A luz oscila quando caio. Perna de Pau e Sangria olham pra mim em apoio, mas não se movem. A vida de todos está em risco, não podemos falhar.

No embate anterior, o filho de Destruição e seu tenente eram oponentes formidáveis, mas tinham uma causa justa. Fomos derrotados, e reconheço que eles atingiram apenas os infectados por aquela estranha praga. Três dias atrás, alertados pelo Violinista, nós e todo um exército de mortos da Viúva estávamos prontos, aguardando o vilão.

Não esperávamos por algo tão terrível. Desprovido de humanidade, o ser simplesmente caminhou até a porta, transformando todos os mortos em poeira. Sangria, Perna de Pau e Bailarina tentaram, mas nada do que fizeram pareceu afetá-lo. Viúva levantava onda após onda de cadáveres, que se desfaziam em contato com ele como sal na água. Absinto conseguiu mantê-lo afastado tempo suficiente pra que eu tentasse possuir sua mente.

Fui tragado pelo vazio, fiapos de memórias perdidos, junto com a determinação absoluta de destruir toda a espécie humana. Naveguei, procurando algo que pudesse usar, talvez uma memória que Bailarina pudesse manipular a nosso favor, quando cometi meu erro.

Existem portas, poços e caminhos na mente, como numa casa antiga, e alguém que conheça a arte pode destrancá-las, para a cura ou a insanidade. Confiante demais, abri a única porta que restou.

A escuridão me engoliu, um par de olhos em chamas queimando acima de todo o resto, quando ouvi os gritos. A memória do desespero era nítida demais, nenhuma quantidade de tempo transforma essa dor em cicatrizes.

Eu estava no Inferno. Podia ver a Serpente sendo levada pra longe, sorrindo pra ele em triunfo, enquanto a mente desintegrava aos poucos no horror sem nome do Abismo.

Fugi. Lutei como pude para sair da memória e trancar de novo a porta. Se não a fechasse, talvez nada escapasse da fúria que se seguiria. Com minhas últimas forças, abandonei a mente dele.

Todos nós juntos conseguimos impedi-lo, e mais nada. Apesar de tudo, ele não era maligno, e não pudemos bani-lo como fizemos com a Jumenta.

E estranho era o modo como ele se comportava: não revidava qualquer golpe. Também parecia não compreender por que protegíamos a cidade.

Uma dúvida muito razoável, e para a qual eu ainda não tinha uma resposta satisfatória. Fomos perseguidos, mortos e amaldiçoados a permanecer no purgatório, onde ficamos por quarenta anos. Quarenta infinitos anos. Ainda hoje, a cidade comemorava o dia da Jumenta voadora, como a protetora dos tapauérs e das crianças boas. Não nós, obviamente. Nós éramos uma lembrança distante dos adultos e as crianças esquisitas das quais ninguém chegava perto. Pelo menos, não até que eu e Bailarina ajustássemos uns detalhes aqui e ali. Hoje em dia, parece que nunca fomos embora.

Bailarina olhou em minha direção, e percebi a apreensão em sua voz:

— O que aconteceu?

— Não há mais ninguém lá. É como tentar possuir uma tempestade.

Não falaria agora das lembranças atrás da porta; não que quisesse esconder algo deles, porém aquele não era o momento.

— Só precisamos persistir um pouco mais. — Assegurou o Violinista.

Grunhi com o esforço de se levantar. Treze anos, e ainda havia momentos em que sentia que um corpo físico era apenas um aborrecimento. Mesmo que o nosso poder se expandisse com o tempo, havia limites para o que o corpo mortal podia suportar.

Três dias de confronto, por exemplo. O Violinista previa o futuro, afirmou que a ajuda chegaria, porém não tínhamos qualquer ideia de quando aconteceria. Mesmo de máscaras, podia ouvir o cansaço nas vozes dos outros. Dois dias desde nossas tentativas fracassadas de subjugá-lo, e continuávamos na mesma situação do início. Ele não conseguia ultrapassar-nos tanto quanto nós não conseguíamos afetá-lo.

Absinto, ainda frustrado da derrota anterior, atacava e atacava, incendiando o ser vezes sem conta, mas isso só retardava o seu avanço. Ele apenas se levantava outra vez, determinado. Um passo. Meio passo. Mesmo por centímetros, o avanço continuava.

