— Como assim, ele não está com vocês!?

— Ma, eu já disse: fale baixo. Estamos numa floresta, não é lugar pra gritar. E pela milésima vez, não vejo o Luca há semanas. Da última vez que o vi, ele estava voando com Levi de volta pra casa.

Marina estava parada, perdida entre a confusão e a raiva. E toda aquela culpa. Quando se acalmou, Ramona explicou tudo que tinha acontecido, e ela teria voltado imediatamente pra desculpar-se, mas Fred estava doente, e o que era uma gripe virou uma maldita pneumonia, e depois ela quase perdeu o Leo, que insistia em sair escondido pra ficar com o pai.

Agora que toda a loucura que se tornou sua vida diminuiu o suficiente, tinha tempo pra sair e conversar com o Luca, pedir perdão pelas palavras cruéis que tinha dito, pra descobrir que ele não estava em lugar nenhum!

Mauro parecia um fantasma. — Marina, ele nunca chegou? Luca não estava com Viviane?

— Eles estão separados há meses, Mauro. Começou com um tempo em que ele esteve com os Grimild, e já estava tudo bem tenso quando ele insistiu em vir salvar o couro idiota de vocês dois.

Pensou de novo nos Grimild, nos comportamentos estranhos do pai depois que voltou pra casa. Não, é claro que Luca não trairia Viviane, como suspeitava Fred.

Ele nunca faria isso... Faria? — E mesmo depois de tudo que aconteceu, do Fred, do Nero (que apodreça no inferno, aquele verme), ele veio pra cá outra vez. Agora Viviane não tolera ouvir o nome dele, minha melhor amiga não sorri mais e eu...”

Marina pôs as duas mãos no rosto. Estava ficando louca, era isso. — Eu... fiz uma besteira. Eu o magoei, e pensei que ele estaria com vocês porque não queria falar comigo. Mas não resisti, tinha que tentar consertar as coisas... Meu Deus, o que eu fiz?

— Calma, Marina. Se ele estiver por aqui, nós vamos ... — Foram interrompidos por um uivo ensurdecedor de Mauro. — Puta merda, Mau! Avisa quando for gritar desse jeito!

E completou, mais grave:

— Quem está vindo?

— Todos. Chamei todos. Marina, volte pra sua dimensão, convença Viviane a ajudar, ou pelo menos não nos atacar se formos até lá. Comece a procurar também, use o lápis. Quem encontrá-lo primeiro avisa o outro grupo. Algum sucesso, Cas?

— Tem cobras demais por aqui.

Marina suspirou. — Ele é uma sucuri gigante, Cas. Não tem uma em cada em cada esquina.

— Contei pelo menos... cinco dessas na região.

Mauro engoliu em seco antes de assentir com a cabeça e se transformar, já sumindo entre as árvores. Marina olhou pra os dois sem entender.

— O que houve?

— Vou esperar Mauro voltar pra saber, Ma. Te aviso se alguma coisa mudar.

Marina o olhou, ainda intrigada com a mudança de atitude deles. — Me chamem na hora que souberem de alguma coisa. E, Cas...

— O que foi?

— Se vocês acharem nosso pai primeiro, digam a ele o quanto eu me arrependo do que eu disse. Por favor. Eu mesma pretendo repetir, mas não esperem por mim, tá?

— Tudo bem. — Com um aceno de cabeça, Marina pulou num portal. O ciborgue continuou a aguardar, e em pouco tempo havia uma pequena multidão de espíritos e animais ao seu redor.

“A sexta cobra está mesmo morta, Cas” ouviu em pensamento. “Não era o Luca, tenho certeza. Vou checar a próxima”

— O que houve, guardião? Onde está seu lobo?

— Numa missão. — respondeu simplesmente. E para os restantes — Está na hora de cumprir as promessas que nos fizeram.

***

— Não.

