A noite caía, repousando suavemente sobre um manto arrepiado de alcatrão manipulado pelos ferozes pneus das viaturas agrestes, a escuridão arrebatava a luz pura das estrelas observadoras, trancafiadas nos seus casulos de poluição, frenesim e criminalidade, uma pureza desmantelada pelas influentes armas citadinas. Alguém, envolto numa magistral capa cor do ébano, carregava no regaço os mistérios de um passado roubado pelos aguçados dentes do gelo enevoado por grossas paredes de sangue inocente, vagueava pelas cortinas misteriosas da cidade que nunca dorme, lançando sobre a atmosfera fumegante e enegrecida pelas almas dos vitimados da vida os seus mais cortantes pensamentos, espadachins profissionais capazes de aniquilar o seu espírito lutador.

— Como a vida é cínica, absurda e ao mesmo tempo maravilhosa, esta miúda é dotada de uma força de vontade inimaginável, uma verdadeira guerreira do mundo, capaz de enfrentar a mais perversa e injusta das adversidades, erguendo-se num fino laivo de luz e esperança, pronta para uma nova luta, jamais desiste. Quando era apenas um pequeno rebento cede a sua mãe às profundezas do oceano, vive grande parte da sua vida num orfanato, rodeado pela sombra trepidante da pobreza, das dificuldades iminentes e desvalorizadas e da saudade arrepiante que cega o seu coração. Dezasseis anos depois, uma nova desolação invade a sua mente, sem pestanejar um único segundo que seja, encara a morte daqueles com quem partilhou o involuntário destino, ela própria trava uma derradeira batalha contra a morte, escapando com bravura dos seus cordões amaldiçoados. Mais tarde, enfrenta com especial talento e coragem um grupo de russos fortemente armados, salvando a sua escola de um mergulho fatal no seio das hostes soviéticas. Apelando a todo o seu indominável senso de justiça, combate com o feroz Hulk, entrando no seu coração, enfeitiçando a sua pérfida maldade, raiva e revolta, ajudando-o a abraçar a esperança à muito envenenada pela cor verde, colaborando na sua urgente fuga. Mais recentemente é apanhada nas sinistras redes de uma tremenda ameaça biológica, auxiliando Tony Stark na resolução do seu gigantesco erro. Depois de tudo isto a sua força de vontade continua intacta, proliferando num campo de batalha que jamais cessará, espalhando-a carinhosamente pelos nobres corações dos seus companheiros, tornando-a na sinfonia harmoniosa que catapulta a vitória e a paz no seu encalce, sobrepondo-se ao hino, à bandeira e à própria pátria Americana. Gostaria de ter lutado a seu lado, fazer da sua força a minha própria força. – Cismava enquanto vislumbrava uma solitária borboleta azul flutuar na rocha plantada no seu peito.

As lâmpadas cintilantes ganhavam vida na mansão dos Heróis mais Poderosos da Terra, tornando as suas vidraças fantasmagóricas, translúcidas e intransponíveis, Tony Stark estava sentado à frente da sua secretária, bebendo um grande copo de um qualquer vinho requintado, tentando afogar as suas mágoas nas profundezas frutadas do recipiente dourado.

— Posso entrar Tony? – Questionou a voz tranquila de Steve, parado na umbreira da porta.

— Claro que podes, não sabia que tinhas voltado. – Comentou o Homem de Ferro de forma ausente, erguendo-se de um salto, caminhando até ao pequeno bar para retirar outro copo.

— Eu agora não importo, como estás? – Inquiriu Rogers, sentando-se na beira do seu amigo, aceitando o copo cheio que este lhe estendia.

— Espero que gostes, pertence a uma reserva com mais de vinte anos. – Afirmou Stark orgulhoso do seu talento para escolher bebidas que proporcionem a felicidade momentânea, mascarando a realidade sufocante com alucinações fantásticas, empolgantes e aparentemente duradouras.

