Oitava Fileira

Esses sapatos não foram feitos pra entrar na toca do coelho


Entrei de cabelos em pé. Já tive minha cota de experiências ruins em parques, e Xaveco parecia o Mingau num canil. Quando passamos da porta, fomos sacudidos por um som tão alto que Xaveco me jogou atrás de um brinquedo e se escondeu também. O grave vibrava até nossos ossos, e levamos uns instantes pra entender o que realmente era.

Era música. Em alto-falantes que poderiam animar um show de rock. Morri e fui pro céu, gente! Quando Xaveco saiu do modo superprotetor, reconheceu também e articulou:

“Como isso é possível?” E isso importa? O que realmente é importante é que uma coisa impossível como essa só aconteceria se...

— Ele está aqui! — Gritei em resposta, mas claro que ele não ouviu. Então levantei e o puxei até a fonte da música. No caminho, fui reconhecendo as palavras.

“Ichty gitchi Ya Ya Da Da...” Tô passada. Nunca imaginei o Licurgo escutando esse tipo de música... Já gosto mais dele. Chegamos até o palco, com todas as luzes ligadas.

Acho que o queixo do Xaveco fez barulho quando bateu no chão. Mesmo eu, moderna e magnífica como sou levei um tempo pra absorver a cena:

O professor estava arrasando na coreografia de Lady Marmalade, vestido com uma cartola, óculos, uma cueca boxer e muito, mas muito glamour. A música recomeçou, e ele nos chamou pro palco, sem interromper a performance.

Eu subi, claro. As luzes, a música, o prazer de dançar sem limites... O fim do mundo tinha roubado isso de mim, e agora eu queria de volta com juros. A música ainda tocou outra vez antes de parar, e nos olhamos suados e felizes. As luzes apagaram, e Licurgo pegou uma toalha e desceu os degraus. Xaveco virou pra ele como se fosse de pedra.

— Acho que seu namorado quebrou. Devo ter o número da assistência em algum lugar. — E pra mim, com a naturalidade de sempre. — Sempre achei uma loucura dançar Lady Marmalade sem salto, mas ninguém faz botas 44 com salto decentes hoje em dia.

— Professor...

— Só Licurgo, por favor.

— Como o senhor faz pra cartola não cair? — Prioridades primeiro, amores.

— Ah, é que sou muito apegado a ela. Tenho que dar meu melhor, a competição de dança é semana que vem.

— Competição? — Xaveco pareceu acordar do torpor. — Mas o senhor está sozinho.

... Pra dizer a coisa errada. Você não me facilita, não é, lindo? Sorte que o professor não pareceu se incomodar.

— Sim. A competição de dança pra salvar a galáxia foi mês passado, mas seu maior adversário é você mesmo, não é o que dizem? Eu não vou perder de mim na próxima.

Juro que ouvi de algum lugar dos fundos a voz dele gritar: “Minha Lady Gagá é muito melhor que minha Cristina Aguileira!”

—Seja educado, Licurgo! Estou com visitas e eles precisam continuar a história! — Ele gritou de volta. — Ah, a educação sempre manda que eu ofereça às visitas uma bebida gelada. Esperem um minuto.

Um mordomo de vidro gritou da parede:

— E um lugar pra sentar! — Tinha uma placa pendurada escrita EDUCAÇÃO. Graças a Deus Xaveco não atirou nele. Licurgo voltou com uma bacia de plástico cheia de panelinhas, taças, canecas...aquilo é um açucareiro?

— Estão vendo como ela é mandona? Aqui, podem escolher. Refrigerante, café, cicuta, suco e uma coisinha verde que tenho quase certeza que não é desinfetante.

Cicuta? Desinfetante? Xaveco se aproximou, um tanto atordoado. — Qual deles é o café?

— Eu vou ficar com o refrigerante. — O aspecto da coisa era esquisito demais. — Licurgo, que refrigerante é esse?

— Ah, Prestone. Era o que tinha escrito na garrafa. — Enquanto eu decidia se bebia aquele negócio de cheiro adocicado, ouvi uma voz feminina atrás de mim.

— Licurgo, servindo anticongelante de motor? E cicuta? De novo?

Xaveco olhava pra trás de mim, pro Licurgo e para a panelinha vazia, como se estivesse vendo um fantasma. Anticongelante de motor? Me virei feliz. Aquela era a voz de Sarah, nossa colega de colégio. O que tinha...

O anfitrião protestou atrás de mim:

— É cicuta sabor laranja! E estava escrito bem claro na embalagem refrigerante, eu chequei! Para qualquer... motor. Nossa, como está pequenininho! — Não tinha um grama de arrependimento na voz (O homem é mais pirado do que eu lembrava. A louca, todo mundo quer me matar essa semana?).

Na porta, tinha um lobisomem, uma múmia magricela, um vampiro e três fantasmas. Um deles era a Sarah.