— Mas, mãe, ele pode ter sido capturado, ou estar ferido. Eu sei que Lu-

A feiticeira levantou-se abruptamente, a fúria gelada irradiando dos olhos:

— Nem mesmo você está autorizada a falar o nome daquele mundano nessa casa. Ele escolheu nos abandonar, escolheu sair da minha proteção e esquecer suas promessas. Que esteja aprisionado, morto ou com aquela meretriz da Nimue Grimild, eu não me importo.

“E você não vai se pôr em risco para procurá-lo. Não me importo com o que aqueles tolos que o chamam de pai decidam fazer, mas você é minha filha, e fará o que eu decidir”

Ramona lutava contra as lágrimas de frustração. Odiava quando a mãe agia de forma tão irracional, e queria discutir e argumentar mais, mas encontrou os olhos de Bóris e a frustração se tornou raiva. “Seja esperta” ele parecia insistir “Eu cuido da crise aqui”.

— Sim, senhora. Não vou mais insistir nisso.

A bruxa mais velha virou-se, surpresa com a mudança de tom. Apesar dos olhos úmidos, Ramona a olhava de cabeça erguida.

— Posso ir agora?

— Vá. — O que tinha causado aquilo? Ramona sequer fechou a porta com mais força. Depois de dias tentando convencê-la a procurar o mundano, ela simplesmente desiste?

Bóris teria pena de Viviane, se ela não cavasse a própria cova com tanto entusiasmo. Ela insistia que não se importava com o Luca, que preferia que ele morresse naquela cruzada insana, que nunca voltasse. E se alimentava apenas quando Ramona estava olhando, o caldeirão acumulava teias de aranha e era Bóris quem atendia as pessoas que precisavam de pequenos feitiços ou orientações sobre épocas adequadas para o plantio ou o amor. Estava ficando sem desculpas pra ausência e distração da Bruxa da Lua.

Olhou discreto para sua senhora. Ela estava desconfiada da mudança, mas o estresse e o jejum cobravam seu preço, e provavelmente ela não veria o plano da filha até ser tarde demais. Porque Ramona tinha um plano, era capaz de dizer só de ver a postura da garota. Graças à Lua (e que Viviane jamais o ouvisse dizer isso), Ramona tinha aprendido muito de ambos os pais.

Marina viu uma Ramona diferente entrar na sua cabana. Como sempre, ela parou antes pra falar com Leo e Nina, que continuavam a esperar na janela por pessoa, fera ou desenho que tivesse notícias do avô, e todos os dias oscilavam entre a euforia e o desânimo das negativas.

— Boa tarde, pessoal.

Fred levantou os olhos do mapa que estudava e sorriu cansado. — Boa tarde, Ramona. É bom te ver.

— E então? — Marina interrompeu a conversa, áspera — Ela concordou?

A tensão que Marina sentia não diminuiu quando Ramona sorriu. Não tinha alegria ali, sequer alívio. Era triunfo, um sorriso muito parecido com o do pai nos momentos mais sombrios.

***

O gelo se formou rápido, pontas e lâminas crescendo violentamente na direção do portal. O mago invasor transformou-se num pangolim monstruoso e com um tapa das garras desproporcionais, quebrou todas as pontas próximas. Erguendo-se nas patas traseiras, encarou a feiticeira.

— Bruxa da Lua, não somos uma ameaça pra senhora. — o homem atrás dele afirmou — só viemos resgatar nosso pai. Mas recomendo que pare de nos atacar.

— Mas o que significa isso!?

O ciborgue, na sua imobilidade, parecia ainda mais ameaçador que o animal escamoso. — Viemos em paz.

E o gelo cresceu novamente, mas afundou no chão antes de alcançar o grupo. — Eu pedi que pare de nos atacar, Lady Viviane. Não vou pedir novamente.

“Não estou fora do meu reino, a senhora sabe. Nenhum de nós está”

Podia sentir a alegria de Mauro também. Tudo naquele mundo era tão novo, tão revigorante. A parte lobo do amigo estava ansiosa pra correr e sentir toda aquela floresta sob as patas.