Pressenti a mudança antes de vê-la, e o medo gelou-me o peito. A paciência do oponente não era outra que não a de um predador, que persegue a presa com calma, confiante que o terror, a fome ou a sede vão derrubá-la no tempo certo.

Ele sorriu, enquanto Absinto caía sobre os joelhos, respirando pesadamente. Viúva apoiou-se no ombro de Sangria, oscilando como uma árvore sob o vento.

A luz se apagou. Perna de Pau partiu para o confronto físico. Aquela era nossa cidade, nossa casa, e ela não seria tomada de nós uma segunda vez. A Besta começou a correr na direção dele e o Violinista gritou, coisa que nunca o vi fazer.

— Volte! — e para nós, com urgência — Corram pra dentro AGORA!

Pus o braço de Absinto sobre os ombros, mas suas pernas falharam e ele caiu. O mesmo aconteceu comigo, e todos os outros. Rangendo os dentes de dor, vi o que poderia ser Perna de Pau se debatendo sob o monstro, mas a visão falhava, enquanto a dor ficava ainda maior.

É isso? Vamos todos morrer assim?

Subitamente, a dor desapareceu. Abri os olhos estupefato, pude ver Sangria caída pouco à frente, tremendo. Absinto não se movia. Não consegui me pôr em pé, então me ergui sobre os braços pra ver o que fazia tanto ruído.

Era um lobo imenso, com o pelo da cor do aço, embolado e lutando contra o monstro, numa confusão de dentes e garras, até que nosso inimigo chutou o animal pra longe e ambos ficaram em pé.

— Obrigado. — Resfolegou o lobo. — Deixem que eu lido com esse idiota a partir daqui.

***

Já entardecia, e o Xav parecia cada vez mais contrariado. Até que bateu a mão na testa e quase caiu do assento.

— Puta merda, como eu sou burro! Para! Nós temos que voltar! — Ele se atrapalhou tanto com as rédeas que até os cavalos pararam, com aquela cara de “Deixamos mesmo esse cara nos guiar?”

— O que foi isso, Xaveco? Endoidou?

— Onde o Cas tá enterrado? Estava na minha cara o tempo todo! É a porra da oitava fileira! Na mão do Mauro, tá na oitava!

Luca olhou pra mim, e eu dei de ombros. Não sou dicionário de doidice, amore. — Luca, você sabe onde tá o resto do corpo do Cas? Ainda dá tempo!

— Não sei, Xavier. Tempo de quê?

— De salvar o Cas e o Mauro, droga! Você sabe, Dê?

— Não. Explica isso, Xav. O que salvar os dois tem a ver com o defunto do Cas?

Xavier parecia prestes a ter um ataque, juro. — Dá pra reescrever encantamentos, não é? Cyber e Ângelo disseram que aquela porra de saco é feito um peão. Na minha mão, um peão na sétima fileira, que não faz porra nenhuma. Mas quando ele chegou na mão do Mauro, é como um peão na droga da oitava fileira. Na oitava, você pode promovê-lo pra peça que você quiser. Rainha, torre, qualquer uma.

Acenamos com a cabeça. Todo mundo acompanhando até aí.

— Aquele troço é feito pra destruir o Cas, mas são sementes. O que caralhos uma semente faz? Cresce, dá vida pra coisas. Entendo, é o oposto do que faz o Cássio, e vai destruir o cara, mas e se desse pra aproveitar o fato de que são sementes e reescrever o final?

— Você tá falando de manipular magia celestial, Xaveco. Isso é impossível de um monte de jeitos diferentes.

— Por quê? Alguém tentou? E acrescentar depois, pode? Eu vi o Cyber trabalhando, ele é tipo um programador de magia. Disse que você só precisa conhecer as regras pra quebrar direito, porém que todas podiam ser quebradas. Depois viu que tinha mais alguém mexendo na barreira, ele não impediu. Fez alguma merda do lado da alteração que deixou a barreira mais fina.

“O Mau não vai conseguir impedir a destruição, mas se ele nem tentasse? Se só reescrevesse o final, e aproveitasse aquela energia absurda que ele tem pra recriar o Cássio com isso? Não esse troço que ele é agora, mas um Cássio humano? Se a gente tivesse um pedaço do Cássio antigo, tipo um backup, algo pra guiar a reconstrução… um pouquinho de DNA que fosse…”

Tô passada em verde e amarelo, minha gente. Isso é tão maluco que poderia dar certo. Luca parece que travou, a boca aberta e olhando pra lugar nenhum.

