dois. Eu deixei Pablo com o pai, mas Lerina separou a gente. Quando voltei, você tinha outra mãe, outro pai, outra vida, assim como Pablo. Parece que eu realmente não fui feita pra ser mãe. –ela chorou. –Já que os dois morreram.

—Maria... –Belle sussurrou, mas foi o suficiente para o rosto de Maria levantar.

—Belle? –ela sussurrou de volta, seus olhos azuis se arregalando.

Puxei Belle para longe para assim evitar maiores danos, apesar de ela nem reclamar. Vinha quase arrastada, como um boneco, ainda digerindo a informação. Eu queria deixá-la se despedir de Maria, pensando à frente deveria ter deixado, mas ela ia nos entregar e machucaria Maria no processo. Não era a hora. Quando estávamos longe, salvos no coração da floresta, eu a balancei.

—Se recomponha. –mandei. –Você não pode nos entregar.

—Essa decisão não devia ser só sua. –ela rebateu. –Droga, Pedro, eles estão sofrendo!

—E você acha que a solução é nos revelarmos? Belle, eles vão se achar loucos. Vão procurar ajuda ou vão ser internados, vão começar a tomar remédios, é isso que você quer?

Ela ficou quieta, se abraçando.

—É isso que você quer?

—Não, porcaria! –ela berrou. –Quero minha vida de volta!

Suspirei, entendendo a raiva dela.

—Morremos, Belle. Não há mais vida pra mim, pra você ou para nós. Precisamos ficar mais fortes, lembra?

Ela choramingou, confirmando. Os outros apenas acompanhavam a interação.

—Precisamos enterrar nosso passado. –afirmei. –Abrir mão dessa meia–vida e abraçar a morte.

—Pedro, do que você está falando?

Fiz um círculo, raciocinando e encarando meus amigos, almas perdidas na floresta que não encontrariam a paz enquanto ainda fossem crianças. Se quiséssemos vencer Berenice, precisávamos ser mais que crianças.

—Pedro morreu. –a respondi, me lembrando do apelido que meu pai me deu que eu nunca consegui realmente esquecer. –Me chame de Porta-Voz, Bailarina.

Ela pausou por um momento, assustada e sem responder. Eu sentia sua hesitação, assim como a dos outros. Emily colocou a mão na cintura em insegurança, e ver meu reflexo em suas lentes foi refrescante.

—Não vamos deixar Berenice vencer de novo. Precisamos ser mais que as crianças que bateram na porta dela, precisamos ser as coisas que saíram dela. –expliquei. –Precisamos ser filhos da Umbra para derrotá-la.

Filhos de Umbra....

Eu até que gostei.

—Ok. –Bailarina concordou ao ver a concordância dos outros. Tudo que queríamos era derrotar Berenice quando a Batalha Final chegasse. Se fosse necessário sacrificar tudo que nos restou, assim o faríamos. –O que você sugere, Porta Voz?

—Filhos de Umbra. –testei a palavra. Saiu de forma correta. Ameaçadora. Crianças que foram moldadas pelo purgatório. –Precisamos achar a Chave de Ossos. Berenice não ia levar ela pra longe de Analícia quando a menina poderia dar um jeito de pegar o crânio. Tem que estar em Sococó da Ema.

Eles concordaram, e observei as novas muralhas se formarem em nós. Se Berenice achava que era a única que tinha dado uma coroa para Analícia, ela estava errada. Ela nos deu uma coroa naquela noite também.

—Sangria. –olhei para Emily enquanto experimentava os novos nomes, me lembrando do tratamento que ela tanto odiava. –Viúva. –minha amiga acenou com a cabeça, aceitando o novo nome, a nova identidade que sempre fizera parte dela. –Violinista. –meu amigo concordou, a própria alma grudada com seu violino. –Absinto. –e o fogo de meu irmão aumentou, o próprio meteoro da destruição. –E Perna de pau.

Você tinha que me avacalhar...

Quase sorri.

—Ao trabalho.

