Oitava Fileira

Sabe a luz no fim do túnel? É um trem


Se alguém me perguntasse hoje qual o som mais aterrorizante do mundo eu responderia: zumbido. Esqueçam as bandas de death metal, a trilha sonora do Apocalipse é o zumbido, amores.

Estava prestes a chamar o Louco, quando os insetos vieram. Centenas deles, nunca tinha visto tantos, nem no Canal Animal (às vezes eu tinha insônia, ok?). Não podem me culpar por correr daquilo.

Então senti uma dor tão séria, um aperto no peito, e a dor de cabeça sumiu. Tive que parar de correr e me apoiar. Ao mesmo tempo que me sentia mais cheia de magia que nunca, perdia um pedaço de mim, como uma irmã mais velha. Denise do futuro tinha morrido. Guardei tudo lá no fundo, pra não sentir, e voltei a correr. Mundo primeiro, recolher os cacos do seu coração depois.

Segundos depois da dor melhorar, toca um alarme tão alto que pensei que meus ouvidos fossem sangrar. A barreira! Claro, a barreira! A Lady infernal é mesmo um gênio! Separe os dois, ponha uma barreira que aguentaria um ataque nuclear no meio, e a mais louca e enfurecida das forças naturais vai ficar batendo nela como uma mosca na janela.

Comecei a correr com os insetos. Tenho que ajudar o Mauro e o Cas, encontrar uma bomba, desarmar a tal bomba e depois o desaparecido do meu namorado e minha melhor amiga. Pai amado, é muita coisa pra fazer num capítulo só. Mas vamos começar logo, ajudar aqueles dois e acabar com a louca.

Estava quase no local quando os alarmes pararam, e algo como o maior cristal do mundo quebrou. Minha nossa, Cas quebrou a barreira? Ela inteira?

Eu... Minha nossa, ninguém que eu conheço está equipado pra enfiar o nariz nesse problema. Tenho que tirar Xavier e Carmem daqui agora. Mas onde diabos eles estão? Comecei a correr na direção oposta e logo tinha cozinheiros, guardas... droga, todo mundo fugindo apavorado pra saída. Então caíram, todos de uma vez. Começaram a sangrar, dos olhos, dos ouvidos, e então... Meu Deus, isso é insano! É-é horrível!

Vou pular os detalhes escabrosos, então vamos só dizer que em alguns minutos, eu estava vomitando, suja até os tornozelos numa sopa de ossos e... vocês sabem. Os insetos e os ratos se espalharam, e o zumbido piorou. Então ouvi os gritos.

— Socorro! Alguém? Tem alguém aí? — Graças a Deus, é a voz do Xaveco! Corri na direção dele, e o encontrei numa das celas do subsolo, olhando pra mim como se eu fosse uma assombração. — Denise? Dê, que porra está acontecendo aqui? O guarda caiu morto, e aí ele começou a... derreter... e... os ratos... nunca vi tantos...

— Lindo, te amo e tudo o mais, mas cala a boca, sim? Qual das poças é o guarda?

Ele me olhou chocado, e apontou a poça da direita. Sim, eu espantei os ratos e enfiei minha mão naquilo. Se ainda tivesse alguma coisa no meu estômago, teria voltado. Xavier parecia uma estátua quando eu abri a cela. Rihanna do céu, acho que não tem sabão suficiente no mundo pra limpar essa mão de novo.

Então Xavier saiu, olhou o tamanho do estrago, o cheiro e então foi a vez dele de pôr o almoço pra fora.

— Mas, por todos os infernos do mundo, o que aconteceu aqui? Nenhuma bomba seria capaz de... Puta que pariu. Foi o Cas, não foi? Ele matou todo mundo?

— Eu não sei, lindo. — Por favor, Deus, que a Carmem esteja viva, em algum lugar.

— Como nós estamos vivos? Nem os insetos chegam perto, olha. — Ele apontou o chão, os bichos estavam abrindo passagem. — Pensei que a primeira coisa que ele faria se desse alguma merda seria acabar com a gente.

— Foi o Mauro. Maria era inteligente, mas não entendeu tudo. O Mau não era só o ponto fraco do Cas. Era o maldito pino da granada também. Tire o pino…— mostrei a destruição — Mas agora vamos encontrar a Carmem.

Acho que existe um momento em que o cérebro levanta as mãos e diz: “Ok, eu desisto. Não posso ficar mais horrorizado que isso.” E você meio que se acostuma, não importa quão terrível seja. Então, depois de um tempo, eu só via poças estranhas com ossos. Poça aqui, poça acolá, poça com roupa verde, com roupa branca, crânios, costelas... Poça, osso, mais poças, mais ossos.

— Dê, precisamos ir.

— Não, tenho que achar a Carmem. — Insisti. Tinha acabado com a droga do mundo inteiro por isso e não sairia dali sem ela.

— Por favor, Denise. É melhor não. Você não quer vê-la desse jeito. — e apontou um azarado qualquer que estava perto, disputado por urubus.