***

Aparentemente, Licurgo esqueceu que convidou Sarah, Victor e companhia sobrenatural pra tomar sorvete depois do ensaio, e que refrigerante para automóvel é mortífero para humanos (o café era um troço simpático chamado “Desejo de Morte”, mas não venenoso). Então subimos na nave do professor e fomos tomar sorvete (Nem tínhamos pressa pra salvar o mundo mesmo...). Troquei histórias com Sarah, enquanto Xaveco parecia ansioso para falar com cada assombração e olhar cada monstro nas janelas a cada cinco minutos.

Contei pra ela um resumo dos babados que aconteceram comigo e Xaveco. Ela contou que teve um sonho em que viu que o mundo acabaria. Correu pra avisar Victor primeiro no cemitério (nem mandar mensagem pras amigas, né fofa?), mas quando chegou lá passou mal e desmaiou. Então descobriu que seu crush é um fantasma e o desmaio na verdade era ela embarcando também. Como Victor era um dos mais antigos no lugar, apresentou todo mundo e ela gostou tanto que ficou lá mesmo.

Ela parecia mesmo feliz, com seu boy magia do além e todos os amigos. Quem sou eu pra falar de gente estranha? Meu namorado estava falando com um assento de nave na maior intimidade. Como eu podia estar com ciúmes de uma cadeira, meu pai?

— Sarah sua linda, você ainda vê o futuro? Pode tirar umas cartas pra mim ou, sei lá, umas dicas? — sussurrei. Ela fez uma careta como se eu tivesse pisado em algum calo fantasmagórico.

— É mais intenso que antes. Mas saber do futuro... Você tem certeza, absoluta certeza...

— Tenho, Sarah. Preciso de toda a ajuda que conseguir.

Os olhos dela ainda eram castanhos, mas com reflexos coloridos, como poças de óleo. Ela deu um suspiro profundo, e de repente tive aquele impulso de pedir pra esquecer. Talvez houvesse um motivo pra não saber o futuro.

Uma mesa transparente surgiu entre nós duas. O baralho apareceu na mão dela, e todo ruído ao redor diminuiu. Havia muito tempo que eu não sentia aquilo. Uma... conexão com algo maior que eu.

— O que você quer saber das cartas, Denise?

— Meu plano pode dar certo? Podemos derrotar a doida lá?

Ainda concentrada, minha amiga distribuiu as cartas viradas pra baixo. Acho que esqueci até de respirar, enquanto ela virava as cartas uma por uma.

Uma torre. Um esqueleto com uma foice. O mundo. O sol. Uma estrela.

Ok. Esqueleto com foice. Isso pode ser a morte da Maria, não é? Pode ser uma coisa positiva, Denise, nada de morrer de véspera. Espere pela...

— Vai acontecer um desastre, que pode afetar o mundo inteiro. Você vai sobreviver.

E tocava a última carta com as pontas dos dedos. — Vá pra casa, Denise. Desista.

— Ei, espera. Não posso só ir pra casa, Sarah! Nem tenho mais casa! Ninguém vai ter paz enquanto a piranha estiver no poder! Vai dar errado, é isso?

— Não foi o que eu disse, Dê. Vocês têm uma casa. Há alguém que está esperando a volta de vocês. Fique quieta. Esse é o melhor conselho que posso dar.

— Não posso, diva do além. Já deixamos a Maria mandar tempo demais. Nós vamos conseguir acabar com os planos da doida?

— Dê, seu plano é... possível.

— Então por que você parece tão triste? Esse desastre que você viu... não dá pra evitar? — Sarah abriu a boca e fechou duas vezes antes de ignorar minha pergunta. — Faça as perguntas certas. Não deixe nada importante pra depois. Evite o sorvete de limão. — O rosto dela suavizou. — Você e Xavier... vão precisar de coragem. Que bom que você tem muita.

— Limão? O que o limão tem a ver?

— Eles fazem um sorvete de limão muito azedo no Id. Mas o de morango é fabuloso.

(Gente, essa loucura pega?)

— Ok, o que é Id? — Victor apareceu do ar ao lado dela. A olhou com censura, ela levantou as mãos em rendição. A mesa e as cartas sumiram no ar.

— Ela pediu que eu tirasse umas cartas pra ela. Só isso, não foi?

— Claro, amiga! Pode ficar tranquilo, Vic.

Vic?

— Ei, por que estão tão sérios? — Aparentemente, fantasmas podem ser surpreendidos. Mesmo o sisudo do Victor se mexeu quando Licurgo apareceu do nosso lado. Então Sarah ficou ainda mais branca.

— Quem está dirigindo a nave?

— O Xaveco. Ele estava tão animado... O deixei pilotar um pouco.

— O Xavier não sabe dirigir nave espacial! — Botei as mãos na cabeça. Tiro os olhos do estrupício um minuto, e ele me apronta uma dessas! Estava cada vez mais difícil não chamar o Licurgo de doido. — Droga, ele não sabe dirigir nem carro! O que tinha além de café naquele copo, meu pai do céu?