(***)

Eram raros nossos momentos de paz, mas às vezes até os fantasmas precisavam parar. Precisavam pensar. Sem a Madame, tudo que fazíamos era procurar pela Chave ou conversar com a Mulher do Barco que trazia o crânio da Jumenta seguro em seu bote. Ela era uma mulher bastante experiente e inteligente, o que nos ajudava a manter a sanidade. Era enlouquecedor, existir assim. Vagando. Sozinho.

Mas não éramos idiotas.

Quando Dona Sônia entrou na floresta naquele dia, sabíamos que ela tinha algo para confessar assim que se aproximou, um xale nos ombros e uma bengala pela idade. Ela se sentou num tronco e encarou o cenário durante alguns minutos, sem dizer nada, enquanto a observávamos.

—Posso não ver vocês, mas sei que estão aí. –ela anunciou.

Nos aproximamos.

—O que a senhora está fazendo aqui?

—Visitando meu neto. –ela replicou. –Não só isso. Vim ver como estavam.

—Como a senhora sabia das marcas de Ior? –perguntei.

—Berenice não foi a única pessoa do mundo a fazer um pacto com a Serpente, só que eu consegui esconder melhor. –ela deu de ombros, suas rugas mostrando sua indiferença. –E a Madame não é a única que sabe um truque ou dois sobre o futuro.

—A senhora sabia que ia acontecer?

Ela pausou. –Não exatamente.

Suspirei. Não havia como descobrir os planos ocultos da Serpente –ela era forte demais.

—Já há boatos sobre espíritos na floresta. Pequenos sussurros sobre Os Filhos de Umbra. –ela sorriu. –Sabia que vocês iriam fazer alguma coisa.

—A senhora fez nossas máscaras. Por quê? –indaguei.

—Eu queria dar uma chance à vocês. –ela respondeu, cansada. –Máscaras são objetos poderosos, são novas identidades, podem ampliar sentimentos e dons, podem prender almas e são objetos de transição e de rituais. Impressionante, não? Em geral, são símbolos de poder escondido.

—Poder? Tipo o que a Madame falou?

—Vocês não descobriram ainda? –ela revirou os olhos. –Precisam começar a treinar, a identificar seus poderes.

—A senhora nos deu as máscaras e não sabe?

—As máscaras não determinam seus poderes, são apenas... Catalisadores. –ela explicou. –Seus dons estarão ligados à vocês, é claro. Se aprenderem a dominá-los, Berenice não vai suceder. É parte de vocês agora. Uma pena que eu não estarei aqui para ver.

—A senhora fez um pacto com a Serpente. E agora?

—Minha vida está sendo sugada, logo eu não passarei de uma parte de suas Sombras. Mas foi por uma boa causa. Me deu minha Rosa. –ela suspira, seus olhos opacos varrendo a floresta. –Já vivi tempo demais, me banhei da influência dela todos os dias, uma hora teria que pagar.

—E quanto à nós?

Ela sorriu. –Vocês já sabem. Façam dessas máscaras os seus rostos. Transformem a maldição numa benção.

Acenamos com a cabeça em concordância, Dona Sônia pausada durante um momento para absorver a energia da natureza, um olhar delicado em sua face.

—Estejam prontos quando a tempestade chegar. –ela pediu.

—Dona Sônia, nós somos a tempestade.

—Oh, criança. –ela lamentou. –Você não viu nem a metade.

(***)

Era fácil nos dizer para treinar, quando nem sabíamos como começar. O que fazer. Será que tínhamos que murmurar alguma coisa, recitar feitiços? Eu não sentia esse poder que a Dona Sônia e a Madame falavam, pelo menos não mais que todas as outras mudanças do meu corpo –temperatura, necessidades fisiológicas, sentidos. E era de se esperar que eles se manifestassem quando menos esperávamos.