E a decadência... essa terra nunca teve um avatar antes, e estava ansiosa pra abraçar um. Sentiu a feiticeira recuar um passo, e outro. Mauro transformou-se de volta, o que foi bom. Pangolins têm vozes engraçadas demais pra serem levados a sério.

— A senhora nos deu permissão para vir, e viemos.

— Eu nunca faria isso!

O lobo humano quase sorriu — “Não me importo com o que aqueles tolos que o chamam de pai decidam fazer.” Foram essas as palavras, Ramona?

Sua filha, um pouco afastada do grupo, acenou que sim.

— Nós decidimos vir. Então, se nos derem licença... — Aquele mago insuportável, Marina e o marido dela se reuniram, fazendo planos em voz baixa, porém não o ciborgue. Este continuava virado em sua direção, acenando pra concordar com uma coisa ou outra.

Nunca tinha encontrado os dois após o casamento de Marina, e sua filha tinha razão: Eram como um vulcão ativo. Contra um deles, teria chance de vitória. Contra os dois... Foi mais do que desagradável perceber que estava com medo.

Olhou feio pra Ramona. Como ela foi capaz de apunhalá-la daquela forma?

— Olhe pra eles, Vivi — ouviu próximo a seus pés. — Olhe com atenção.

O gato sentou-se, e seu aluno sabia que não poderia ir até ele naquela hora. — Ramona é adulta.

— Eu sei. Só quero protegê-la.

Bóris suspirou. Humanos...Pfft. — Ela é adulta — enfatizou. — e eles também são parte da família dela. Por extensão, da sua. Lealdade imposta nunca funciona bem.

— Escolha suas próximas palavras com cuidado, servo.

O gato não se abalou com a raiva na voz de Viviane. — Se você a forçar a escolher agora, aonde você acha que ela irá?

— Para mim, é claro. Eu sou sua mãe. — Não levou muito até que Viviane entender que nem mesmo ela acreditava nisso. — Para mim, ela me escolheria — repetiu, sem convicção.

— É claro. — E a Bruxa da Lua sabia que o amigo acreditava ainda menos naquilo. — Mas te sugiro pensar num detalhezinho. Uma coisinha de nada.

— Diga logo.

— Seu ma... parceiro era seu emissário, seu representante em muitos acordos. Ele carregava seu símbolo. De várias formas, ele era um dos seus símbolos.

Deixou a informação no ar, até que ela compreendesse. — Por mais que você o renegue e afaste, ele ainda é seu símbolo em muitas partes desse mundo. Existe poder em destruir símbolos, até os mundanos sabem disso.

—...

Embora quisesse, o gato preto não sorriu. O silêncio quase gritava o espanto de Viviane ao constatar aquilo, apesar de ser tão óbvio.

— Vá falar com seu aluno e pare de me importunar — e, ao ver o espanto do velho felino — O que está esperando, um convite escrito? Vá logo. Eu preciso pensar.

***

Maldito corpo humano. Rastejou até uma caverna, e foi uma feliz surpresa ouvir a água. Limpou como pôde os ferimentos e as mãos inúteis, matou a sede e deitou-se.

Era uma pena, não poderia ir mais longe com esse farrapo. E apesar da promessa, não se encontraria com Viviane daquele jeito. Mesmo que a alcançasse (e não conseguiria), não suportaria vê-la com pena dele.

Se esse corpo frágil, traidor, praticamente inútil queria abandoná-lo, que fosse. Mesmo no fundo do poço mais escuro em que já esteve, sem esposa, filhos, amigos, saúde, poder ou futuro, ainda era Odin.

E teria sua vingança. Seus inimigos acabariam a seus pés, implorando por um perdão que não viria, nessa ou na próxima vida. Escolhia como viver e como encararia sua morte.

Mas nesse momento, finalmente sem sede, calor ou precisar se arrastar como o mendigo paraplégico que aparentava ser, poderia dormir. Fechar os olhos e sonhar de novo com tempos felizes. A caverna se encheu dos ecos cansados da sua voz.

