Oitava Fileira

Montanhas, geleiras e javalis inteligentes demais


— Mais um dia, Cas, e só. Sei que foi muita coisa, toda a história que o irmão dela está morto, mas tem algo errado. Não acredito em nada dessa conversa que ela não sabia o que Nero estava fazendo. Ela está nos segurando aqui e eu não consigo ver o motivo.

— Só preciso de mais uma chance. Preciso convencê-la, sei que é importante… Sinto que é, mas…

Olhei a angústia, a testa franzida cada vez mais frequente. Eu sabia a resposta. E como a odiava.

— … Mas não lembra o porquê, não é?

Ele bateu na testa, frustrado. — Nada. Sinto que preciso tentar salvá-la, mas não consigo imaginar a razão. Por que eu não quero destruir de vez uma humana tão perversa? Fui namorado dela ou coisa assim?

— Ela é irmã do Cebola, Cas. O Cebola original. Seu melhor amigo de infância.

— Não era você? Por que diabos não era você?

Porra, isso dói de um jeito novo toda vez. O mais calmo que pude, falei a ele de novo do Cebola, da Magali, da Mônica.

— Eu… Caralho, eu não entendo. Lembro de tudo com você, desde os sete anos. De morar com o Luca, Fred e Marina, mas desse pessoal… A única coisa que fica é essa merda de incômodo, devia ter alguma coisa lá, algo importante… Eu sei que eles existiram, que eram meus vizinhos, e só. O resto é branco.

Não consegui responder. De algum jeito, o Cas percebeu e sentou mais perto. — Deixa pra lá. Posso lembrar depois, e se não lembrar, tudo bem. Me acostumo. Você está aqui.

Respirei fundo. Parecia tão real agora, tão próximo. Eu queria aplicar magia em mim mesmo e esquecer. Pelo menos aceitar com a dignidade do Cas.

Quando ele me mostrou como realmente estava a mente dele — e pediu pra ajudá-lo a ir depois que toda essa merda terminasse, quase derrubei a casa na cabeça da Denise e do Xavier. Como o idiota tolerou chegar naquele nível? Como eu fui egoísta de deixar as coisas chegarem a esse ponto?

E como se a situação já não estivesse ruim o bastante, quando o Cássio insistiu em tentar salvar a maníaca da irmã do Cebola mesmo sabendo o que custaria a nós dois, eu mesmo o matei numa discussão imbecil. Agora ele não lembra direito da Mônica. Do Cebola. Porra, ele esqueceu o Cebolácio, e suspeito que sequer lembraria que os quatro existiram se eu não soubesse deles.

Ele deveria ter me mandado me foder de verdade há muito tempo. Mas não, o imbecil está em paz com toda essa droga. Me perdoou do próprio assassinato em dois malditos segundos. Quer ajudar aquela sociopata da Maria a escapar do Inferno, mesmo que não lembre mais quem ela ou o irmão dela foram. Ainda por cima aceitou permanecer nessa vida de merda todo esse tempo por mim. Não importa que ele esteja aqui pela metade, ele continua a porra de um herói.

O colar me incomoda quase tanto quanto minha consciência moribunda; mesmo que seja impossível dormir bem e eu me sinta um cavalo de arado com essa porcaria no pescoço, não vou tirar.

Me sentia mais corajoso com a corrente do DC comigo, mas dessa vez não está funcionando. A saudade dele, tão pior nos últimos meses, agora é tão densa que mal consigo respirar direito.

Resisto pela milésima vez a invocar o espírito do meu irmão. Ele está em paz, repito como um idiota. O maldito está em paz desde que o larguei pra morrer na rua, tanto tempo atrás. Não é certo perturbá-lo só porque estou sozinho com o javali fodido imbecil, deprimido pra caralho e já não sei mais o que fazer.

Porra, Mauricio, porque você não foi um pouco menos altruísta e sobreviveu, seu retardado de merda? Eu precisava de você comigo, seu idiota corajoso. Quem sabe eu não tivesse ferrado com tudo.

Cássio sentiu minha agitação, e tocou meu ombro. — Tá lembrando deles, não é?

E ele ri com o meu silêncio surpreso, depois parece triste. — Toda vez que você fica muito calado, faz esse gesto. — E imita o meu passar dos dedos num colar invisível.

— Eu não imaginava o que era até que você voltou a usar a corrente do seu irmão. — complementa. Tantos anos, e eu ainda me surpreendo com o quanto o Cas é capaz de perceber sem enxergar.

