Era bem simples: Caminhar em linha reta, não sair da trilha, não chamar a atenção. Somos sobreviventes também, passamos anos em outra floresta repleta de seres mitológicos, estava bem acostumado com a mata.

Mas não, Mauro e Cássio tratavam a tarefa como o lançamento de um maldito foguete. Depois daquela discussão irritante, tudo que eu queria era vazar dali, encontrar o Licurgo e mostrar que eu era capaz de fazer pelo menos isso. Graças a Deus Denise concordou em sair logo.

Pelo menos agora Mauro parecia menos decidido a me mostrar quem era o alfa daquela porra (chegou até a agradecer pela ajuda no incêndio). Me entregou uma lanterna UV com umas recomendações estranhas sobre a escuridão perto do fim do trajeto, e fui me despedir de Cássio.

Ele parecia doente, e suspeito que eu e Denise éramos parte do problema. Estava em silêncio, o queixo apoiado nas mãos, e pareceu surpreso de verdade ao me ouvir ao seu lado.

— Estamos indo, Cas.

— Escute o Mauro, Xavier. A direção que vocês vão... Tinha uma coisa realmente maligna morando lá. Só Deus sabe o tipo de sequela que isso deixa no ambiente.

— Vocês sobreviveram. E pelo que Mauro falou, antes de você adquirir seus poderes. Nós vamos conseguir.

É seguir uma porra de trilha! Qual era o problema daqueles dois?

— Eu não sobrevivi, Xavier. Aquela coisa me cegou e me matou.

Meu estômago virou uma pedra e caiu até os pés. O que Cássio era, meu Deus?

— Mauro manteve meu coração batendo e Ângelo me trouxe de volta. Estou vivo... mais ou menos. O que quero dizer é que temos motivo pra tudo isso. Na verdade, se Mauro não tivesse certeza que os dois sabem o que estão fazendo, nem fodendo eu deixaria vocês irem atrás do Louco.

Não havia um traço de humor na voz do ciborgue. Na verdade, ele estava tremendo. Eu fiquei congelado no lugar, tentando absorver toda a informação.

— Licurgo... Nunca o encontrei pessoalmente depois que virei... isso, mas percebo muita coisa. O cara ainda mora lá, e pode ajudar se quiser. Tomem cuidado no caminho, tem alguma a mais tentando se esconder de mim por aí. Só se cuide, e cuide da Denise, ok?

***

Talvez eu ainda estivesse impressionado com o que Cássio tinha dito, mas sentia toda a floresta vigiando nossos passos. Denise também estava desconfortável, olhando pros lados. Eu seguia atrás dela, pronto pra reagir a qualquer coisa, natural ou não, que cruzasse nosso caminho.

— Essas árvores... elas não gostam de nós. — Ela olhou pra trás, pronta pra discutir quando eu a olhasse sem entender, o que normalmente acontecia quando ela jogava essas frases aleatórias. Viu minha inquietação e virou-se pra responder.

A expressão dela relaxou e ela caiu como um saco de roupas. Me joguei no chão, a tempo de ver outro dardo atingir uma árvore ao meu lado. Arranquei a agulha no braço dela e localizei os dois atacantes que se aproximavam. Um terceiro foi atingido por algo do tamanho de um pombo e caiu da árvore. A esse, eu não dei chance de usar a zarabatana novamente.

Eu os conhecia. Artistas marciais, vieram com ganchos, cordas e um rifle, como se eu fosse uma droga de urso. Eram os dois melhores da tropa de curta distância do Nero, da mesma turma que a minha.

Só não entendia por que só três. Mais gente significa que é mais fácil e menos dos seus se machuca. Eles quase puseram um anúncio na testa “Temos de levar vocês de volta discretamente. E vivos.” Porém teriam que mandar o Satanás em pessoa se quisessem que eu ou Denise voltássemos pras mãos da garota sociopata ou Bianconero.

Tinha confiança nas minhas chances de vencer sem matar mais ninguém até que vi outro atacante. Merda, o Nico. Mesmo os outros caras deram espaço pra ele passar.

Ele sorriu, ansioso pra lutar comigo. Em condições normais, eu não teria medo de um sujeito como ele. Magrelo e comprido, com um cabelo loiro esquisito e bem medíocre em combate. Mas o azar acompanhava o cara como uma nuvem. As coisas davam errado pra todo mundo, você esquecia o que ia fazer, escorregava, tudo que puder imaginar. Nico não batia em você; você se quebrava sozinho enquanto ele tentava te acertar.