“Todo dia o sol levanta, e a gente canta o sol de todo dia...”

***

— Pai?

Abriu os olhos em resposta. Já não bebia nada há muitas horas, talvez não conseguisse falar. Foi erguido e sentiu um cantil gelado nos lábios. O paraíso deve ser isso, uma bebida fria num dia de muito calor. — Ramona. É bom te ver, filha.

— O que diabos aconteceu com você? Por que nunca voltou pra casa?

Luca sabia o que a deixou chocada. A magreza extrema, a sujeira, a tanga imunda que era toda a roupa que possuía.

E o cheiro. Pelo menos o cheiro já era de um homem morto. — Arcturus Grimild. Sua magia de metamorfose se desfez pouco depois que cheguei a esse mundo, e o velho canalha nos encontrou. Não gostou de ouvir a verdade sobre a esposa e a irmã dele. — riu e começou a tossir, só voltando a falar depois de mais goles do cantil. — Que elas realmente são as prostitutas famintas por poder que todos falam.

— Pai! — Ramona o repreendeu, constrangida.

— É verdade, filha. É nojento o modo como elas oferecem os próprios domínios a qualquer um tenha algo que elas queiram.

— Elas realmente..?

O olhar dele era divertido. Ou podia ser somente a febre — ... dormiram comigo? Claro. Uma vez na mira delas, eu podia ceder e arriscar ofender o anfitrião, ou resistir e com certeza ofender as duas. Nimue uma vez sugeriu que eu poderia satisfazê-la aquela noite, ou Viviane não teria nada pra aproveitar quando eu voltasse.

O olhar ficou perdido. — Foi a coisa mais degradante que já fiz na vida, mas precisávamos do apoio deles e sua mãe insistiu.

O barulho que a filha fez parecia um sapo engasgado — Mamãe fez o quê?

— Insistiu. Eu teria voltado aos pedaços por recusar, nem teria entrado naquela armadilha, mas eu e sua mãe sabíamos o que poderia acontecer. Ela ficou brava comigo porque eu parei de me comportar como um prostituto, e cancelei todo o acordo.

Desviou o olhar do rosto da filha — Eles nunca teriam honrado o pacto. Quando percebi que pretendiam me matar e humilhar minha família, cancelei tudo e saí o mais rápido que pude. Ainda seríamos inimigos, mas com um prejuízo menor.

— Você não deveria ter aceitado essa maluquice, pai.

— Sei disso agora. — E pareceu murchar — Depois os idiotas se envolveram naquela batalha contra Lady Shih, e Nero me capturou, e depois Arcturus me capturou, matou e ridicularizou o Levi.

Lembrar da humilhação que ele fez o amigo passar... Que ele desfilasse com Luca, os gritos e as risadas não o afetavam, mas fazê-lo montar no cadáver do dragão... As lágrimas vieram, só duas, e não tentou disfarçar. Demorou pra notar que Ramona também chorava.

— Ele era só um filhote. Como eles tiveram coragem de fazer isso com um filhote de dragão?

— Covardes e assassinos, toda aquela porra de família vai rastejar. Eles vão gritar, as duas piranhas e o canalha, e pedir perdão ao Levi tão alto que ele vai ouvir, onde quer que seja a pós vida dos dragões honrados. Malditos, todos e cada um deles.

— Como você escapou, Luca?

— Não escapei. Me jogaram fora com o lixo. Apostaram que eu não conseguiria chegar ao território da sua mãe — O sorriso ficou mais amargo — Acertaram.

Ramona enxugava os olhos, sem entender. — Como não conseguiu, pai? Eu estou aqui. Cássio e Mauro vieram pra cá, estão todos te procurando. Logo vamos pra casa.

— Eu não vou, Ramona.

Com certeza ela não escutou direito, era isso. Luca viu a confusão no seu rosto, repetiu mais alto, com uma voz ainda pior e mais triste — Você deve me deixar aqui, filha. Mas eu aceito mais uns goles desse cantil.

