— Como ele está?

— Ainda hibernando — respondeu Ramona pela décima vez naquele dia. Marina passou por ela e recolheu com delicadeza a pequena serpente da cama de palha onde estava abrigada.

Não, ela não estava aborrecida. Surpresa, chocada, tonta com as reviravoltas dos pais; mas não aborrecida.

Só não tinha mais qualquer esperança de entender o que se passava pela cabeça da sua mãe. Depois de dias amaldiçoando e xingando seu pai, se recusando a ajudar ou sequer ter notícias dele, ela aparece na sua janela como a coruja-das-torres mais mal-humorada do mundo, carregando uma cobrinha que parecia saída de uma briga com um aparador de grama.

O soltou nas suas mãos, como se não estivesse satisfeita com a caçada, e voou para seu quarto. Levou um minuto apavorante para Ramona reconhecer o encanto de estase, então seu pai não estava morto... ainda.

Não que ele não viesse se esforçando bastante pra isso (e teria uma conversa séria com aqueles três sobre intervenções heroicas muito em breve), mas depois de uma pilha de ervas, curativos e xingamentos, além de alguma ajuda de Bóris, pôde suspender o encanto e deixar seu pai hibernando como qualquer pai-serpente normal faria depois de tanto estresse.

Então clareou, e quando ela pensou que poderia dormir por dez horas, Cássio e Mauro voltaram, e os cinco se reuniram novamente no seu quarto.

Outra vez um lobo, Mauro resumiu como viu Viviane voando e decidiu segui-la. Como encontraram os responsáveis pela captura do Luca à espreita “e os fizeram pagar”.

— Vocês os mataram? — ela perguntou, sem muita certeza de que queria saber a resposta.

Cássio deu um sorriso (o que era ainda mais sinistro com ele em forma de javali) enquanto negava com a cabeça — Cortei a ligação deles com a magia, tirei a voz deles. Os soldados agora têm mãos de velho.

Mauro complementou, um rosnado vibrando grave no peito — Eu os teria matado pelo que ele fizeram ao Odin e ao Levi, só por ter sido obrigado a ver aquelas memórias repulsivas mais de uma vez, mas o javali tem razão: Os filhos da puta vão desejar ter morrido. Não sei se a piranha vai viver o suficiente pra descobrir que a cegueira foi hipnose.

Marina e Fred assentiram sombriamente, a garota segurando uma bolinha de escamas verdes entre as mãos, às vezes deixando escapar um fungado.

Era isso. Sempre havia alguma coisa, um nome ou gesto, que levava todos eles a um lugar que ninguém mais era capaz de alcançar.

— Mas como é possível, Cas? — Agora entendia todo o temor da mãe em permitir seus amigos na nova dimensão. Perder a conexão com a energia mágica... Era mesmo pior que a morte. — Vocês têm certeza?

— Já fiz isso antes, com a Magá. — mais arquejos de espanto — Um acidente. O fato é que a biologia daqueles merdas não é tão diferente, então sim eu tenho certeza, Ramona.

— Pessoal? Posso entrar?

— Entra, Bóris.

— Aaaargh! Mas como esses... Ah. — O pêlo baixou ao reconhecer o aluno e o marido dele, eles estavam bons demais nesse negócio de metamorfose. Desceu da estante, fingindo que nada aconteceu — Oi, Mauro. Oi, Cas.

— Olá, sensei. — Como um vento fresco, o ambiente ficou mais leve. Depois de uma pequena mesura, Mauro se aproximou da serpente imóvel, o nariz do mago tremendo enquanto farejava as mãos de Marina.

— E então? Como está nosso Vô-de-Morte?

— Vô-de..?

O gato balançou a pata, indiferente. — Aquele que não deve ser nomeado. Porque se eu digo “Luca”...

— Não diga... — Ramona pulou sobre seus instrumentos, mas nada aconteceu. Ué? — Pra que você fez isso?

Bóris mostrou os dentes num riso malandro — Brincadeira, garota. — e para os outros — A Bruxa da Lua transformou o nome dele em tabu. Sempre que alguém falava o nome ou o apelido do escamoso aqui, puf, alguma coisa virava fumaça. Mas agora está tudo bem.

— Aff. — Ramona revirou os olhos. Típico do Bóris. Fred, que também vigiava atentamente o animalzinho nas mãos da esposa, olhou pra bruxa inseguro — Sim, Fred. Ele está se recuperando.

— Ele está tão frio.

— Luca vai ficar bem, Fred — Mauro mentiu. Mesmo inconsciente, podia sentir a depressão nele, toda aquela coisa sombria e sufocante tirando-lhe a vontade de viver. Se nada mudasse, nenhuma magia de cura seria suficiente. Odin morreria, um bicho selvagem numa gaiola apertada demais.

Mauro passou de leve o focinho no animal encolhido. — Até outra hora, pai. — Murmurou, cheio de afeto. — Ele vai ficar bem, Fred. Só fiquem com ele por nós, ok?