Leo foi o primeiro. Meu irmão estava quieto naquele dia e fazia pouco tempo que aprendemos a levitar em nossas novas formas, percebendo que não sentíamos pressão atmosférica –era apenas flutuar. Enquanto ele experimentava a sensação, tentava estralar os dedos quando um fogo surgiu, como num isqueiro. Ele se assustou e o fogo se extinguiu, então ele tentou novamente. Consegui sentir sua concentração, seu fogo em uma ação que canalizava suas emoções, até que ele estava com quase um fogaréu em sua mão.

—Impressionante. –elogiei. Devíamos ter adivinhado aquela antes, já que ele tinha um meteoro na cabeça. –Só cuidado para não colocar fogo na floresta.

Emily descobriu o seu num dia perto do Lago, onde caçávamos Analícia. Ela precisava saber de alguma coisa. A Sangria se abaixou nas águas, tentando ver seu reflexo. Quando seus dedos tocaram a água, ela virou sangue. Ela fez de novo, cada vez uma maior quantidade de sangue aparecendo, até Emily ficar orgulhosa. Ela percebeu logo depois que conseguia fazer isso com o sangue de dentro das pessoas.

Mel também descobriu o seu no Lago, depois de muito treinamento –Mel era a mais esforçada de todos nós, e foi bom rever esse lado dela, que tinha murchado desde a morte. Eu a via tentar todas as coisas para aprender sua habilidade, até que num acesso de raiva, um corpo se levantou do leito do rio. Não precisamos ver mais nada.

Pablo descobriu o seu com a próxima visita de Dona Sônia, disse sentir que ela iria morrer não muito tempo depois. Dois meses depois, tivemos a notícia de que ela faleceu de morte natural. Ele lamentava o talento, dizendo que o lembrava de Dete e que finalmente entendia o que ela dizia sobre se confundir com tudo que sentia e pensava. Todas as vezes que ele se sentia atormentado, corria para o cemitério para tocar um pouco.

Descobrimos o de Henrique numa brincadeira, ele tropeçou na floresta –que tipo de fantasma tropeça? –e um dos pescadores por perto gemeu de dor. Não demorou a ligar os pontos e perceber que além de parecer um boneco vodu, Henrique tinha os poderes de um.

Ainda faltava eu e Belle, e parecíamos estar tendo dificuldades. Por mais que soubéssemos que nossas personalidades e histórias assimilavam os dons, era difícil adivinhar o quê. Belle ainda dançava tão bem quanto sempre e eu era apenas o-

Eu queria testar a teoria e tive a chance perfeita quando um motorista de caminhão parou na floresta para se aliviar. Quando ele terminou, eu me concentrei em ajustar nossas mentes, em tomar seu corpo, em me imaginar nele e funcionou. Minha máscara foi parar em seu rosto e eu me senti quase vivo de novo, além de uma grande satisfação. Estava quase pensando que eu não teria poder nenhum, mas era de se imaginar que logo eu seria o tipo de possuir os outros.

E quando Belle sumiu, eu não tive muita dificuldade de imaginar o motivo. A encontrei em casa, encarando uma Maria tomando chá de certa distância, Seu Vinicius do lado dela. Eles pareciam melhores do que da última vez que os vimos, apesar de ainda meio abalados. Dessa vez, pelo menos, eles conseguiam conversar de outros assuntos. Quando Scooby chegou, pareceu vê-la e latiu tanto que Maria teve que colocá-lo pra fora.

—Minha vida foi uma mentira. –ela sussurrou apenas pra mim. –Tem noção do que é isso?

Eu não tinha. Era uma grande ilusão, tudo que Belle pensou que sabia não era real. Não era real. Quando eu a olhei de novo, não vi a Bailarina, e sim Belle, em suas roupas de balé, o cabelo num coque e de sapatilhas de ponta. Pensei que tinha sido coisa da minha cabeça, um ilusão, mas ela não parecia perceber que conseguiu se alterar.

—Bailarina. –a chamei.

E ela viu, logo a ilusão se desmanchou. Ela também conseguiu ver, e entendemos.