A coisa era tão feia que o chamávamos de Nico Demo. Pelo menos quando o superintendente não estava olhando. Mas até ele teve que suspender o irmãozinho adotivo dos treinos, quando já tinha tanta gente machucada que arriscava ficar toda a tropa de licença médica. A uma distância segura, eu até gostava dele.

Nico, vou odiar fazer isso, de verdade. Puxei a pistola e disparei.

Ele tropeçou na hora e os disparos acertaram Ricardo na cara. Quando mirei de novo em Nico, a pistola engasgou. Tentei arrumar a pane, não consegui, desviei no último segundo de um soco, mas pisei em alguma coisa úmida e caí de costas no chão. Ele começou a tentar me acertar e eu desviava, batendo de volta. A luta ficou tão confusa que a única cotovelada que ele me acertou foi por acidente. O outro murro que levei na cara foi meu.

Se eu continuasse assim, acabaria desmaiado por causa de uma comédia pastelão ruim. Rolei pro lado, a única coisa que funcionava era se afastar, e depressa. Pude ver Fábio ajoelhando pra fazer mira. Merda, como eu escapo disso? Me joguei pro lado, trombei numa árvore que nem tinha visto.

O estalo se perdeu no barulho do disparo, e um galho podre me esmagou contra as raízes da árvore velha. Eu ainda respirava pela metade quando ouvi os passos ao meu lado. Um deles amarrava minhas pernas, enquanto ouvia o engatilhar da arma.

— Certeza que quer fazer isso, Fábio? Se desviar da missão não fará o Nero feliz. — Normalmente não falávamos durante um trabalho, mas Denise estava caída em algum lugar da floresta. Eu precisava sair daquela situação fodida em que estava, ou pelo menos ganhar tempo.

— Você matou o Ricardo, seu puto. A missão sofreu um contratempo. Infelizmente, precisei atirar.

— Não, Fábio. Vamos levá-lo vivo, é esse o objetivo. Atirar na nuca dele vai ser rápido demais.

Ouvi um rosnado de desagrado. Mas não ouvi ele travar a arma.

— Mas com certeza ele não precisa dos dois braços pro que o General está planejando pra ele.

— Fábio, não!

Protegi a cabeça, me preparando pro impacto. No ódio de mim, Fábio esqueceu da regra número um pra combater ao lado do Nico Demo: Quanto mais perto, pior fica o azar. E nunca, mas nunca mesmo, use armas de fogo.

O rifle explodiu. Os gemidos tinham silenciado quando finalmente consegui me livrar do galho e das cordas. Também havia estilhaços em mim, mas em nenhum lugar vital.

Os dois estavam caídos, Fábio desfigurado pela explosão. Conferi, morte instantânea. Nico continuava vivo, mas inconsciente, com uma mancha vermelha se espalhando na camisa.

Eu tinha bebido e treinado com eles, conhecia até o estilo favorito de cada um. Numa luta justa, eu teria levado uma surra de perder os sentidos. Segurei a cabeça dele com delicadeza. Me sentia um merda covarde, mas não tinha outro jeito. Não podia arriscar tudo deixando esse cara vivo pra nos perseguir.

— Eu não queria, Nico. Me desculpe. — Falei baixinho antes de quebrar o pescoço dele.

Dei a volta, procurando mais alguém, além de um lugar pra colocar os corpos, quando ouvi algo dentro da cabeça. “Volte”, ordenava a voz. “Volte pra perto de Denise agora!”

Olhei ao redor, graças a Deus não tinha me afastado muito da trilha. Corri de volta pra encontrar a cena mais apavorante de um dia tenebroso. Denise caída no chão, exatamente onde a deixei, o olhar perdido e sem respirar. Me ajoelhei ao lado dela, sacudindo-a, tentando fazê-la reagir. Os lábios dela estavam roxos.

Eu não sabia o que fazer. Que diabo de veneno era aquele? A voz voltou, mais irritada e imperiosa que antes. “Vou te ajudar. Diga eu aceito e não tente resistir.”

— O...o quê? Aceito o quê?

“Só repita Eu aceito, porra! Agora!”

— Eu aceito. Salv...

Até agora não sei descrever a sensação. Imagine que você mergulhou no oceano gelado, e começou a sentir todo o corpo enrijecer e tremer contra sua vontade. Me sentia... errado, acho. Num segundo, meu corpo começou a mexer sozinho, e tudo que eu podia fazer era assistir. Meus dedos foram até o pescoço, e senti um pulso fraco. A faca apareceu e fez um pequeno corte no braço de Denise, e levou o sangue à minha língua. O... ser identificou alguma coisa no sabor, e pareceu satisfeito.