Ramona e os outros olharam pra ele e pro javali, em pé e pronto pra partir. — Mas vocês acabaram de chegar!

— Não podem ligar sua família ao que acabou que acontecer, vocês não aguentam outra disputa agora. Só viemos pra ter certeza que sua mãe tinha trazido o Odin de volta inteiro.

Mesmo em forma de animal, ela podia sentir a tristeza dos dois. As expressões de Mauro, as vezes que ele quase falava, mas mudava de ideia, o jeito como o Cas parecia satisfeito em deitar no seu tapete e só respirar... qual seria o nome correto para aquilo? Fascínio?

Então o lobo olhou direto pra ela e deixou que ela visse os últimos dias do ponto de vista deles. A calma e tranquilidade enquanto eles estavam na mansão, comer as refeições que Fred preparava e mesmo entreter as crianças à noite... Pra Ramona, essas semanas tinham sido um purgatório completo. Pra eles, pareciam momentos no paraíso.

“Nós não podemos ficar” completou numa tristeza agridoce.

A bruxa se deslocou pelo quarto e abraçou o pescoço do lobo. — Cuide-se, está bem?

De início, Mauro não se mexeu. Então sentiu um vibrar baixo, o mais perto que um canino chegaria de ronronar, o focinho pressionando sua bochecha.

“Você é a melhor, maninha”

“Só fiquem vivos, seu bobo”

E o abraçou mais forte. Ele ainda cheirava a sangue e fumaça, as patas estavam sujas de lama e ela não queria saber mais o quê, e ao mesmo tempo, tinha o pelo tão macio.

Cássio deu a volta com cuidado — algo difícil para um javali de noventa quilos — e empurrou de leve o ombro de Marina, que ainda tentava acordar o Luca.

— Relaxa, Ma.

— Denise e Xaveco estão bem, não é?

— Da última vez que encontramos os dois, estavam ótimos. Por quê?

— Da última vez que eu os encontrei, não estavam. Havia uns cinco dias. O cheiro... — murmurou. — perdi o controle.

— Puta merda.

— Você se lembra do cheiro?

Fred pôs o braço em torno dos ombros dela, e ela se aninhou no peito dele, ainda olhando o pequeno animal em suas mãos.

— Claro que sim.

O homem olhou pra esposa, um tanto exasperado. — Já disse a ela mil vezes que todo mundo diz coisas erradas de cabeça quente, não adiantou.

— Não é o que eu disse, amor, e sim quando. Ele estava brigado com Viviane, rodeado de cadáveres, e eu o tratei como o vilão psicopata que ele ainda acredita que é. Se eu tivesse ficado, pelo menos tivesse voltado logo depois, ele teria me chamado pra voltar. Leviatã estaria vivo e Luca não estaria assim, sem querer acordar.

A voz quebrou na última sílaba. Mal dormira nas últimas noites, tentando lidar com o remorso. Seu pai tinha que acordar. Tinha que lhe dar a chance de pedir desculpas. Mesmo que não a desculpasse, até com isso podia viver. Mas imaginá-lo sem saber o quanto lamentava ou como queria ter feito diferente era insuportável.

O irmão adotivo empurrou seu braço com um pouco mais de força. — Ramona disse que esse réptil teimoso vai acordar, ok? Até lá, pense num jeito de se redimir. Com o tempo, as coisas se ajeitam, prometo.

Não arriscaria chegar tão perto quanto o lobo. Como avatar da decadência, Cássio era péssimo pra doentes em recuperação. “Velhote orgulhoso duma figa, você tá de parabéns” cochichou, antes de se despedir dos outros e sair trotando com Fred e Mauro de volta para sua dimensão.

***

Esperava que o mundano ainda estivesse dormindo, mas os olhos de conta da pequena serpente estavam bem alertas quando abriu a porta. Suspirou e fechou a porta do quarto, o chá quente ainda na mão.

O relógio persistia, a corda quase no fim. Viviane tomou todo o chá e passou ainda mais tempo olhando o fundo do vasilhame, como se ali pudesse estar escondido o sentido de todas as coisas perdidas entre os dois.

Luca não a olhou. Ele também não sabia, ou como lidar com o que sobrou da própria vida. Ouviu quando ela pousou a tigela de cerâmica na mesa ao lado do seu pequeno ninho de palha e fechar a porta ao sair.

De todas as coisas sem importância no mundo, o intrigou o fato dela ter deixado a tigela de chá. Quando a curiosidade o venceu, virou a cabeça apenas o suficiente pra olhar o objeto. Parte dele sorriu.

Era uma tigela kintsugi, que seus filhos trouxeram do MASP anos antes. As trilhas douradas percorriam todo um lado da cerâmica, ressaltando e juntando com ouro as falhas do que de outra forma seria uma pilha de cacos sem valor. Viviane, de todas as pessoas no mundo, sabia o quanto ele gostava daquela peça.

Naquela noite ele dormiu bem.

FIM

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.