— Ele sabe? Me deixa perguntar pra Ele-

Não precisa, pro... Licurgo. Só pegue os controles de... — Dica de viagem: quando você vir uma vidente fantasma pondo cinto de segurança, use o seu. Claro que eu coloquei, pessoa ligada que sou, e mal fechei a trava antes da nave virar de cabeça pra baixo.

Sacudimos como garrafa ladeira abaixo, múmia, vampiro e os outros tentando segurar-se e xingando Xaveco em quatro línguas diferentes. Ok, fazer as perguntas certas. — Licurgo, seu divo, você sabe que eu, o Xaveco e você podemos morrer se a nave cair, não é?

— E daí?

Meu Deus, dai-me paciência, porque se me der força… — Nós não queremos morrer agora.

— Você tem certeza? Seria mais fácil.

Os olhos escuros do meu antigo professor pareciam perfurar meus disfarces, defesas e chegar em algum lugar lá dentro que ninguém (nem mesmo eu) é tão brilhante ou legal. Sorriu de um jeito maníaco, como se algo que tivesse visto o divertisse demais.

Eu estava ficando tonta. Xaveco berrava de animação, fazendo manobras com a nave como um piloto bêbado de Tauó. Licurgo continuou me encarando, de pé sem apoio algum, enquanto todos os outros sacudiam e quicavam nas paredes. Continuei a olhá-lo nos olhos.

— Pode até ser, mas temos uma tarefa a cumprir. Precisamos sobreviver até lá. Você vai nos ajudar a impedir a Maria de botar todo mundo no cabresto dela? — e um pouco mais alto — Xavier, se você nos matar eu te mato! Desce essa coisa já!

Não foi minha melhor escolha de palavras, admito. A nave embicou para o chão, e uma porção de alertas começaram a apitar loucamente. Licurgo ainda olhava pra mim.

— Você sabe que ele só tomou café, não é? Ai, como esse apito incomoda. — Caminhou calmamente até os controles. Em alguns minutos, voávamos nivelados e calmamente. Uma única construção aparecia entre os desfiladeiros. Descemos da nave direto para a sorveteria.

Havia uma porção de coisas esquisitas tomando sorvete ali, e cada uma delas calou e abriu caminho para nós. O jaleco e a cartola de Licurgo (Sarah pediu e ele saiu vestido, amores) pareciam ondular, como uma miragem. Xaveco estava cada vez mais insano. Corria e apertava mãos, patas e tentáculos, desviava de mordidas e uma bola peluda mal-humorada o expulsou da cozinha duas vezes, xingando em italiano.

— Professor, você sabe o que está acontecendo com o Xavier? Ele nunca ficou assim.

— Sei.

Não tinha tempo pra joguinhos, mas vamos lá. — Você pode me explicar o que está acontecendo e como eu deixo o meu namorado parado no lugar enquanto conversamos?

— Você está começando a entender. Você e o Xavier pula-pula ali tem versões alternativas na mesma realidade. Então cada um dos quatro tem dois monstros id possíveis. Aqui ele tem contato direto com o id do futuro dele... ah, olha, é aquele.

Um monstro bizarro da altura de um prédio de doze andares corria e pulava nas montanhas, como um macaco possuído. Parou um instante pra lamber o vidro da janela e depois se jogou de lá de cima como um míssil.

— É muito pra essa cabecinha loira. A segunda pergunta... Bom, você pode amarrá-lo, matar esse ou a versão do futuro, ou devolver o outro à realidade à qual pertence. Aí ele vai ficar parado.

Depois de serem sacudidos como gelo em coquetel, a múmia e o lobisomem ficaram mais que felizes em ajudar a amarrar o Xaveco. Acho que vou andar com uns rolos de atadura na mochila, são incrivelmente úteis.

Expliquei toda a situação e nosso plano pro Licurgo, que parecia concentrado na cereja do sundae. Quando ela caiu, ele levantou os óculos redondos. Sarah estava ao meu lado, tomando sorvete de morango na maior tensão, como quem assiste uma luta de boxe.

— Posso falar com a Maria, como você pediu. Mas não vai adiantar.

— Só alguns minutos de conversa. É tudo que peço.

— Seu namorado me divertiu muito essa tarde, então vou fazer o seguinte: vou até vocês quando me chamarem e conversamos por uns ... dez minutos, que tal? Quero estar aqui quando anoitecer.

— Por quê?

Ele me olhou como se a resposta fosse óbvia e absolutamente hilariante.

— Você vai ter sucesso, e isso vai matar tanta gente. Dezenas, milhares, dúzias de pessoas... Quem sabe quantas? Ou se todas? Ah, é tão excitante não saber! Dona Morte... hehe, ela vai ficar tão, mas tão puta com você!

A gargalhada dele era aguda, e caía em mim como navalhas. Quando ele se acalmou, conseguiu acrescentar:

— Tenho que chegar cedo porque nas noites de quarta-feira é especial de sorvete de tapioca. Quero tomar uma última vez, e a fila é imensa. Se você quiser te dou uma carona Sarah, que tal?