A garota estava pálida. Começou a ligar os pontos: Raiva, humilhação e uma morte lenta e dolorosa, enquanto o falecido prometia vingança. Lua sagrada, por isso a certeza da maldição. Luca nunca esperava pela sorte, ou pelo favor dos deuses. Ele se tornaria a maldição que desejava — Esqueça, Luca. Eu amo você, pai, mas isso é loucura. Você não vai ficar aqui. Além disso — e odiou-se pelo tremor na voz — você prometeu. Você vai falar com minha mãe mais uma vez, lembra?

Os olhos dele brilharam, um sorriso que não chegou aos lábios — Minha palavra é ferro, e não, eu não esqueci. Mas eu estou falando com você uma última vez, não é m’lady?

Ramona abriu os olhos em choque, mas ficou séria enquanto desfazia a transformação — Quando você descobriu?

— Desde o começo. Você se certificaria que Ramona não pudesse sair sozinha à minha procura. E ela não teria me deixado falar tanto. Teria me amarrado, curado e arrastado de volta, reclamando o caminho inteiro.

— Imagino que sim.

— Foi maravilhoso vê-las uma última vez. Obrigado. Agora adeus.

Você só pode estar brincando, seu tolo!

— Você não me perdoou.

Não era uma acusação, nem um pedido: apenas a constatação do fato. Viviane não conseguiu argumentar. Sob a imagem de Ramona, poderia mentir, dizer que aquilo não a feria mais, mas não assim. Não com os olhos de Luca perfurando qualquer disfarce seu, mágico ou não. Ele tossiu mais uma vez.

— Como diria a música, nem todos os cavalos e homens do rei, Viviane. Estou quebrado, inútil, não tenho mais nada a oferecer. Deixe isso acabar.

Podia lidar com o ódio, o desprezo e o rancor dela. Mas a pena... Não conseguiria tolerar piedade. Então foi feliz que sentiu a mão dela no rosto, numa carícia discreta. Quando abriu os olhos outra vez, ela tinha desaparecido.

O alívio foi tão grande que sorriu, apesar da dor nas mãos. Graças a todas as Damas, aquilo em breve acabaria. Luca poderia sair daquela gaiola claustrofóbica e arruinada, e ninguém daquela família diabólica jamais esqueceria seu nome.

***

— Ah, minha santa Marie Kondo...

O dia tinha sido coberto de nuvens ameaçadoras, e como o clima sobre a casa sempre refletia o humor de sua mestra, já imaginava que teriam uma noite difícil, mas definitivamente não esperava os livros voadores. Ou vê-la ali.

Viviane estava sentada na cama Daquele-que-ainda-não-podia-ser-nomeado, e todas as coisas voavam num turbilhão negro ao seu redor. Bóris desviou-se de um livro de Medicina que parecia pesar uma tonelada, e outro. Um deles, que raspou suas orelhas, era tão grosso que devia ser à prova de balas.

— Viviane!

Uma garrafa de vidro quebrou-se acima dele, e os cacos se juntaram ao furacão.

— VIVIANE ! ISSO TEM QUE PARAR !

Ela não se virou. Não deu qualquer sinal que o notou ali. Então, numa última lufada, tudo voou. Livros, cadeiras, cacos, Bóris. Aquela coisa de “Gatos sempre caem em pé” funciona bem melhor quando o tal gato não é arremessado por explosões.

Gemendo e balançando a cabeça, Bóris voltou para o quarto destruído e se sentou na frente da mulher. Podiam ouvir as vozes dos garotos no quarto de Ramona, planejando novas formas de encontrar o mundano. O ar estalava de tensão, e parecia também haver um acordo implícito que poderiam gritar e quebrar as coisas à vontade depois que encontrassem o pai.

Quando pareceu seguro, o gato subiu na cama e pôs a pata sobre a mão dela, mas contato entre magos nunca é trivial, e logo tudo que ele queria era um abraço e um pote de sorvete.