— Sim é bastante agradável. Como estão a correr as coisas? Não desvies o assunto. – Insistiu o Capitão saboreando delicadamente aquele tónico dos deuses. – Vá lá somos amigos, apesar de tudo somos amigos, sabes que podes contar comigo.

— Eu sei disso, só que não tenho palavras para descrever o meu fracasso. – Confessou o Homem de Ferro, enchendo pela terceira vez o seu copo.

— Depois de um grande fracasso somente resta a coragem para nos erguermos de novo, não baixes os braços, tu és um grande homem, sabes como dar a volta a qualquer situação. – Reconfortou-o Steve em voz segura, olhando a expressão vazia que desfigurava o intelectual rosto do seu conturbado amigo.

— A comunicação social está a dizimar o meu bom nome. – Desabafou o milionário tristemente.

— Deste-lhes razões para arrastarem o teu nome na lama, agora dá-lhes razões para o catapultarem para o topo, então Tony, o que é feito das tuas ideias estapafúrdias? – Proferiu o soldado, conhecia o verdadeiro talento do Homem de Ferro, mais tarde ou mais cedo ele iria salvar o seu nome, os seus negócios e a sua integridade.

— Não vai ser assim tão fácil, existem diversos parceiros económicos que já rescindiram contractos importantes, o governo também está de pé atrás, desta forma a minha empresa nunca conseguirá sobreviver. – Lamentou-se Stark emocionado, a imagem da sua empresa a dilacerar-se na sua mente era dura, tremenda e muito cruel, o trabalho, o empenho e o investimento de anos dizimados por um balão envenenado. – São avassaladores os comentários de desaprovação que os meus colaboradores internos tecem sobre o sucedido, em cada recanto das Torres Stark ouço murmúrios de descrença e desconfiança, é muito difícil de suportar, porém não os posso censurar.

— O panorama está negro, contudo em toda a escuridão existe um rasto de luz, só tens que ter a valentia para o alcançar, eu ajudo-te, a Diana ajuda-te, os Vingadores ajudam-te, afinal somos uma grande família. Tu sabes, melhor do que ninguém, que a vida é feita de espinhos, de espadas afiadas, de más intenções, cabe-nos a nós ultrapassar essas barreiras, utiliza-las como uma nova e revitalizadora energia, vamos a isto! – Exclamou Rogers honestamente, pousando o seu copo vazio na secretária repleta de recortes de jornal. – Atira esta porcaria de imprensa no lixo, recicla-as como novas e milagrosas ideias, novos projectos, novas ambições!

— Talvez tenhas razão Steve, mas dá-me tempo para filtrar estas emoções todas. – Pediu Stark em voz fraca, passando a mão no rosto por onde deslizavam gotas de sal.

— Como estão as coisas com a Diana? – Inquiriu o Capitão, deitando mais um pouco de vinho no seu copo.

— Bem, acho que isso é a única coisa que me dá alento, ela é mesmo especial. – Respondeu Tony sorrindo levemente, uma pluma de mar sobrevoou calmamente o seu espírito devastado. – Ficas cá a dormir? Tenho que mandar arrumar o teu quarto.

— Hoje fico em casa, não te preocupes. – Declarou Steve de forma tranquila, recordando o conforto solitário da sua habitação. – Bem, vou andando, já sabes estou aqui meu amigo.

— Eu sei disso, até amanhã. – Despediu-se o milionário, levantando-se para depositar a garrafa vazia no caixote do lixo, levando com ela todas as más emoções das últimas horas, cortando-as com o vidro da garrafa. – Nem penses que vais resolver os teus dilemas com a ajuda da bebida, lembraste bem como era naqueles tempos. – Murmurou taciturno, porém mais determinado, apagando a luz da sala, saindo para o vasto corredor, fechando a porta nas suas costas.

O relógio de pulso da morena marcava onze horas, ela já estava pronta para a sua saída, sentada no seu sofá, afagando o pelo felpudo do seu amigo branco, esperava por Peter.

— Já vou! – Exclamou a Sereia em tom alegre, escutando o som da campainha.