— Tenho sentido muita falta deles hoje em dia. Queria ter a memória ferrada como a sua, isso dói pra caralho.

O Cas negou de leve com a cabeça. — Eu sei e você sabe por que não lembro.

Um arrepio correu pelas minhas costas. Ele sabe? O javali completou com um sorriso resignado. — Você vai revê-los. Espero que daqui a muitos anos, mas vai. Eu...vou ficar aqui.

Sem esperar por uma resposta, Cas jogou o braço metálico sobre meus ombros. Acho que ele sabia que eu não tinha nenhuma. — Então não deseje esse tipo de merda pra sua cabeça, sério. Um de nós estar fodido até a alma já é o bastante.

Não sabia que era possível me sentir ainda pior. — Não fale assim da sua alma, porra.

— Foi só uma expressão, Mau. — Rosno baixo, tem coisa com que não se brinca. Ele recua um pouco. — Ok, retiro o que disse. Estou fodido até os ossos, mas minha alma está intacta. Melhor?

— Menos ruim — concordei, já um tanto envergonhado do ataque de mau humor. Ele só sorri e fica calado. Me concentro no cheiro dele, esquisito como sempre, e o lobo me acalma. Tenho que ter a cabeça no lugar mais um pouco, salvá-lo como puder, aproveitar enquanto ele ainda sabe quem eu sou.

Exausto e com a cabeça cheia como estava, demorei a notar ele me chamando.

— Que é?

— Você sabe o que está me acontecendo, não é? Porque raios eu nos enfiei nessa roubada, mesmo que eu não saiba mais.

Acenei positivamente com a cabeça, quase feliz com a mudança de assunto.

— Vai adiantar alguma coisa me contar?

— Acho que não. Entendo agora. Sabe, o que você quis fazer aqui.

— Então você me desculpa?

Abri um sorriso torto, a infelicidade me engolindo mais uma vez. Porque acha que é você quem precisa ser perdoado, seu animal estúpido?

— Lembra daquelas montanhas no Chile? Neve, florestas e absolutamente nenhum humano por perto? Se eu tiver pelo menos quatro meses lá sem pensar em nada mais complicado que caçar a próxima refeição, talvez eu perdoe você.

— Feito. Olha, desde que chegamos, tem um pedaço de metal no seu dedo. Bem resistente à corrosão. É o que estou pensando?

Meu sorriso fica mais sincero. Me permiti uma brincadeira dessa vez, imaginei que ele perceberia.

— Sabe, normalmente braços-direitos não ficam hospedados no mesmo quarto que seus líderes, e não vou ficar separado de você aqui. Nem mesmo por uma parede, esse lugar é perigoso demais. Disse que estava comprometido com você em vários níveis. — Tirei o anel e deixei na mão humana dele.

Ele tateou, reconhecendo o formato simples. — A aliança do seu pai. Não é mentira... de um jeito estranho. Eu não deveria ter uma também? — perguntou, me devolvendo o anel dourado. — Você está fazendo alguma coisa, e sinto que eu não lembraria nem de mim sem isso. Sério, Mau, o que é?

Sorri. Mesmo com tanta coisa perdida, ele ainda me conhecia melhor que qualquer outra pessoa. — O que qualquer homem apaixonado e imbecil o bastante faria se pudesse. Estou com você, e ela não vai mais causar mal a ninguém.

— E eu não concordaria se soubesse, não é?

— Nem um pouco — admiti, triste pra cacete. Me deito e ele busca minha mão em silêncio.

A segurei, sentindo o conforto do gesto familiar. Sempre incomodava o fato dela ser mais fria que qualquer mão humana, mas não essa vez. Hoje o frio me lembrava que esse do meu lado era o Cas, o javali mais imbecil e meu melhor amigo no mundo. Eu não estava só.

Por enquanto, pelo menos, estava tudo bem. Nenhuma magia contra nós ainda. Conforme o sono chegava, eu o sentia cada vez mais imóvel e calmo. Usava essa calma, e conseguia dormir sem sonhar. Hoje, a cabeça dele estava nas montanhas, florestas e geleiras do Sul. Também estava no anel no meu dedo.

“Devo arranjar um pajé e um terno também?”

— Não me tente, javali. Vou acabar aceitando.

“Nem pense nisso. Ainda não esqueci o que aconteceu da primeira vez que você me beijou.”