Volto pra Terra, Xavier desceu da carroça e está desatrelando um dos cavalos. — Com certeza o Mauro sabe! Vou até lá e falo pra ele! Com certeza vai dar certo!

— Mauro tem acesso a um pedasço.

Não consegui evitar a careta. — Mauro guardou um pedaço? Cruzes, essa é de longe a coisa mais nojenta e doente dessa-

— Não é isso, Denisse. Quando uma pessoa explode, voam pedaços, e o osso pode-

— Para tudo, Luca. Certeza que todo mundo já entendeu, não preciso disso na minha cabeça. — Droga, tarde demais. Estilhaço de Cássio, que nojo, meu pai! — E você, estrupício, por que soltou um cavalo? Eu vou voando, por acaso?

— Luca, não mando em você nem nada, mas acho que tem que ser eu. Você não vai chegar perto o suficiente.

A cobra concordou, sombria. Xavier me olhou de volta com tristeza. Ah, não. — Dê, por favor, fica com o Luca. Vai com ele.

— Mas que história é… — Aí eu lembrei do feitiço. Entendi tudo, do início ao fim.

“Vocês todos irão morrer”, disse o Porta-voz.

“Coragem, esperança, sacrifício. Essas coisas realmente são importantes.”, enfatizou a Sarah.

Pensei no que o Luca me disse. Em toda a vida que me esperava se eu ficasse ali parada. Xavier sozinho seria mais rápido e teria uma chance maior de voltar se não tivesse que proteger ninguém.

— Mauro salvou sua vida, Dê. Eu tenho que retribuir. Eles são importantes pra esse mundo.

Quis brigar, gritar, arrastá-lo amarrado pro nosso final feliz e fazê-lo desistir dessa maluquice de se enfiar na treta entre um dos magos mais poderosos do mundo e uma força natural. Quis muito, e uns anos atrás, eu até conseguiria.

Mas olhá-lo erguido, me olhando com firmeza não me deixou nem abrir a boca. Aquele não era o rapaz inseguro da minha adolescência, com medo de não me agradar. Apesar do tom tranquilo, o Xav não estava me pedindo permissão.

E apesar disso me deixar fula da vida, eu o amei demais por isso. — Vou com você, Xavier. Você tá louco se pensa que vai me deixar pra trás.

— Fique, por favor. Eu sei da previsão, mas não precisa acabar pros dois.

Ele sabe? Mas como raios ele lembra do que o Porta-Voz... Ah. Meu estrupício maravilhoso acha que a Sarah previu isso, na nave do Louco.

Meu lindo. Ele sabia de algum jeito que não sobreviveria a esse circo e se jogou nessa loucura assim mesmo. O que eu fiz pra merecer esse cara?

(Se foi engano, tudo bem; não faço questão de devolver)

— Você não vai se livrar de mim tão fácil, estrupício. Vou pra onde você for. — Desci da carroça. Os pangarés já viram dias melhores, mas é o que tem pra hoje. Desmontando os arreios, só notei que tinha algo diferente quando vi a sombra me cobrindo. O dragão disse algo que não entendi, é claro. Ou vocês achavam que dragão extradimensional fala português?

— Ele disse que vai levar vocêss até o Mauro. — Luca traduziu, inexpressivo. Ele continuava parado, tão imóvel que dava pena.

Lembrei da fúria impotente que senti quando Nero acendeu aquela maldita fogueira. Não que eu tenha a pretensão de entender essa família doida, mas um pai ter que assistir enquanto outras pessoas (e dragão) tentam salvar seus filhos deve ser a pior coisa de todas.

— Por favor...— e não sabia como completar a frase. Só repetia o pedido em silêncio, o olhar aflito grudado em nós. Prefiro pensar que ele diria pra salvarmos o dia, voltarmos vivos e com umas lembrancinhas de Sococó da Ema. Que ele nos esperaria pra nos levar praquele lugar super legal em que morava. É, com certeza era isso.

— Licença. Me desculpe, senhor Leviatã — Xavier se meteu. Meu Deus, o estrupício tá quase se curvando. — mas eu me sentiria melhor se o senhor nos deixasse e voltasse pra cá.