Eu/ele começou a reanimá-la com a habilidade de um profissional. Depois do que pareceu uma eternidade, a cor voltou ao rosto de Denise e ela respirava sozinha.

— Eu...não sei quem você é, mas te devo a vida dela. Não tenho como agradecer.

“Desista de atirar nas minhas visitas e ficamos quites”

— Mauro? — Silêncio. Testei a mão, já podia me mover sozinho. Denise olhou pro meu rosto, tentando não chorar. Levantou devagar com a minha ajuda. Há anos eu não a via tão amedrontada.

— Eu… não conseguia respirar. Tentava, mas o corpo não obedecia. Foi...

Ela silenciou, quando comecei a ouvir. Latidos agudos numa confusão. Todas as tardes assistindo o Canal Animal na TV não foram em vão, eu reconheci e gelei. Hienas. E eu estou cheirando a sangue, o de Fábio e o meu. Puta merda.

— Amor, precisamos ir. Agora. Se eu disser corre, largue tudo e suba na primeira árvore que puder. — Ela assentiu, e começamos a caminhar o mais depressa que conseguíamos.

Já tinha escurecido havia muito tempo, mas eu não ousei parar. Denise não reclamava, mas eu podia ouvi-la arfar de cansaço. Eu poria a maior distância que pudesse entre nós e aqueles bichos. Havia aquele... drone voando atrás de nós, mas já não me preocupava. Só mantinha os olhos na mata, atento a outros predadores de duas ou quatro pernas.

— Eu preciso parar um pouco, Xavier. Vamos encontrar um abrigo.

— Tem razão.

— Mas não podemos quebrar os galhos. Nem fogo. — Tudo o que eu queria era esticar as pernas um pouco, mas graças a Deus hoje não tem fogueira.

— Podemos subir nas árvores?

— Sim.

— Então vamos voltar, passamos por uma árvore ótima uns minutos atrás. — Pelo menos, essa não dava a sensação que queria nos estrangular. Levou um tempo pra encontrá-la no escuro, mas achamos, nos limpamos com calma, escalamos e nos ajeitamos como deu. Mais uma noite dormindo mal pra caramba, mas eu estava feliz. A perna, limpa e cheia de curativos, já nem incomodava mais. Denise aconchegou-se nos meus braços e ficou em silêncio por tanto tempo que eu pensei que tinha dormido.

— Pensei que eu fosse morrer hoje — murmurou. Desde que toda essa merda começou, quando estávamos aqui fora, sempre conversávamos assim, quase sem ruído.

— Também pensei. Quase morri de medo.

— Quando você aprendeu a fazer RCP?

— Não aprendi. Foi o Mauro. Quando tudo isso acabar, vou passar um ano inteiro agradecendo a ele. De joelhos, se ele quiser. — Senti o risinho dela vibrar no meu peito. — Já vivi tempo demais sem você, garota.

— Eu beijaria você, mas acho que isso nos derrubaria daqui.

— Vale a pena tentar — Comecei a me ajeitar, Denise se segurou no lugar com força.

— Mas o que... tá maluco, seu estrupício? Para de se mexer! Não sobrevivi ao armagedon pra morrer de queda de árvore! Quando Denise sair desse plano, será com estilo, glamour e purpurina, não num fim de mundo qualquer!

É, ela ficaria bem. — Relaxa, estamos amarrados aqui. Vai ter que cortar três nós pra cair no chão.

Sempre que ela sorria assim, meu coração dava cambalhotas. — Namoro um homem esperto, imbatível e com algumas cantadas boas. Meu bom gosto é mesmo indiscutível, não... — A voz se perdeu quando mordisquei a orelha dela. Passei um bom tempo provocando-a antes de sugerir:

— Sabe, o topo de uma árvore é um dos lugares em que nós não...

— Você é um tarado, pervertido e parece preferir todos os lugares impróprios ou perigosos... Adoro. Hoje não vai rolar, mas seus... argumentos são uma delícia.

— Tem certeza, linda?

— Absoluta. Sem acrobacia no topo de árvores, pelo menos hoje.

Mergulhei o rosto no cabelo dela, me perdendo no meu aroma favorito e tendo outra ideia.

— “Um girassol nos teus cabelos… Batom vermelho, girassol…”— comecei a cantar baixinho, ouvindo o suspirar satisfeito dela. Santo Deus, como eu amo essa mulher. — “Morena, flor do desejo… Ah, teu cheiro em meu lençol…”

***

Acordei com o sol no rosto e Denise babando no meu ombro. Ela sempre acabava dormindo durante o último turno, mas nem conseguia ficar muito bravo. Aproveitei os minutos de silêncio... relativo, nunca é silencioso de verdade na natureza. Quando toda essa zorra acabar, adoraria construir uma casinha num lugar assim...

