Oitava Fileira

Sobre homens e monstros


Toquei em alguma coisa fria, e fui jogado longe como um brinquedo. Voltei voando, sem conseguir sentir onde estava o Mau e bati em alguma coisa. Merda, a barreira! Burro, burro, burro! Bicho estúpido da porra! Estava tão preocupado em convencer Maria, em falar com ela, que fui atraído pra fora da maldita barreira da cidade!

Podia ouvir o idiota lutar, e mais quatro ou cinco magos tentando contê-lo. Pus tudo de mim pra destruir a barreira, e era como cavar no mar. Alarmes soavam por toda a cidade, e eu podia senti-los vibrar, mas não importava. Eu só tinha que chegar do outro lado.

Podia ouvi-lo se debater e grunhir de dor. Droga, o que está acontecendo? Vamos, porra! Acaba!

— Solte-o, Maria. Agora.

— Podem ligar. — Então um tremor, e havia três mangueiras de alta pressão me empurrando contra a barreira do inferno. O que ela acha que sou?

— Sei que herdou os poderes do Feio, Cássio, então aí tem água suficiente pra enfraquecer até mesmo você. E se você ainda quiser falar um pouco mais com seu titereiro, vai parar agora.

Não sei quem era esse Feio, ou por que Maria pensa que água me atrapalha, mas ela entendeu tudo errado. Água sempre fortalece a decadência, imbecil. Levanto as mãos, deixo a corrupção se espalhar e corroer tudo o mais depressa possível. Maria não pode me destruir, não de forma permanente, porém o Mauro é mortal. Tenho que ganhar tempo pra ele se proteger. Só queria que ele falasse comigo, não consigo ouvir os pensamentos dele.

— Mauro, por favor, responda. O que aconteceu?

— Fica calmo. Eu não vou morrer agora. Não são dois tiros que vão me derrubar. Entendeu? Se acalma.

Posso ouvir a dor na voz do imbecil, e isso me enche de raiva. Não sei como, mas eles feriram o Mauro, e eu não consigo alcançá-lo. O único humano decente nessa merda de dimensão, e eles o estão cortando.

Convoco todos os insetos, animais e aves do meu domínio. Quase não acho minha voz. — Pare de ferir o Mauro, Maria, ou eu-

— É Lady Shih pra você, monstro. Desculpe o atraso, m´lady.

Havia algo diferente no humano. Ele devia estar morto, mas aquele ser maligno de olhos de fogo deu-lhe um pouco mais de tempo. Podia ouvir dezenas de sombras ao seu redor, e ainda sei reconhecer um acordo. Menino, nenhuma quantidade de poder vale o que acontece naquele lugar.

E vocês já vão descobrir, humanos imundos. Me ataquem, envenenem ou explodam: nada disso me aborrece. Mas estou sentindo o cheiro do sangue do meu lobo, e ninguém toca nele e sai impune. Prometo que vou ouvir os cães disputarem os ossos dos responsáveis por isso. Ah, vou.

Achei! A uns trinta metros, um ponto da barreira era muito mais fino que o restante. Concentrei todo o meu poder ali. Nem que eu consuma cada pedaço de mim, eu vou passar. Confia em mim, lobo.

— Bem na hora, meu campeão. Venha, tenho uma tarefa pra você. E você, Mauro, fique parado. Odiaria vê-lo morrer antes do grand finale. Ponham-no de joelhos.

Posso sentir o amaldiçoado na frente do Mauro, e o barulho de correntes torna tudo pior. Morrer? Não sei por que diabos ele ainda está no chão, mas ele é tão poderoso quanto eu. Não seria uma pilha de magos capengas que iria impedi-lo de fazer alguma coisa, muito menos matá-lo. Ele está planejando alguma coisa, isso é só encenação. Caralho, sai daí, lobo imbecil!

— Eu sei que vocês mandaram o Luca e seus capangas, assim como Denise e o outro Xavier pra me impedir. Estão todos mortos. Incinerei Luca com o fogo do seu próprio dragão, e aqueles dois rebeldes estão agora apodrecendo na porta da cidade.

— Você não conseguiria matar o Luca nem se quisesse, animal.

— Ele usava barba e um anel de prata na mão esquerda. Acho que você reconhece.

Esse Luca deve ser importante, Mauro está se debatendo e rosnando alto. Merda, por que não consigo fazer essa porra de parede sumir de uma vez? O humano continua a debochar, e quero tanto arrancar a cabeça desse porra que dói.

— O que, quer sua coleira de volta? Vou pôr na minha sela pra lembrar desse momento legal, pode ficar tranquilo. Você podia ser mais como seu amiguinho paraplégico, aquele aguentou como um homem. Contenham direito esse vira-lata.

— Muito bem, Nero. Agora levante-se e termine com aquela imitação barata.

Finalmente, porra! Senti o estilhaçar, os gritos das sirenes parando enquanto a única coisa que me separava do Mauro se transformava em nada. Maria não se abalou. A voz tinha muito prazer, e uma pitada de triunfo quando falou comigo:

— Eu disse que tiraria tudo de você, lembra?

