Oitava Fileira

O homem que não tinha nada


Antes da gente chegar na pior DR do mundo, preciso relembrar a vocês um negócio sobre combates mágicos: A menos que sejam magos elementais, é bem raro ver o show de faíscas e raios coloridos de filme. Alguns dos combates mais complicados que já vi nem pareciam um problema até que os defuntos começaram a aparecer.

Isto posto, o que tava rolando lá embaixo era assustador em ambos os níveis. Magicamente, havia duas forças se atingindo com violência; fisicamente, havia um lobo e um homem arrancando pedaços um do outro com tanta brutalidade que parecia impossível que qualquer um deles sobrevivesse.

— Sr. Leviatã, pode pousar perto daquela cidade ali? — Xavier gritou, e o dragão inclinou um pouco, mudando o local de pouso. No meio do vento forte, saltamos e tivemos uma visão privilegiada dos dois se arrebentando na porrada. Eu devia estar louca quando concordei em participar disso.

Com uma inclinação de cabeça, Levi se despediu e levantou voo novamente. Xavier respirou fundo e olhou pra mim. Percebi a insegurança faiscar um momento, logo coberta pela determinação. E porque ele tinha tanta coragem, eu podia ter também. Uma vez na vida, eu faria o que era certo pelo simples fato que era o que precisava ser feito.

— Dê, por que o Mauro não tá usando o feitiço?

— Ele está. Só tá mantendo Cássio no lugar enquanto acontece. — Vi a expressão dele desabar.

— Então já é tarde demais?

Procurei com atenção, me concentrando apesar da barulheira.

Não. Ainda não era.

— O feitiço principal ainda não começou. Denise não apareceu nesse mundo pra morrer como secundária de filme de monstro. Já disse que será com brilho, elegância e purpurina. Consegue segurar o Cascaboy uns minutos, enquanto eu explico sua ideia genial pro peludinho ali?

— Claro. — E literalmente roubou um beijo antes de sair correndo. Enquanto ele se afastava, eu acendia o isqueiro. Ele não lutaria sozinho enquanto eu pudesse ajudar. O dragão de fogo puxou Cássio do meio da briga, e extingui as chamas antes do Xavier se jogar em cima do Cássio.

Antes que o Lobo pudesse voltar pro esquema bufar-soprar-derrubar, consegui chamar sua atenção dando aquele grito de mocinha de filme quando encontra o assassino, além de pensar o mais alto que pude.

Acertei. O tadinho estava preparado pra enfrentar um trator, mas ainda tinha ouvidos (e mente) bem sensíveis. Encolheu as orelhas, ganindo algum xingamento pesado quando reparou que a fonte do som horrível era eu. O lobo parecia figurante de Hóspede Maldito, tão estropiado que tava.

— Mas o que diabos você-

— Vem comigo agora! — “Não se preocupe, meu namorado tá distraindo o seu, preciso te mostrar uma coisa!”

— Mas como... — Mauro olhou atrás de mim, viu Xavier atacando Cássio com tudo. Sei que já disse que numa luta desarmada meu Xaveco era melhor que aqueles dois, e sem o poder derrete-pessoas, o Cássio não era tão super assim. Mas a porcaria do ciborgue era imortal e inumano, e Xavier não.

Rapidamente, resumi a conversa de mais cedo, vendo os olhos do lobo ficarem cada vez mais arregalados, murmurando todos os palavrões da língua portuguesa.

(Gente, se tem um negócio que é tudo nessa bagunça são as caretas dos bichos. Se eu tivesse um celular e internet, seria a rainha absoluta do Iutúbe a essa altura. Seria só editar os palavrões... Ok, foco.)

— Puta merda... Eu tentei tanto, tudo que pude pensar... Mas nunca pensei nisso. Não reverter...? Será que... Não, é impossível. Eu queria, mas não dá.

O lobinho olhava pra mim e pros lados, e eu quase podia ver a contradição na sua cabecinha peluda: Parte maquinava um jeito de fazer a ideia funcionar, e parte estava com medo. Quase via nos olhos dele: “Não me dá esperança. Não agora.” O Xavier trocando porrada com o Boy do Fim do Mundo e o Mauro de mimimi? Ah, faça-me o favor!

“Escuta aqui, Mogli: Você não tem nada a perder. De qualquer jeito, você e ele vão morrer quando essa mandinga acabar. Tá com medo de quê?”