Porém ele continuou na posição que estava, e passaram muito tempo ali, ouvindo os planos do Conselho de Guerra no andar de cima. Um relógio sobrevivente batia os segundos no vácuo, e Bóris pensou que passariam toda a noite parados e em silêncio. Ficaria ali, dando apoio, apesar das costas que começavam a doer de verdade. Tomou um susto quando ela falou.

— Algumas coisas não podem ser restauradas. Eu não o perdoei. Não confio nele como antes. Apesar disso... apesar de tudo isso...

Bóris conhecia Viviane. Depois de décadas como seu servo, apostaria um atum inteiro com qualquer um que nada mais o surpreenderia na bruxa da Lua.

Mas aquela expressão...

— Há horas. — ela gemeu — Desde que cheguei. Fico me dizendo que não adianta mais, que já é muito tarde...

“É muito tarde, não é?”

***

“Mauro, o que está acontecendo com você?”

O lobo só suspirou infeliz. Ele, Cássio e Marina voltaram do segundo dia de buscas de mãos vazias. Sua amiga desenhara tanto que dormia a sono solto enquanto Ramona e Fred estudavam mapas, procurando algum local que ainda não tivessem vasculhado. Mas aqueles dois... Mauro chegou e transformou-se num lobo, enquanto Cássio segurava no pelo do animal como se a vida dele dependesse disso.

“Olha pra eles” pensou deprimido em resposta. Ela viu Fred levantando-se rigidamente da cadeira, e olhando pra esposa dormindo, a cara fechada como se aquilo fosse um problema complicado. O lobo levantou-se, voltando a humano em dois passos. — Deixa que eu a levo, Fred.

Ergueu a prima sem dificuldade e desceram as escadas. Cássio pareceu envelhecer uns trinta anos, e Ramona jogou o braço ao redor dos ombros dele.

— Nós vamos encontrá-lo, Cas.

— Ele estava ferido. — respondeu coberto de remorso — Não tinha feitiços de proteção. Por que ele não tinha feitiços de proteção?

Era muito difícil explicar. — Ele é magicamente parte da minha mãe. Eu não consegui, e ele não quis esperar. — admitiu cabisbaixa.

Cássio balançou a cabeça, claramente sem entender. — Ela é sua mãe e esposa dele, Ramona, mas-

Ela o interrompeu. Sabia como ele se sentia e o quanto tinha razão, mas o Cas ainda não podia falar assim ali — Eu sei. É mesmo.

Viu os ombros do ciborgue caírem. — Nós devíamos tê-lo acompanhado até aqui, Ramona. Pro inferno todos os caralhos de tratados mágicos e o que sua mãe fosse pensar, eu devia tê-lo trazido até você, tido certeza que ele chegaria inteiro. Por que eu não trouxe o Odin, porra?

— Você não tinha como saber que isso aconteceria, Cas.

— Eu tinha que saber, merda! A única coisa que eu posso fazer é destruir coisas, eu devia ter colado no idiota do nosso pai até ele chegar aqui. Transformar o filho da puta que o atacou em nada.

O olho humano estava úmido, mas os dentes rangiam. — A última merda que fiz fodeu o Fred. Marina está exausta. Mauro, Denise, Xavier, Carmem e sei lá quantas centenas de pessoas morreram. A maior parte delas eu nem conhecia. Se minha burrice também tiver matado o Odin...

Ramona não sabia o que dizer, até que sentiu uma diferença sutil, como um estalo nos ouvidos, e olhou pra baixo. Sua mãe estava fazendo magia. Mas o que...

Nossa merda, Cássio. — uma voz aguda cheia de raiva retrucou da janela — Não se atreva a assumir essa responsabilidade sozinho outra vez.

Ramona forçou os olhos e viu uma pequena ave de rapina no parapeito. O ciborgue virou intrigado. — Que forma é essa, Mau? O que aconteceu?

— Um falcão. Ramona, proteja meu mestre e os outros, nós dois vamos voar.

A mulher se afastou, e viu o ciborgue encolher e acinzentar, até um camundongo cinzento correr até a janela, o falcão o prender nas garras e juntos sumirem na noite.