Senti todos os pensamentos acelerados do Mauro de uma vez, antes de ouvir aquele ruído gorgolejado e ele cair, e agora só tinha aquele barulho úmido vindo dele. Por que ele não fala comigo, só faz esse ruído estranho?

— Mauro? — Não havia mais barreira. O cachorro costumava falar diretamente na minha cabeça, mas eu não ouvia mais nada. Por que caralhos eu ainda não o ouvia?

Estava tão atordoado que demorei pra entender o que Eduardo estava fazendo. Apalpei com a mão humana, até achar a ponta metálica saindo do meu peito. O humano grunhia, tentando puxar a faca, e havia alguma coisa na arma tentando me dissolver. Boa sorte com isso.

— Consegue ouvir, não é? Está escutando seu maridinho morrer, seu viado? Você também está acabando, e eu vou pendurar vocês dois na porta da cidade. Ninguém mais vai se atrever a desafiar Lady Shih outra vez.

Ele tenta me esfaquear outra vez, mas não tem importância. Me viro para os magos, numa ameaça muda. Todos recuam amedrontados e soltam o Mauro das contenções mágicas. As sombras enxameiam ao nosso redor, atraídas pelo lobo como abutres. Não podem me afetar, não agora, mas trinco os dentes ao escutar o Mauro bater no chão como se estivesse sendo eletrocutado, as correntes sacudindo como guizos.

— Mande essas coisas embora, Nero. Faça-as soltar o Mauro.

Ele parece feliz por ter conseguido me irritar. — Ou o quê, monstro? Você está morrendo, seu vira-lata está morto, aca...

O grito de Maria rasga a frase e a alegria do Nero em farrapos. O escuto sair das minhas costas e correr até ela. Sem seu mestre, as sombras atacam a todos sem controle, enquanto os magos ao redor se protegem como podem e eu me curvo sobre o Mau.

Acho que Nero não me entendeu. Mesmo com uma proteção tão espessa em torno de Maria, posso mostrar o quanto estou falando sério. A garota é mais terrível de ouvir da segunda vez, mas não tenho tempo a perder enfrentando esses putos com o Mau sangrando no chão.

— Ou você vai morrer escutando os gritos dela. Expulse as sombras agora, Nero.

Assim é melhor. Ele volta contra mim com energia renovada, mas posso lidar com ele depois. Mesmo os magos retomam a coragem e voltam a me atacar, mas nenhum deles é louco o bastante pra atingir o Mauro novamente. Me ajoelho e volto a atenção pro lobo.

Merda, tem mais sangue aqui do que pensei. Tateio, procurando estancar a hemorragia, mas a pele desaparece ao meu toque, e recuo as mãos depressa. Merda! Contenho meu poder ao máximo, ainda não consigo tocar sem desfazê-lo, o que posso fazer pra ajudá-lo se nem posso encostar nele?

Chamo em silêncio, esperando… o quê? A revelação de um truque? Um milagre? É inútil, Mauro está morrendo. Como um maestro numa orquestra, posso reconhecer cada um dos mecanismos que levam as células ainda vivas à destruição e o quanto o fim é inevitável, porque de certa forma estou causando isso. Eu sou a decadência, e todas as coisas vivas passam por mim. Inclusive ele.

Esse vazio silencioso dói de uma forma... Imagino que isso me mataria, se eu ainda pudesse morrer. Apesar disso, não interrompo o processo. O lobo não será forçado a ficar num lugar a que não pertence mais, não importa o quanto eu queira.

Isso... é... insuportável. Como algo pode doer tanto? Parte de mim quer ficar até a última célula parar, e o corpo do lobo entrar completamente no meu reino.

Porém tenho esse aprendiz de demônio nas costas, profanando meu momento e lembrando por que meu lobo vai embora tão cedo. Ainda não é hora de lamentar. Me curvo formalmente, me despedindo, enquanto esfarelo as correntes que o prendem no chão, assim está melhor. Vai tranquilo, Mauro.

Pode deixar que eu mando esses bípedes imundos na frente pra pavimentar o caminho.

O que você está fazendo, Eduardo? Mate-o!

— Estou tentando! Isso é tudo que os imbecis conseguem? Ataquem de verdade!

De longe, muito longe, sei que estão lançando maldições, disparando em mim, talvez isso seja alguém do Povo das Sombras tentando me levar. Vocês nunca aprendem? Eu não consigo morrer. Mauro era a última esperança desse purgatório acabar. Sem ele, serei só uma coisa estúpida condenada à sua espécie estúpida por toda a maldita eternidade.

— Ataquem! E vocês, seus inúteis, continuem atirando!

A compreensão chega, enquanto o pátio desintegra sob meus pés. Humanos são incapazes de mudar, sei disso agora, e não devo mais deixar a Terra à mercê dessas criaturas. Destruo tudo que eu era, e desfruto do vazio e da certeza um momento. É hora de me tornar quem renasci pra ser.

Aquele que recomeça o ciclo.

— Vamos atingir o senhor!

Não importa! Disparem!

O avatar da decadência.

— Maria, não para! Continua correndo!

E pra vocês, pestilência egoísta e tirânica que se chama de raça humana...

Sou a extinção.