Para, Xavier. Você tem uma namorada incrível, saúde e consegue dormir à noite. É tudo o que você tem, e é mais do que merece. Concentra em terminar a porra do dia com a namorada incrível viva, respirando e sem fazer nenhuma merda que estrague o resto da sua dignidade.

— Acorda, amor.

— ... É o turno da Maitê e da Marina, lindo... Vamos dormir um pouquinho mais...

Fiz uma careta. Nós dois somos mais velhos que o Xavecão e a Denise do futuro quando chegaram nessa realidade, e já passou dois anos da data em que saíram do futuro deles. Há meses tenho sonhos e lembranças de coisas que não vivi, e a Dê também. A Denise do futuro... Se ela tem problemas, não confessa nem à sombra. Assumiu o lugar de liderança nos rebeldes aos Filhos da Tormenta, e sabota os planos de Lady Shih do jeito que pode. O Xavecão... Bem, dois apocalipses foram demais pra ele, e Denise precisou fazer algumas coisas bem extremas pra mantê-lo vivo.

Patético, não? O eu futuro da minha namorada: Comandando os rebeldes e nos dando a chance de consertar tudo. O meu: Um golem babão de armadura. Foco, Xavier. Um problema de cada vez. Hoje é chegar na casa do Licurgo. De preferência, inteiros.

Não houve novos incidentes até chegarmos perto da praça. Comecei a ficar enjoado, mas Denise precisou parar. Vomitou umas duas vezes, e xingou Mauro e Cássio de uns nomes tão criativos que tive que segurar o riso. Ela estava furiosa de verdade, e se me visse rindo era capaz dela me bater.

— Vou estrangular aquele ciborgue filho de uma chocadeira e aquele Mandrako fajuto do marido dele! Pelas roupas da Lady Gagá, eles deveriam ter nos avisado! Xavier, vamos por aquele lado, agora. — Demos uma volta enorme, e ela parecia menos verde.

— Linda, do que você está falando?

Ela soletrou em LIBRAS, o que ela fazia quando mesmo sussurrar era muito perigoso.

S-E-R-P-E-N-T-E.

Quis me juntar a ela no estrangulamento. Era tão mais simples contar sem tantos subterfúgios. “A propósito, eu e Cássio enfrentamos uma manifestação direta do Mal Primordial nesse caminho que estamos mandando vocês. Tomem cuidado, tá?” Eu teria acreditado, e entendido cada precaução que tomaram. Droga, eu teria dobrado os cuidados. Arranjado uma bazuca pra essa viagem.

Engoli minha raiva. Lembrei da expressão de Cássio antes de sairmos. — Eles foram derrotados, Dê. Cássio morreu nessa briga e resgatado pelo Ângelo. Quando ele me falou isso ontem, tremia como vara verde.

Ela olhou pra minha mochila, e pra mim aborrecida. — Você podia ter mencionado esse detalhe de nada, não é? Por isso a lanterna estilosa. O Astronauta usou um canhão de raios UV pra destruir as sombras líquidas, claro que depois de toda aquela anarquia Franja faria uma versão menor em caso de ataque. Eles devem ter invadido o laboratório, é aqui perto. Mas que coisa, Cássio morreu? Não é à toa que o bofe é tão sequelado. Ou que Mauro é tão protetor.

Passamos um tempo parados, ela olhando os pergaminhos, eu tentando imaginar como combater manifestações maléficas só com a droga de uma lanterninha, sal grosso e pensamento positivo... Esquece, só a lanterninha e sal grosso mesmo. Antes que a falta de esperança me engolisse, Denise fechou a mochila e suspirou, olhando o trecho de cidade em ruínas que nos separava do destino da viagem.

— Podemos passar uma semana aqui e não ficaremos mais prontos que agora. Vamos em frente, lindo. Ângelo... Se puder, nos ajude. Isso precisa dar certo.

Demos a maior volta que foi possível, caminhar naquele descampado quase me matou de nervosismo, mas no fim nada aconteceu. Talvez o Ângelo estivesse mesmo ajudando. Pude ver de longe uma pedra que parecia um túmulo, mas me forcei a ignorar. Entramos no parque abandonado. O parque do ursinho Bilu em ruínas, esse aqui também... Era triste demais. Vínhamos aqui tantas vezes que o chamávamos de Parque da Mônica. Entramos em alerta máximo, procurando zumbis, bandidos ou robôs possuídos por vírus malignos.