Daí, era só aperfeiçoar nossos dons, nos tornando mais fortes, e procurar a bendita chave para abrir a porta. Encontrar Analícia não era prioridade, mas iria acabar acontecendo, já que éramos todos almas condenadas. Nenhum de nós podia fugir pra sempre. Nós a achamos perto do penhasco onde morreu numa noite de Lua crescente, um pequeno sorriso no céu.

Quando ela se virou, vimos o que ficar sem o crânio fez com ela –sua expressão eternamente em desespero.

—Olha só. –ela começou.

—Analícia. –cumprimentei. –Como anda sua mãe?

—Planejando nossa vingança. –ela respondeu, os cabelos ainda balançando e seu vestido os acompanhando.

—Vocês não vão pegar o crânio. –prometi. –Ele está muito bem guardado e vocês estão em menor número.

Eu senti sua raiva de longe, o veneno que Analícia só demonstrava quando queria. –Como se vocês conseguissem fazer alguma coisa contra nós.

—Nós vamos fazer. Anote isso, Analícia, porque não vai acabar aqui. Você e Berenice precisam pagar pelo que fizeram. Você sabe que não matamos você, você queria nos matar.

Ela me encarou com o vago dos olhos, parecendo que a pele queria tampar os tecidos vagos. Ela estava destemida, mas nós estávamos ainda mais. Não éramos mais crianças e não iríamos fracassar uma segunda vez.

—Vocês vão perder. –ela jurou. –E aí irão conhecer a ira da Jumenta Voadora.

Sorri. –Vamos ver.

(***)

Não foi a última vez que encontramos com Analícia no meio das florestas, ou com a Menina do Lago, como a cidade começou a chamá-la. Não assombrávamos a morte dela, exatamente, mas não era nossa culpa as discussões quando trombávamos juntos. De forma geral, os anos se passavam lentamente e era uma grande tortura. Não tínhamos ideia de onde estava Berenice ou de onde estava a chave, e a cada dia ansiávamos mais voltar ao normal. Era uma péssima existência, ver o tempo passar sem acompanhar. Longe de quem amávamos.

Mas a vida continuou sem nós.

Maria, Otávio e Lerina voltaram pra São Paulo para escapar das lembranças de Belle, levando Scooby com eles. Dona Rosa morreu pouco tempo depois, atingida por uma depressão severa. Cristina largou a prefeitura, trocou de casa e tentava esquecer o que se passou, mas nunca completamente. Seu Vinicius criou o péssimo hábito de beber e meus pais sofriam em silêncio, tentando tocar suas vidas com uma raiva guardada pela ineficiência da cidade em descobrir o que aconteceu conosco.

Eu assisti quando o Dia das Bruxas foi declarado Dia da Jumenta Voadora, quando toda a cidade transformou Berenice num espírito bondoso, quando a Menina do Lago passou a ser a vítima e nós, os vilões. Vimos quando toda a tragédia foi transformada num conto de fadas para vender brinquedos mequetrefes e promover a imagem de uma assassina. E não podíamos fazer nada. Acho que aí eu aprendi o significado de ser amargo por dentro –eu comecei a ficar com raiva. Muita raiva. A morte era fria, solitária e infinita, e quanto mais tempo se passava, mais eu esquecia quem era Pedro. Eu só me lembrava de Porta-Voz, que viveu mais do que eu tive a chance de viver.

Nossos amigos também continuaram suas vidas, e era doloroso assistir a vida de uma outra pessoa passando enquanto você continuava eternamente preso no tempo. Eu vi Eduardo e Diego darem seu primeiro beijo na floresta, escondidos dos pais, eu vi Natália e Laura saírem da cidade como moças em vestidos longos, já casadas, e é só depois de morrer que você percebe quantas coisas você podia ter feito em vida. Só depois de morrer que eu percebi que nunca beijei Belle da maneira que gostaria, que nunca agradeci meus pais por me criarem, que nunca apoiei Pablo como deveria ter apoiado, não brinquei com Leo tanto quanto deveria, nunca dei graças à Deus por tudo que tinha. Eram coisas que eu provavelmente não teria a chance de fazer novamente.