O choque do Lobo Mau passou mais rápido que eu esperava, e começou a remodelar a magia com a velocidade do Bolt (e ficava cada vez mais surpreso que podia fazer isso, não sei por quê. Denise é certeza, bem). Também enfiou os dentes na pata dianteira e tirou... isso mesmo, uma lasca de osso. E estouramos novamente a escala de bizarrice, senhoras e senhores.

“Você sabe como a proteção de vocês funciona, não é?”

— Quanto tempo vocês conseguem me dar?

“Claro, bofe. Também entendo dessas coisas.”

— Uns vinte minutos, no máximo. É suficiente?

“E mesmo assim voltaram? Por quê? Não entendo.”

— Vai ter que bastar.

Mauro se transformou novamente em humano (vestido, graças a Deus). Toda a raiva e mesmo o medo pareciam ter evaporado, deixando um espanto agradecido. Você entende, Mauro, mesmo que não saiba como dizer. Mais uma vez, não me surgiu nenhuma frase de efeito, então só acenei e me juntei ao Xavier.

***

Desviar, bater, chutar, desviar de novo: Lutar com Cássio exigia tudo de mim, a cada segundo. Era como bater num bicho de concreto muito raivoso, e eu sabia que se ele me acertasse em cheio eu cairia. E uma vez no chão, eu estaria muito morto.

Mas (que a Dê não me escute dizer isso) o troço era divertido pra caralho. Eu não precisava me segurar, podia usar aquele estilo destrutivo em que o Xavecão (e portanto eu) era especialista. Podia gastar cada grama de raiva que tinha desse mundo inteiro.

Levou algum tempo pro Cas entender que não podia me dissolver, e enquanto isso bati nele com força, mas com ritmo. Minha tarefa não era derrubar o monstro imortal, era ganhar tempo, e eu não conseguiria durar cinco minutos se gastasse meu fôlego tentando causar algum estrago num sujeito que não sentia dor.

Quando ele percebeu, a luta começou de verdade. Ele abriu as mãos, mostrando todos os dentes, e na hora eu percebi que se pensasse nele como um oponente humano estaria fodido. Estava certo: ele avançou rápido, tentando me agarrar e me morder. Eu o chutei bem no meio das pernas e o agarrei de volta, descendo e o jogando por cima de mim, levantando apenas a tempo de evitar outro bote e chutar-lhe o joelho. Ele só endireitou a perna e voltou a circular.

Cássio não era mais o sujeito que parecia dançar com as sai de uma semana atrás. Era só uma coisa com a aparência dele, sem nenhum fiapo da inteligência ou experiência que o cara tinha. Muito rápido e bestial, mas só. Eu podia vencer aquela aberração, pelo menos por tempo suficiente pro Mauro mexer na magia e consertar tudo.

Eu posso vencer. Esse pensamento mandou uma descarga de adrenalina até as pontas dos dedos, e bati nele com energia renovada, o afastando a cada chute, soco e cotovelada. Eu podia vencer, na verdade estava vencendo, pensava, enquanto via o Cas recuar um segundo, a expressão frustrada. Ele ainda era cego, mas de algum jeito, sempre sabia onde eu estava.

Enquanto isso, Denise tentava cercá-lo, me esperando afastar o suficiente pra acertá-lo com aquele dragão feito de fogo outra vez, mas ele percebeu e se mantinha numa posição em que ela não pudesse atacá-lo sem me atingir.

Cas avançou em mim, e o bloqueei com um chute mais uma vez, mas foi aquele segundo mais lento. Eu estava cansando. Ele não.

Quando ele segurou meu pé, eu juro que pude ver um dos cantos da boca do miserável levantar. Ele não estava mirando no meu pescoço, como antes. Ele queria a porra da minha perna. Foi como um filme em câmera lenta, vê-lo avançar no meu joelho, a boca mais aberta que uma boca humana deveria abrir, e soube na hora que estava muito, mas muito fodido.

Não consegui evitar que o puto ferrasse meu joelho direito, e num minuto eu estava no chão. Chutava com a força do desespero, tentando evitar que o monstro filho da puta terminasse de arrancar minha perna ou alcançasse minha cara. Cássio não era mais o lutador de antes, mas também não era a coisa burra que pensei. Era uma porra de animal selvagem, um que não sentia dor, se regenerava e tinha todo o tempo do mundo. Termina logo essa merda, Mauro!