***

As gotas pingavam no rosto. Não gostava da umidade, mas já não conseguia se mover pra longe, e a sede era desesperadora.

Pudesse voltar no tempo, Luca teria se arrastado até perder os sentidos. Nunca imaginaria que podia demorar tanto pra morrer de fome. Aos poucos, o ódio e a vingança davam lugar à tristeza. Morreria — precisava morrer — mas odiou fazer isso sozinho na escuridão. Mesmo que não tivessem nada de bom pra lhe dizer, daria tudo pra ouvir uma voz amiga.

Apesar de saber que nenhum deles — Exceto o Cássio e talvez o Mauro — aceitaria que partisse. Que executasse um último plano e vingasse Leviatã. Insistiriam na ideia de “enquanto há vida há esperança” e uma pilha de bobajada idealista sem qualquer solução real.

Tinha, como disse o poeta, os filhos vivos, sua família segura, a casa em ordem, a mesa posta. Tinha uma tarefa, atormentar as pessoas que se divertiram ao humilhar seu amigo. Além de tudo, e não queria pensar que era o maior motivo, estava cansado. Perdera, e perdera de novo, e mais uma vez. Não era mais um atleta no auge, e sim uma atração de quinta, usada pra entreter no intervalo. Então era melhor encerrar a história daquela forma medíocre que continuar de forma tão ruim.

Pensou em Bandeira, em músicas que conhecia, nas histórias que queria ter contado pros netos, em quanto tempo ainda esperaria. Ouvira falar de greves de fome que duraram sete meses. Não, estaria louco muito antes disso. Nem mesmo ele — e talvez até Marina concordasse — merecia isso.

Sete meses. Lua sagrada, quanto realmente faltava pra esse tormento acabar?

***

A coruja soltou uns estalos reprovadores antes de se transformar de volta. Sua audição confirmava claramente que o mundano continuava bem vivo, apesar da aparência decrépita.

Por que voltara? Ainda estava sem fôlego, obcecada pela necessidade de chegar, pelo remorso de tê-lo deixado pra trás, mas ainda não sabia a razão. Assim como não sabia o que a fizera se transformar e correr para aquela dimensão de forma tão precipitada ao saber que aquele humano ridículo tinha sido capturado.

Quase podia ouvir a resposta da filha. Amor... Ridículo. Jamais poderia amar uma criatura tão fraca, orgulhosa e inflexível quanto aquele humano. Ele foi uma distração, um brinquedo e nada mais.

Ainda assim, estava ali. Por que estava ali? Era frustrante demais não saber. Também não imaginava o que faria agora. O mundano tinha razão, seria mais simples deixá-lo partir. Mais rápido, menos doloroso, misericordioso até. Ele, que estava em farrapos quando o arrancou da pira de Nero, agora estava dez vezes pior. Pôs a mão em seu peito, um corpo que desejara e desprezara em igual medida. Podia sentir-lhe o coração como um pássaro aprisionado, esforçando-se cada vez mais pra escapar daquela gaiola imunda.

Decidiu-se. Morto ou não, orgulhoso, arrogante e insuportável como era, aquele mundano pertencia a ela. E Viviane não abria mão do que era seu. Nunca.

Sussurrou um feitiço de estase e estava prestes a levá-lo de volta, quando ouviu um pensamento com clareza:

“Espere um minuto mais, por favor”

Em seguida, um grito estrangulado rompeu o ar frio.

***

Nimue correu ansiosa no meio do grupo. Não sabia como a Bruxa da Lua entrara em seu território uma segunda vez tão sorrateiramente, mas não escaparia agora. Mesmo que não a pudesse capturar, invasão certamente era uma ofensa grave, mesmo praquela espécie bárbara.

Sabia que era uma boa escolha deixar aquele mortal solto; ele era persistente, daria uma isca perfeita. Cedo ou tarde, ele pediria ajuda e alguém viria resgatá-lo. Mas os dias passaram, e nada aconteceu. Ela começava a duvidar da importância do mortal — ele era companheiro da Bruxa da Lua, não era? — até que a megera em pessoa veio encontrá-lo. Que fabuloso!