Entendi o Xav. Ouvi o Luca traduzir a resposta. Sim, ele concordava. O Levi baixou o ombro e o Xavier me ajudou a subir, e montou depois. Sem qualquer enrolação nem musiquinha de triunfo, decolamos.

***

Estou voando num dragão. Voando. Num. Dragão. Eu me sentia uma criança, com o brinquedo mais fantástico do mundo todo só pra mim.

Não era confortável: o dorso era uma mistura de escamas e penas, e sacolejava como os diabos. Nossa sorte é que a “sela” que Luca usava ainda estava ali, senão cairíamos pra uma morte muito ridícula no segundo bater de asas. Mas, porra, era um dragão! Eu estava animado pra cacete, apesar de ser meu último dia de vida.

Tudo se misturava no peito, a alegria de voar, de poder ajudar o Mauro (e talvez o mundo), a tristeza de ter trazido a Dê, junto com uma pontinha de orgulho por ela não querer ficar pra trás. Se eu não disse antes, deveria ter dito: sou um cara sortudo pra caralho. Tenho essa mulher absolutamente foda nos meus braços, partindo pra briga junto comigo, o que mais eu poderia querer?

Entendi o sorriso do Mauro. Saber que vai morrer e que isso vai fazer diferença dá uma liberdade tão grande que não cabe no mundo.

Agora tenho coragem de pensar na Xabéu. Nunca tive a chance de dizer à minha irmã uma porrada de coisas, talvez ela nem imagine que sobrevivi, mas agora... Bom, talvez assim seja melhor.

Denise puxou minha cabeça, e ainda teve que gritar pra eu escutar alguma coisa no meio do turbilhão de vento:

— Tô orgulhosa de você!

Aproveitei e dei um beijo nela. Tô tão feliz que poderia gritar. Por esses minutos, eu sou o rei da porra do mundo inteiro.

***

Ainda bem que eu tô na frente, dá tempo de voltar a ser a Denise performática e iluminada de sempre. Uma vida em paz com o Xavier, num mundo tranquilo, tudo que eu queria ao alcance da mão, e tive que deixar ir. Se qualquer coisa nesse plano maluco desse errado, nenhuma quantidade de lábia ou habilidade nos salvaria, nós quatro morreríamos. Só uma vez eu não podia ganhar sem pagar um preço tão alto?

(Nem vou falar do volume simplesmente absurdo de azar que tive essa semana, ou repetir pela trocentésima vez das previsões de morte e extermínio. Qual a chance de dar certo? Ou de dar tudo certo e todo mundo morrer mesmo assim?)

Montar naquele dragão foi a coisa mais difícil que já fiz. Num minuto, estava voando a toda velocidade pra direção errada, e o pior, com o Xavier.

Entendi porque o Ângelo deu o enigma pro Xav. Eu, Mauro e Luca conhecemos as regras da magia; cada encanto tem consequências, cada ação sua reação. Xavier não sabia, e não se curvou a elas. Encontrou um caminho que nunca veríamos, só porque nunca procuraríamos o danado lá. Eu mesma diria que é impossível e estaria até agora quebrando a cabeça.

Estou mesmo orgulhosa do Xav. Ele é uma das melhores pessoas que conheço e merecia sobreviver, de verdade. Irônico que justamente por isso estamos nessa missão suicida. Vida, você tenta, mas não tem graça nenhuma.

Acho que o segundo motivo é que meu namorado não hesitaria um minuto em fazer a coisa certa. Se só eu soubesse, teria mesmo largado tudo e corrido pra morte certa pra salvar o Mauro e o Cas? Teria jogado fora tudo pelo que lutei e a vida do Xav pra fazer a merda da coisa certa? Sinceramente não sei. Se tem uma coisa que todos nós, os sobreviventes, aprendemos é que não se morre de remorso.

Isso é ingrato? Covarde? Uma filhadaputice sem tamanho? Claro, amores. Se vocês ainda não perceberam, eu também não sou a heroína da história. Entendia completamente o Mauro, que não tava exatamente perdendo o sono porque o ciborgue da vida dele tava mandando todo humano que encontrava pro além.

Tenho certeza que vocês não perdem o apetite cada vez que em algum lugar na Conchichina um ataque terrorista mata dezenas de pessoas, ou porque uma inundação deixa dez mil sem casa e comida. Você se sente mal, mas não dá pra fazer muita coisa, fica meio feliz que não foi com você e segue a vida.

Estão vendo? Não somos tão diferentes assim.