Nosso clubinho era um dos poucos lugares onde podíamos ficar sozinhos, onde só nos sentávamos em meio as cortinas vermelhas e podíamos apenas escutar Pablo tocar e ver Belle dançar. Da primeira vez que achamos o lugar, algo perdido dentre nossa dimensão agora, encaramos as paredes sem entender. Quando vimos a poltrona, Pablo foi o primeiro a olhar pra mim.

—Avante, grande líder.

E quando finalmente me sentei em minha poltrona e pude olhar meus amigos em suas novas formas, eu finalmente entendi que poderíamos ser invencíveis. Cruzei as pernas, vendo-os se aproximarem de mim, entendendo a minha responsabilidade. Durante muito tempo não estive pronto, mas naquele momento eu a aceitei. Eu tinha jurado proteger meus amigos em vida, e falhei. Jurei não fracassar em morte.

E venho mantendo esse juramento até hoje, por mais que ainda estejamos presos. Não vai durar muito tempo, eu tenho certeza. E provavelmente vamos precisar de ajuda, mas eu estou finalmente disposto a fazer qualquer coisa para nos libertamos, já não há mais como piorar. E ninguém vai ficar em meu caminho.

Espero que esta história tenha entretido vocês essa noite. Agora, se não se importam, já passou de meia noite. Está na hora de partir e devolver o corpo para a Madame. O Dia das Bruxas já acabou e infelizmente preciso retornar à minha existência. Talvez quando meu plano der certo, eu possa voltar e contar a história.

Até lá, adeus.

(***)

A sensação que ficava era sempre de tontura quando uma possessão acabava, ainda mais uma de Pedro. A Madame acordou a tempo suficiente de ver os espíritos saindo um por um, voltando para suas casas ou planos. Porta-Voz foi generoso o suficiente de lhe entregar um copo de água quando saiu dela, apesar de não demonstrar muita simpatia fisicamente. O menino se tornava cada vez mais frio e indiferente, pelo menos no exterior.

—Obrigada pelo seu tempo, Madame. –a Bailarina agradeceu. –Foi bastante diferente dos últimos anos. Mais vivo.

—Fico feliz. –a Madame correspondeu seu sorriso. –Está na hora de vocês irem também. Berenice já deve estar voltando e eu não quero que ela veja vocês.

Conforme as crianças se levantavam e partiam, o Violinista mandava olhares para Pedro ao ver o Porta-Voz ficando, a encarando. A Madame aguentou o olhar por alguns segundos antes de sua curiosidade vencer.

—Precisa de algo, Porta-Voz? É Berenice que o aflige? Você sabe que o motivo de Berenice me ajudar é para ficarmos de olho nela.

—Não é isso. –o menino esclareceu. –É só que faz muito tempo que eu não penso tanto em minha vida, em viver. O que eu queria saber, Madame Creuzodete, é se isso esteve sempre marcado pra acontecer, ou se podíamos ter sido felizes?

A Madame suspirou, bebendo um pouco de água. –O presente de vocês foi resultado de uma série de ações, tanto de vocês quanto de terceiros, que culminaram nisso. Há diversas realidades e diversos futuros. Eu tenho certeza absoluta de que a vida de vocês numa outra realidade foi bem diferente. Talvez tenha sido pior, talvez tenha sido melhor.

—Eu... Posso ver? –ele pediu. –Posso ver o que poderia ter sido? Se eu poderia ter sido feliz?

A Madame se compadeceu, vendo a vontade de Pedro em saber que não nasceu apenas para ser um peão de um plano maior. Ela desenvolveu um ponto fraco pelas crianças, ainda se sentindo culpada por não ter impedido o que aconteceu com elas. O que aconteceu com Dete. O que aconteceu com Analícia.

—É claro, Pedro. Sente-se comigo. –ela convidou.

E a bola de cristal se encheu de fumaça.