Beleza, eu sabia que iria morrer e que não seria bonito, mas agora estou quase desejando não ser imune a essa merda sobrenatural que ele faz. Ser retalhado por esse monstro vai doer pra caralho. Mesmo assim, tenho que insistir e segurar essa coisa aqui, porque na hora que eu cair ele vai avançar na Denise. A curta distância, ela não tem chance nenhuma.

O maldito percebeu que eu ainda não estava morto porque minha outra perna o impedia de me rasgar de vez. Começou a lutar pra imobilizar a perna inteira, enquanto eu o mantinha à distância do jeito que podia, num jogo de empurra-empurra que seria engraçado se não valesse minha vida.

Eu estava exausto que só a porra, e parte de mim já se perguntava se morrer agora era tão ruim assim, se a outra opção era esse combate penoso e inútil. Eu iria perder de qualquer jeito, por que insistir? Pra que dar tudo de mim mais um minuto, ou cinco, ou dez, se no final essa besta-fera com a cara do meu amigo de infância vai ganhar de todo jeito?

Vamos Xavier. Só um pouco mais. O joguei pra trás, rezando pra Denise estar atenta e com o feitiço pronto, ou vai assistir esse puto voltar e me transformar em quebra-cabeça de Xaveco nos próximos trinta segundos.

Ignis focus flamma!

Ela não precisou dizer pra eu me proteger: Ouvi-la dizer aquelas palavras me encheu de pânico. Me encolhi o máximo que pude com os braços sobre a cabeça e fechei os olhos como uma criancinha. Aquele pedaço que queria desistir agora berrava na minha cabeça que Cássio desse um jeito de acabar comigo agora, porque qualquer coisa era melhor que ser queimado até morrer.

O maldito ardia como um pedaço de madeira e ainda não desistia, pondo tanto esforço contra o dragão de fogo que estávamos afundando, as pedras se transformando em areia ao nosso redor. Aos poucos, a força dela começa a afastá-lo aos trambolhões, a prótese afundando na poeira. Começo a me arrastar pra longe, se eu encontrar algo pra prender esse merda no lugar, ou bater nele ainda posso fazer alguma... Caralho, esse demônio ainda está em pé?

Carbonizado, rachando como uma vidraça, Cássio — ou o que já tinha sido o Cássio — oscilava, um olho absolutamente furioso fixo em Denise. Aos pedaços, a casca enegrecida caía, mas o que aparecia embaixo era distorcido, como se o Cas tentasse parecer um humano, mas já não soubesse direito como um humano deveria ser.

Então um passo. Depois outro. Ele sabia que eu não levantaria mais e me ignorou, rosnando alto enquanto se preparava pra enfrentar minha namorada. Ela o olhou cheia de medo, e depois me achou a míseros cinco metros do monstro.

— Mais depressa, Xavier! Me dá espaço!

Essa não é a hora de se preocupar comigo, sua louca! — Atira assim mesmo!

— Vou te acertar, estrupício!

Denise hesitava, comigo gritando pra ela se apressar e parar de besteira, então o monstro disparou e num segundo eu corria também, meio saltando, meio caindo, esquecido da dor e todo o resto, porque o filho da puta estava correndo pra cima da Denise e nem fodendo ele machucaria aquela garota enquanto eu respirasse.

***

Queria dizer que enfrentei bravamente o Cássio Monstro e fiz um feitiço tão incrível que o transformei numa pilha de pó. Que sozinha eu impedi o coiso até Mauro terminar de modificar o feitiço divino, e tudo deu certo. É, acho que seria uma história bem melhor assim. Também seria mentira.

O que aconteceu foi que eu vi aquela coisa correndo na minha direção, seu poder desintegrando tudo ao redor, e tudo que eu faria se pudesse me mover era cair de joelhos e implorar pela minha vida.

E o ódio. A coisa que um dia foi Cássio me odiava, cada célula e cada gota de sangue, e a tudo que era humano ou já foi. Ele acabaria com todos nós, o poder dele gritava. Ninguém poderia adivinhar que humanos existiram quando ele terminasse.

— Denise!