— Uau miúda! O teu namorado deixa-te andar assim vestida? Vais arrasar! – Elogiou o Aranha impressionado, mirando as vestes da sua melhor amiga, trajava uns mini calções de linha branca e um top azul claro, calçava umas sandálias igualmente brancas, o seu cabelo de chocolate estava emoldurado num perfeito rabo-de-cavalo preso por uma fita azul-noite.

— Eu não tenho namorado, já te disse! – Retaliou Diana em tom arrogante, saindo para o passeio. – Eu não tenho o meu carro, vamos a pé.

— Não tenho escolha, vamos lá! – Resignou-se o herói, pegando na mão da sua linda amiga.

Os dois jovens entraram no bar, a música era estonteante enfeitiçada por um incrível show de luzes ofuscantes, pessoas dançavam euforicamente, como se as suas vidas dependessem daqueles movimentos incrivelmente descoordenados, copos e copos voavam em todas as direções reluzindo com as suas bebidas contagiantes e manipuladoras.

— Queres sentar-te um pouco? – Questionou Peter, olhando em volta.

— Só um pouco, quero beber algo. – Respondeu a Vingadora feliz, acenando a diversos conhecidos.

— Vou pedir, o que queres? – Perguntou o Aranha, apontando para dois lugares vazios.

— Uma Malibu com uma rodela de limão! – Exclamou a morena, como adorava aquela bebida.

— Já venho. – Disse o jovem, desaparecendo no meio da energética multidão em direção ao balcão apinhado.

Minutos mais tarde, Diana e Peter estavam sentados bebendo deliciados as suas maravilhosas e refrescantes bebidas, vislumbrando um pequeno grupo de raparigas, mais novas do que eles, caindo, levadas pelo injusto vento do álcool.

— Bora dançar, adoro esta música! – Propôs a Sereia sorrindo, levantando-se à medida que o grande Sucesso de Sia “Cheap Thrills” entoava fortemente nos seus corações palpitantes.

— Não tenho grande talento para danças, mas bora lá! – Assentiu Peter inseguro, seguindo a sua chamativa amiga até á apinhada pista de dança.

— Bolas, nunca mais me convides para dançar, quantas foram? Cinco? Seis? - Queixou-se o herói, segurando na sua mão suada outra bebida.

— Foram quatro, apenas quatro! – Ripostou a Vingadora, pousando na mesa o seu copo de vodka limão. – Podias ter convidado a Mary.

— Acho que ela não gosta destas saídas! – Respondeu o Aranha em tom distante, escrevendo uma SMS no seu telemóvel.

— Olá malta! Eu sabia que eras tu lá na pista de dança, essas curvas de Sereia não me enganam! – Exclamou um adolescente de longos cabelos louros, presos num apertado rabo-de-cavalo, chegando perto dos dois amigos.

— Jeremy! Que bom ver-te aqui, senta-te! – Cumprimentou a morena divertida, reconhecendo o seu mais antigo parceiro das aulas de dança. – Então vieste sozinho?

— Não, vim com o Paul, mas parece que ele já tem a noite garantida! – Respondeu Jeremy sorrindo, observando o seu melhor amigo abraçado a uma miúda três anos mais nova do que ele. – Obrigado! – Agradeceu, aceitando três bebidas da provocadora empregada que deslizava de patins pelo pavimento de madeira. – Pedi estas para vocês. – Disse, passando um copo a Diana e outro a Peter.

— Obrigada! Obrigado! – Agradeceram os dois amigos em simultâneo.

Daí a cinco minutos, Diana Peter e Jeremy estavam outra vez na pista de dança, as suas veias afogavam-se em gotículas de álcool, dançavam, saltavam, batiam palmas, agitavam os braços, num festim infinito e desmedido.

— Estou cheia de calor, vou pedir outra bebida, querem? – Inquiriu a Sereia, caindo desamparada nas pernas esticadas do louro, este sorriu.

— Claro! – Exclamaram os dois rapazes entusiasmados.