— Tem razão, não quero. Mas preciso. Não vou deixá-la aqui. — Eu tinha esperança. Uma pequenininha, ridícula, tão irracional que só podia ser Tia Loucura batendo na minha porta.

— Tem um lugar… Cyber nos indicou onde ficava a tal bomba, ela disse que cuidaria disso. Me deixa lembrar, era embaixo dessa escada… Puta merda.

— Chega pra lá, Xav. — Sabia o que ele tinha visto, mas precisava confirmar. Desci a escada, achei dois cadáveres e… tinha razão, Xav. Puta merda. Eu reconhecia aqueles cabelos e brincos. Era mesmo ela, diante da porta trancada, com uma arma ao lado. O outro, menor, com mais joias e completamente coberto por ratos, só podia ser a Maria.

Pronto, Denise. Maria está morta. Mortinha da silva, seu plano deu certo. Tá feliz?

— Conseguimos, Xav. Meu plano funcionou, e a piranha-mor já era. Junto com a cidade toda. E a minha amiga. Sabe Deus quem mais. Agora sei porque o Cas não acabou com a minha raça.

— Dê, você...

O interrompi, sem coragem de olhar pra ele. — Acho que no fundo o Mister Fim dos Tempos sabe que a pior coisa seria olhar pra tudo isso e saber que fui eu quem causei. E tinha razão, é muito pior.

Me recuso a pensar nisso. Não agora. A Denise do futuro, o Xavecão, a Carmem, todos eles vão esperar. Porque quando eu desacelerar, absorver que essa massa nojenta é tudo que sobrou dela... Daquela garota insuportável e tão necessária... Não acho que consiga parar de chorar nunca mais.

Mesmo dali, era possível ouvir o zumbido. Certeza que vou ouvir essa merda pra sempre nos meus pesadelos. — Você acha que ela sofreu, Xav? Xavier?

Ele estava abrindo a porta atrás da Carmem e se enfiando dentro de um depósito escuro. — Mas o que… você não tava nem ouvindo meu lamento, seu estrupício dum raio? Volta aqui!

Xavier voltou, espanando as teias de aranha e trancando de novo a porta. — Era a bomba. Tem centenas de ratos lá roendo os fios… nem tenho certeza se não podem comer aquela porcaria inteira. E sim, eu ouvi. Mas agora nós vamos embora.

— Eu já disse que não vou sair daqui sem… — Xavier me levantou pela cintura e me carregou escada acima, como se eu fosse a droga de um saco de batatas. Toda aquela porcaria de semana finalmente foi demais, e chorei, bati nele, disse que o odiava e o xinguei todo o caminho escada acima.

O odiei de verdade naqueles dois minutos. Por ser tão estupidamente nobre, apoiar minhas loucuras, ficar do meu lado mesmo quando as coisas deram tão errado. Por não me deixar sentir pena de mim mesma e ficar encolhida num canto até a terra me engolir.

Ele foi caminhando pra fora, pelo jardim de trás, enquanto eu me preparava pra pedir desculpas pelo faniquito, até que me deixou descer.

— Tem alguém ali!

Quase fui sarcástica — afinal, nosso problema era o excesso de alguéns encharcando os sapatos — mas olhei antes de falar besteira. Uma pessoa inteira no chão, os bichos todos mantendo distância. O resto do jardim parecia um buffet gratuito pra uma torcida muito violenta. Xaveco saiu andando com cuidado entre cachorros e hienas, animado por mais alguém ter sobrevivido.

Olhei pro lado, aquela roupa tática com certeza foi do Nero, porém a disputa ali estava tão séria que já não havia mais que uns pedaços do colete, uma faca e uns ossinhos aqui e ali. Um dos mais afoitos escapou com... aquilo era um fêmur? Cruzes, o cãozinho vai precisar de um antiácido e uma antitetânica depois de lanchar nosso Capiroto Jr..

(Achava que o pirralho não serviria nem pra isso. Eu o teria salgado, jogado água benta, marcado como lixo biológico e enfiado numa fornalha, só pra garantir)

— Denise! Vem aqui! — Podia ver o Xav virando um corpo com gentileza, avaliando o estrago enquanto eu caminhava no meio da bagunça, os peludinhos todos me dando passagem.

Havia tanto sangue que o pobre parecia usar uma camisa vermelha. Os olhos estavam fixos à frente, a boca entreaberta naquela expressão estúpida de gente morta. Grande. Ainda não estava mal o suficiente, pelo visto.

— Muito obrigada, Xavier. Já me sinto bem melhor sabendo que Maria assassinou o Mauro três vezes seguidas.

— Mas o que... Dê, ele não tá morto. Pelo menos, ainda não.

— ...

— Ele tá mesmo respirando, Dê. Não precisa encarar.

C-como?

— Nem imagino. Mas talvez dê pra segurá-lo por aqui um pouco mais.