Saí do transe, vi o Xavier mancando na minha direção. Como numa câmera lenta, vi a aflição do bofe e a mancha larga de sangue na calça. Ele não chegaria a tempo, nós dois sabíamos. Estava longe demais, lento demais.

— Denise, faz alguma coisa! Qualquer coisa!

Foi ali — e não consigo pensar num lugar mais estranho pra ter uma epifania — que eu entendi. E quando eu finalmente entendi, não tive mais medo. Pude ver com o canto do olho Mauro se levantando pra interferir na treta, e falei o mais alto que pude:

— Xav, ache um abrigo.

Ele viu o que eu tinha na mão e ficou branco como um fantasma. Mauro pareceu ler minha intenção e mesmo ele deu um jeito de se esconder.

O choque com o boy do armagedon foi duro, mas nada que eu não pudesse lidar. Xavier correu na direção oposta, e num segundo eu não o via mais.

Entendam, queridos, fogo não é sobre autopreservação. É sobre pegar coisas comuns e transformar em luz, brilho e calor. “ Que importa restarem cinzas, se a chama foi bela e alta?”, coisas assim.

E ali, rolando no chão com o Cas tentando me quebrar (e conseguindo), o bofe do armagedon se ensopava com a poção que preparei há muito tempo pra uma situação assim, com o encantamento mais destrutivo que sei fazer.

Puxei o Ex-Cássio pra mim e sussurrei “Tambora”.

Não, não importa, Quintana, se brilhar o suficiente.

***

Puta que pariu! Me joguei o mais rápido que consegui de volta no buraco que o Cas abriu no chão, enquanto Denise liberava o inferno pouco acima da minha cabeça.

Cássio não sente dor, mas uma tempestade de fogo como essa podia ter derretido um carro, com certeza levou aquele desgraçado pra longe, com sorte o torrou o suficiente pra ele parar de se mover. O mundo rugia ao meu redor, minha pele criando bolhas e enegrecendo, enquanto o ar era roubado dos meus pulmões.

Podia sentir o cheiro azedo de carne queimada, e a parte de mim que ainda sentia doía de um jeito intolerável. Sabia que pra dor acabar, só precisava levantar a cabeça ou coisa assim, mas não conseguia me convencer a fazer isso. Me dê trinta zumbis e luvas de couro, entro na briga tranquilo, mas aquilo... Porra, não dá. Não consigo, não ligo se isso faz de mim um frouxo, morro de medo de fogo. Viro uma merda de carvão aqui embaixo, mas não vou nem respirar até essa coisa acabar.

Graças a Deus, aquela droga de incêndio se afastou. Ok, pra mim já chega, hora de desmaiar e morrer, fiz tudo que podia, de verdade.

Ouvi de novo o grito furioso e o mundo pareceu voltar pra mim. Aquela era a voz da Denise. Para de frescura e mexe essa carcaça, Xavier. Você tá vivo, quer dizer que sua tarefa não terminou. Me arrastei, meio cego de dor, até que vi a luz selvagem do que parecia uma coluna de fogo. Denise envolvia o Cas numa espécie de furacão de chamas, impedindo-o de se mover.

Puta merda, não sabia que o Tambora era algo tão grande, mas nem o mago mais forte do mundo pode manter uma coisa desse tamanho por muito tempo. Na verdade, eu podia sentir o vento diminuindo de onde estava.

Era como se já tivesse visto o que aconteceria depois. Ela ficaria sem energia, eu tentaria segurar o monstro, ele me faria em pedaços e a seguir acabaria com minha garota. Nem daria tempo do feitiço do Mauro nos matar.

Denise me olhou com aquela raiva triste, quase dizendo “Veja só como acabamos por sua causa, seu estrupício” mas então alguma ideia maluca apareceu, os olhos dela brilharam e ela jogou o Cas longe num último esforço. Em seguida, deu o grito mais estranho da história das guerras:

— O Licurgo é Loooucoooo!

Como um efeito especial de filme antigo, de repente ele estava lá, os inconfundíveis cabelos loiros embaixo da cartola, e um sobretudo de pele azul-claro. Os óculos redondos deixavam o olhar dele ainda mais insano. Ele continuava com um sorriso maníaco, como se o fim do mundo o empolgasse pra caralho.

— Eu não sou louco, vocês sabem. — Olhou ao redor, viu a destruição e todos nós. — Ora, ora. Mas que coisa interessante vocês têm aqui.