Depois daquela rodada, seguiram-se muitas outras, até que por fim lhes perderam a conta, o seu sangue mergulhara numa mistura espumosa de vodka, tequila, Malibu e milhares de shots indefinidos. As suas pernas cediam aos terramotos do álcool, as suas mentes eram enevoadas pelas luzes e pela música, os seus sorrisos estavam esculpidos numa máscara de estupidez, delírio e inconsequência.

— Vamos embora. – Balbuciou a morena, tentando a muito custo manter-se de pé.

— Sim. – Murmurou Peter de forma imperceptível agarrando-se a Jeremy com as forças que lhe restavam. – Uau querida é linda! – Elogiou, dirigindo-se ao louro que o olhou de forma difusa, o álcool incapacitou-o de compreender banais comentários.

— Eu fico mais um pouco ainda é cedo. – Respondeu Jeremy, abraçando a atraente empregada, beijando-a propositadamente nos lábios vermelhos.

Diana e Peter saíram para o exterior noturno, fitando o vazio das suas mentes, qual a direção a seguir? Começaram a caminhar, segurando-se aos edifícios que os rodeava, caindo aqui e ali.

— Apetece-me dançar no sol e no fundo do oceano! – Exclamava a morena em tom sonhador, sentada na borda suja de um qualquer passeio.

— Eu quero voar até Marte, transformar-me num tigre cuspidor de fogo! – Exclamou Peter, fingindo cuspir fogo pela boca, porém apenas derramou saliva embriagada na atmosfera.

Alguém protegia-se artisticamente com as sombras gigantescas dos arranha-céus, observando de perto aquela cena deprimente. Avançou furtivamente até aos dois adolescentes, sentindo a brisa fresca entrar pela sua máscara.

— Que bonito estado! – Comentou o estranho em tom reprovador, atirando Peter para o passeio, pois um carro vagueava na sua direção.

— Olha Peter é o, é o, é o, quem és tu? – Perguntou Diana, lançando no ar sorrisinhos agudos. – És o Batman!

— Claro que não é o Batman, é o Super-homem! – Retaliou o herói agarrando o sujeito pelo braço.

— Não sou um, nem outro, e tu vê lá se baixas o tom, não queremos Nova Iorque paralisada com o poder da tua voz, vamos embora, vou deixar-vos em casa! – Ripostou o homem sem paciência, pegando os dois jovens pelas cinturas, arrastando-os até um qualquer táxi.

Não possuía dinheiro para suportar o custo exorbitante das três viagens, então a única solução que arranjou não foi a mais plausível e tolerável, contudo era necessária. Abriu com cuidado a porta do condutor, fazendo sinal para que os dois jovens se mantivessem em silêncio, deu um valente murro na nuca do desprevenido taxista, este ficou inconsciente no instante seguinte. Sem dificuldade, carregou o pobre condutor até um banco de jardim, deitando-o, mais tarde devolveria a viatura.

Vinte minutos depois, o estranho tirava Peter do assento de trás da viatura, caminhou, amparando-o até à porta de sua casa, tocou com força à campainha.

— És tu Peter querido? – Perguntou a voz suave e apreensiva da tia May.

— Ele e cinco litros de álcool com gelo. – Respondeu o estranho, deixando o jovem sozinho no degrau de entrada.

— Agora só faltas tu. – Murmurou em voz tranquila, olhando a morena adormecida no banco de trás do roubado táxi.

Finalmente a casa da adolescente apareceu no seu campo de visão, este parou bruscamente o carro junto do passeio, abriu a porta, pegou Diana nos braços, vasculhou no seu pequeno bolso e retirou a chave, caminhou rapidamente até a porta, contudo antes que a abrisse esta escancarou-se.

— Cuida dela! – Exclamou o estranho, depositando a Vingadora alcoolicamente adormecida nos braços de alguém.

Quem é este estranho que continua a viajar nas sombras da Sereia? Quem a aguardava? Quem se esconde atrás de Jeremy o talentoso bailarino?