Seus wargs corriam, sentindo seu anseio, tão famintos pela presa quanto ela. Então, a poucas dezenas de metros, todos caíram, como marionetes de cordas cortadas. Ela não parou; estava perto demais do seu objetivo pra desistir agora.

Encontrou um homem, ou melhor: viu um homem. Mortais e magos tinham sua própria aura, mas aquele... ser misturava-se à floresta com perfeição. Não fosse pela sombra desenhada pela lua, pensaria se tratar de uma ilusão da bruxa rival. A seus pés, um lobo cinzento de aparência comum, a postura atenta. Tão pequeno que qualquer um dos seus wargs o comeria no almoço sem problemas.

Ela desacelerou. E antes que pudesse perguntar quem eram aqueles, o animal olhou pra ela, e Nimue gritou um segundo, até que não pôde mais. Como um hipnotizador de cobras, o bicho a encarava, seu ataque mental quebrando e escavando suas memórias com a brutalidade de um elasmotério bêbado.

Damas das Trevas... O animal era um mago. Era assim que a velha meretriz se deslocava, a magia dela a transformava num animal. Nimue debateu-se na frustração assustada de um predador vítima de um assassino maior, mas não escapou. Conforme o ataque piorava, os olhos do lobo acima dela chamejavam em amarelo. Os lábios negros repuxavam, num rosnar involuntário conforme ele via o que ela tinha visto.

Quando pareceu satisfeito e ela já via tudo dobrado, nauseada de tanta dor, o homem aproximou-se. A mão que agarrou sua testa era quente, mas o cheiro... Deuses, era um lorde zumbi. Como a Megera da Lua pôde invocar um lorde zumbi?

De longe, o lobo comandou:

— Não a mate.

O olho cego do zumbi era intenso e faminto, como a voz — Não. Vou fazer pior.

A dor de cabeça piorou ainda mais, as mãos finalmente livres pra tentar arrancar a garra que prendia sua cabeça, sem sucesso. Logo, a garganta começou a se encher de sangue, e durante um rosnado grave, sua visão escureceu.

Ouvira falar que lordes zumbis tinham um exército morto-vivo a seu dispor. Não, deuses, ela não podia ser transformada numa coisa daquelas... até que a dor passou. Respirou fundo, surpresa, liberta.

— E então? — perguntou o zumbi, de algum lugar à sua direita.

A satisfação na voz do lobo era diabólica — Ela não faz ideia de como chegamos aqui, ou como não nos localizou. São incríveis em magia totêmica e rituais, em magia empática também, mas contra o que você faz... — Em seguida, mais grave — Ainda tem alguns deles. O canalha que capturou os dois, a piranha que teve aquela ideia nojenta e os soldados que mataram o dragão.

— Vamos. — Houve um bater de asas, e estava só. Começou a invocar um feitiço, seria simples recuperar a visão e persegui-los. Concentrou-se, respirou fundo e... nada. Tentou vezes sem conta, até as têmporas latejarem, mas a magia não vinha.

Se deu conta do que lhe aconteceu, e chorou sem voz, e quis suplicar que voltassem, que a matassem, e sabia que não voltariam.

Não receberia tanta misericórdia assim.

***

A manhã seguinte encontrou o Lorde Arcturus, sua irmã e alguns de seus melhores soldados mudos e aterrorizados. Lady Nimue tinha desaparecido e o cadáver do dragão na praça também. O mais espantoso, os elfos sussurravam, é que os dois líderes dos Grimild pareciam incapazes de invocar qualquer feitiço, por mais simples que fosse.

Era o destino, afirmavam os mais enfáticos, enquanto a notícia se espalhava pelos bares e praças. Com certeza matar um dragão — ainda mais um filhote — só podia trazer punição divina. Afinal, o próprio Tiamat não era um dragão?